• Nenhum resultado encontrado

94

OUTRA HOMENAGEM, EM ATO

95

Ainda o fatalismo romântico: homo sentimentalis e o desafio ético

Com a opção por uma dinâmica transversal e pela estrutura narrativa composta sob a base e forma de conversações, Diderot nos obriga a proferir, minimamente, “Jacques e seu amo” sempre postos em relação um com o outro, nunca sozinhos; oferece-nos uma outra alteridade possível – um processo de dessubjetivação, diria Foucault; um esquecimento do ‘EU”, diria Nietzsche. Por outro lado, com seu narrador de tom confessadamente (e, quase sempre, ironicamente) autoral, Denis Diderot (juntamente a outros romancistas como Sterne) insere-se na história do romance aproximando-se daqueles que não impõem à narrativa um “eu” lírico, sempre fazendo da escritura uma experiência ontológica complexa: “na medida em que o sujeito é um artista, ele já está liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um médium através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra sua redenção na aparência”159 – assim como o narrador, mesmo havendo por vezes a afirmação da presença de um “eu” autoral, torna-se já médium. Opção esta que radicalmente coloca o problema da liberdade para além do livre arbítrio, da liberdade individual. O romance, nesta perspectiva, não se deixa transformar numa aventura encerrada em um “eu”, numa aventura narcísica, de modo tal que cada interrupção, seja de Jacques, seja do amo, marca, por outro lado, a impossibilidade de introdução do “eu” lírico no romance, sobretudo no romance praticado por Diderot.

As constantes investidas do amo a Jacques – “E a história de seus amores?” – parecem reclamar o amor enquanto relato em sua dimensão “egoísta”, no entendimento do amor como sendo diretamente relacionado ao sofrimento – o prazer buscado e encontrado no sofrimento; é dizer, o Amo parece buscar uma alteridade, com relação a Jacques, que é firmada na necessidade de uma comunhão entre aqueles que sofrem por amor, para daí extrair o prazer amor.

No entanto, nem mesmo quando restrito à sua dimensão, digamos, mais “egoísta” – aqui entendida no relato dos amores de Jacques e de seu amo – o romance e suas personagens não fazem uso da forma de um monólogo, mas sempre de uma conversação. Também Jacques não se torna a extrema inversão, a de tomar o sentimento, o amor em uma perspectiva centrada num “eu”, naquele que sente – o amor tornado duplamente sentimentalismo – amar mais o amor do que o ser/objeto amado e o apequenamento daquele que ama como sendo indigno daquele amor, infinitamente maior. E é neste ponto que nos centraremos nesta seção: Diderot,

96 ao tratar a sensibilidade não numa perspectiva lírico-egoísta, recoloca o romance e a arte como um constante desafio ético, o de não fazer da sensibilidade – esse cuidado e atenção para com a existência e a vida – o valor dos valores, numa inversão reduzida à sentença:

Sinto, logo existo – única prova ontológica indubitável.160

Penso, logo existo é uma afirmação de um intelectual que subestima as dores de dente. Sinto, logo existo é uma verdade de alcance muito mais amplo e que concerne a todo ser vivo. Meu eu não se distingue essencialmente do seu eu pelo pensamento. Muitas pessoas, poucas ideias: pensamos todos mais ou menos a mesma coisa, transmitindo, pedindo emprestado, roubando nossas ideias um do outro. Mas se alguém pisa no meu pé, só eu sinto a dor. O fundamento do eu não é o pensamento, mas o sofrimento, sentimento mais elementar de todos. No sofrimento, nem um gato pode duvidar de seu eu único e não intercambiável. Quando o sofrimento é muito agudo, o mundo desaparece e cada um de nós fica só consigo mesmo. O sofrimento é a Grande Escola do egocentrismo. (KUNDERA, 1990, p. 197)

Tendo Diderot se dedicado à sensível tarefa de crítico de arte, acabou por torna-se conhecedor do público de seu tempo. A tagarelice de Jacques é de tal maneira contrastada com um tempo em que “se tagarelou tanto sobre a arte e se considerou tão pouco a arte”161 – e as interpelações de seu amo são aqui representativas desse tempo – que se recordarmos a forte dor de garganta a qual acometera Jacques no desfecho do romance, logo no meio do relato de seus amores, de um modo nada sentimentalista – e aqui como em Diderot e Kundera o emprego do termo sentimentalista se faz em oposição a sensibilidade estética –, poder-se-ia ser entendida como uma recusa por parte de Diderot em fazer, em narrar uma história, um conto de amor que agradasse a esse público. Por outro lado, temos o Amo como um tipo de “ouvinte estético, em cujo lugar costumava sentar-se até agora, nas salas de teatro, um estranho quidproquo [quiproquó] com pretensões meio morais e meio doutas, o crítico.”162 Diderot parece reclamar outro tipo de “ouvinte estético”, juntamente com seu narrador: “__Vós, leitor, que assim como o amo de Jacques anseia por ouvir uma história de amor, a história dos amores de Jacques, peço que o deixe em paz! Acaso não entendestes que o pobre Jacques fora acometido por uma terrível dor de garganta? Não bastasse a demorada história da Madame e do Marquês e, ainda, cobram de Jacques o relato de seus amores?” 163

Ademais, leitor, continuamos nos contos de amor; narrei vos um, dois, três, quatro contos de amor; ainda narrarei outros três ou quatro contos de amor: são muitos contos de amor.

Por outro lado, é verdade que, se escrevemos para vós, é preciso prescindir de vosso aplauso ou então servir ao vosso gosto, e vos decidistes pelos

160 (KUNDERA, 1990, p. 198) 161 (NIETZSCHE, 1992, p. 134) 162 (NIETZSCHE, 1992, p. 133)

163 Estas falas não remetem originalmente a nenhum dos diálogos do romance, são uma reformulação minha,

97 contos de amor. Todas as vossas novelas, em verso ou prosa, são contos de amor; quase todos os vossos poemas, elegias, éclogas, idílios, canções, epístolas, comédias, tragédias e óperas são contos de amor. Quase todas as vossas pinturas e esculturas não passam de contos de amor.

Tomais os contos de amor como sendo todo o alimento, desde que existis; nunca vos cansais dele. Sois mantido nesse regime e continuareis a sê-lo por muito tempo ainda, homens e mulheres, crianças grandes e pequenas, sem que vos canseis dele. Na verdade, isso é maravilhoso. Eu gostaria que a história do secretário do Marquês des Arcis também fosse um conto de amor; mas temo que não seja, e que fiqueis entediado. Tanto pior para o Marquês des Arcis, para o amo de Jacques, para vós, leitor e para mim (DIDEROT, 2001, pp. 163-4)

Na sequência, o narrador parece prosseguir no sentido de alertar para a dimensão e a tomada lírico-egoísta do sentir, da sensibilidade, em suas implicações existenciais e artísticas. A tomada lírico-egoísta do sentir implica um fechamento do sentimento num “eu” e uma consequente “perda do mundo”, na medida em que um homem fechado para o mundo, fechado em sua dor, é um homem insensível as dores do mundo. Nessa lógica, cada um, encerrado em sua “eudade”, toma para si o argumento da experiência sensível como sendo uma experiência da alma – a interiorização do sentimento, do sentir. Também nesse sentido, o amor é tomado enquanto espiritualização da sensualidade, como advertiria Nietzsche, tempos mais tarde. A respeito desse imperativo de alma no romance, acreditamos que Kundera e, muito antes, Diderot, apresentam-se “hostis à transformação do romance em confissão pessoal” e fazem do romance e do movimento do romancista uma grande poesia antilírica.164

Há um momento em que quase todas as mocinhas e rapazes caem na melancolia; são atormentados por uma vaga inquietude que paira em todas as coisas; nada encontre que acalme. Procuram a solidão; choram; o silêncio dos claustros os toca; a imagem da paz que parece reinar nas casas religiosas os seduz. Tomam esse sentimento pela voz de Deus que os chama, pelos primeiros esforços de um temperamento que se desenvolve: é precisamente quando a natureza os solicita que abraçam um gênero de vida contrário aos votos da natureza. O erro não dura; a expressão da natureza se torna mais clara: reconhecem-na, e o ser sequestrado cai em lamentações, langor, vapores, loucura ou desespero... Esse foi o preâmbulo do Marquês des Arcis. Desgostoso do mundo na idade de dezessete anos, Richard (este é o nome do secretário) fugiu da casa paterna e tomou o hábito de premonstratense. (DIDEROT, 2001, p. 164)

Neste momento, sou tentada a imaginar a vida de Jacques em plena idade lírica – esse

momento em que quase todas as mocinhas e rapazes caem na melancolia; são atormentados por uma vaga inquietude que paira em todas as coisas; nada encontre que acalme. Procuram a solidão; choram; o silêncio dos claustros os toca...- Jacques ouviria então o “chamado” a

encerrar-se num convento e – por um golpe do acaso, encontra a religiosa Suzanne Simonin?

98 A este imperativo de lirização do/no romance, em sua aparente inversão, a insensibilidade como falta de sensibilidade, Diderot nos apresenta Jacques sob a forma de um constante desafio ético:

O AMO: Jacques, és um bárbaro, tens um coração de bronze.

JACQUES: Não, meu senhor, não, tenho sensibilidade, mas a reservo para melhores ocasiões. Os dissipadores dessa riqueza são tão perdulários quando é preciso economizá-la, que não mais a têm quando precisam ser pródigos. (DIDEROT, 2001, p. 185).

Pelo diálogo acima, percebemos a colocação da diferença entre sentimentalismo e sensibilidade; a este imperativo de lirização no romance e também na vida – Jacques é acusado de ser “insensível”, de ser “um coração de bronze” pelo amo – demos, aqui, o nome de Fatalismo romântico, sendo este o desafio ético de Diderot e também de Kundera, o de resistir a tal fatalismo – imperativo de lirização – na composição de seus romances.