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O terrorismo do pequeno contexto

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: a Grande História no romance A

brincadeira

Milan Kundera (2006, p. 38), pensando o romance e mesmo a análise de uma obra de arte, considera que “Existem dois contextos elementares nos quais podemos situar uma obra de arte: ou bem a história de sua nação (chamemos este de o pequeno contexto), ou bem a história supranacional de sua arte (chamemos de o grande contexto)”. Quando, da citação aqui feita, temos na colocação de Milan Kundera a definição ou mesmo a justificativa do solo contextual no qual nossa análise se estenderá, sendo o território de nossa análise, como é proposto com o subtítulo que abre esta seção, o próprio romance – este território em que o

julgamento moral fica suspenso –. Dessa maneira, acreditamos situar-nos para além do terrorismo do pequeno contexto, é dizer, as relações intra e extra textuais ou mesmo teóricas,

aqui propostas, são já desterritorializadas (e não descontextualizadas) por uma leitura que não se centrará na recuperação o pequeno contexto no qual a obra kunderiana é produzida, sem, contudo, cairmos na negação absoluta do contexto elevando-nos a um plano abstrato de criação. Repetimos, nosso território de análise é o romance, em seu grande contexto, usado aqui como meio de pensar a história do romance e mesmo a história do pensamento ocidental. Nossa escolha retorna à uma metodologia singularmente experimentada ao longo das aulas de Teoria da Literatura, na graduação em Letras da já referida Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cuja estrutura e propostas curriculares possibilitaram-nos teorizar acerca da Literatura a partir da própria literatura, em especial, na leitura de romances; o contato com a crítica dos críticos de literatura veio mais tarde, nas aulas de Literatura. Tal metodologia, agora, nos chega como que potencializada: uma intuição do então trabalho de análise de conceitos aqui entendido enquanto uma experiência do fora - a percepção de conceitos enquanto criações estéticas por parte do artista, do romancista. Ademais, ajuda-nos a pensar um dos maiores incômodos manifestado pelo romancista: “o deslocamento da arte do romance de sua perspectiva estética”.52

O que se pretende, nesta seção, é a colocação do problema contextual, não somente deste trabalho analítico, mas da história da literatura: “Como ler romances cujo pequeno

contexto é distinto daquele no qual o leitor está inserido?” Ou, ainda, “como escapar do

51 KUNDERA (2006, p. 42) – “A possessividade da nação em relação a seus artistas manifesta-se como um

terrorismo de pequena contexto, que reduz todo o sentido de uma obra ao papel que ela representa no próprio país.” – Retomamos a expressão de Kundera para pensarmos a importância de uma análise estética afastando-nos de discussões que nos reconduzem a julgamentos morais e ideológicos da arte, aqui, em particular, o romance.

37 terrorismo do pequeno contexto que nos conduz à determinada maneira de ler e analisar um

romance?” O solo contextual, é dizer, o pequeno contexto dos romances kunderianos é a Europa – Praga, Ostrava, França... –. No entanto, se de tal referência poder-se-ia pressupor uma fixação e mesmo uma subordinação do romance a um contexto determinado, é neste ponto que o romance não serve ao historiador, aos estudos historicistas, é dizer, o romancista trata da História não como um historiador. O solo contextual possibilita ao romancista um olhar singular na construção e composição de seus romances, sabemos. Porém, quando o romancista (e também o leitor) toma(m) a literatura e sua história numa perspectiva não local, mas como Die Weltliteratur (Literatura Mundial), suas possibilidades de criação e reflexão são, radicalmente, ampliadas. E esta singularidade não implica uma fidelidade contextual, por parte do romancista. Não raro um autor não ser lido e mesmo valorado em seu país de origem ou no contexto em que vive. Daí outro ponto a ser considerado: o caráter nomádico porque

desterritorializante da arte do romance. A colocação destes problemas nos possibilitam um

caminho e uma postura analítica para além da análise das influências e mesmo das limitações contextuais que fazem parte do processo de composição de um romance, mas, por outro lado, incita-nos a considerar como as obras de Kafka, Musil e Nietzsche ajudam a Kundera [e também a mim] “a compreender que é possível escrever [e pensar e viver] de outra maneira”. Aos poucos, o trabalho analítico - e também o trabalho do romancista? - revela como o ato de

escrever torna-se a ação de ler e de como ler essas obras, repetimos.

Milan Kundera (1988, p. 36) quando perguntado, em Diálogos sobre a arte do

romance53, acerca da maneira “como concilia seu interesse pela história da sociedade e sua

convicção de que o romance examina acima de tudo o enigma da existência”, explica tratar e trabalhar em seus romances a partir de alguns “princípios” (p. 37), sendo preciso não “confundir duas coisas: existe um lado do romance que examina a dimensão histórica da

existência humana, e do outro lado o romance que é a ilustração de uma situação histórica, a

descrição de uma sociedade num dado momento, uma historiografia romanceada.” (p. 37) Eis a questão que repetimos aqui: C. S.: Mas o que o romance pode dizer de específico

sobre a História? Ou então: qual é a sua maneira de tratar a História?

A situação histórica é no romance, para Milan Kundera, uma possibilidade de revelação do mundo humano, o romancista não vê barreiras na realidade histórica, ele extrapola os limites da realidade e explora a verdade por trás das possibilidades da existência do

53 SEGUNDA PARTE de A arte do Romance – Milan Kundera; tradução de Teresa Bulhões Carvalho da

38 personagem e do seu mundo. O romancista (1988b, pp. 37-8) chega a apresentar quatro princípios de tratamento da História em seus romances:

1. Todas as circunstâncias históricas são tratadas com máxima economia;

2. Entre as circunstâncias históricas somente são consideradas aquelas que criam para seus personagens uma situação existencial reveladora;

3. A historiografia escreve a história da sociedade, não a do homem;

4. Não apenas a circunstância histórica deve criar uma nova situação existencial para um personagem de romance, mas a História deve em si mesma, ser compreendida e analisada como situação existencial.

O romancista marca, a partir destes princípios, como seus romances não são construídos num plano in abstracto e que as ações de seus personagens não estão restritas a um plano psicológico, criando dessa maneira uma situação de existência para os personagens e permitindo uma visão particular dos fatos. Conforme o próprio romancista afirma, os personagens realizam não apenas sua história pessoal, mas também, a história das aventuras europeias; e, apesar das retomadas históricas, não é preciso um conhecimento profundo da história local para a compreensão do romance, tudo aquilo que é preciso saber o romance

mesmo diz.54

Esta breve digressão, aqui feita à maneira de um prefácio ao romance escolhido para compor nosso trabalho analítico, é para dizer, como desdobraremos na sequência, que o que interessa a Kundera não é a História ou mesmo o Comunismo, mas as microrrelações que neles se implicam; contra o Tribunal ou, ainda, contra a uniformização da vontade pelas Instituições, seja pelo Partido seja pelo Exército ou pela religião, o romance sustenta dois processos diferentes, ambos materialistas à sua maneira: a de serem [algumas personagens e instituições] cúmplices de uma ordem social e política iníqua e a de se fundarem num regime que contesta a ordem da natureza.55

Na sequência, sem que nos detenhamos diretamente às diferenças morfológicas, sintáticas ou semânticas minuciosamente marcadas a cada troca de narrador, passaremos ao uso da personagem Ludvik, que nos ajuda a pensar a base “sobre a qual o romance é construído e que, segundo alguns, aliás, é romanesca por excelência: “o contraste de um indivíduo isolado e de uma coletividade, estranhos um ao outro”56. Kundera, ao colocar Ludvik diante de outros narradores e personagens, marca, a cada vez, a inadequação ou

54 (KUNDERA, 1988b, p. 43) 55 (MATTOS, 2004, p. 117) 56 (MATTOS, 2004, p. 130)

39 mesmo a falta de pertencimento do protagonista, sendo suas sucessivas inadequações “fonte de conflito para o herói e de reflexão para o narrador”57 - reflexões sobre o homem em geral e sobre como o sentimento de pertencimento pode ser revelador de uma atitude pouco racional e fruto de um efeito estético, de uma adesão.

Entendemos que as personagens de Marketa e Zemaneck (o da primeira parte do romance) marcam os modos de vida, sobretudo na juventude, em que os efeitos de tal adesão podem ser mais desastrosos pois acompanham uma necessidade de pertencimento e aceitação, sob a forma de uma “más(cara) pronta”, diria Ludvik. Noutra parte, o episódio narrado por Ludvik acerca de Lucie é a princípio uma singular antítese do vivido entre Marketa e Ludvik. Se Marketa, então namorada de Ludvik, marca a interpretação (e julgamento pela palavra), Lucie expressa, por outro lado, a experimentação, o corpo desnudado e o caráter performativo da linguagem: “A este código afetivo que vem do corpo opõe-se “a linguagem racional” (...). No romance, constantemente percebemos que o “poder se exerce pela palavra redigida por um código, o da justiça humana”58 (a dos camaradas do Partido) ou divina (a projeção do código comunista no Evangelho, materializada com Kotska na quarta parte do romance). Assim, por intermédio do olhar de Ludvik, Kundera denuncia a alienação que resulta da uniformização da vontade: seja pelo Partido, seja pelo Exército.

Composição

Em A Brincadeira, estruturalmente tem-se um romance cuja narrativa se dá por meio de quatro narradores que marcam, esteticamente, quatro pontos de vista ou mesmo quatro tempos, quatro passados coexistindo; cada parte é denominada indicando um revezamento de vozes que, em suas singularidades, parece funcionar enquanto quatro e diferentes “testemunhas oculares da Grande História” de uma História cujo grande contexto – aqui entendido no contexto em que a narrativa é construída e mesmo o contexto narrativo marcado textualmente por Kundera como sendo Ostrava, ainda uma cidade, espaço concreto para onde Ludvik retorna –. Fazendo uso desse contexto comum, com cada ego experimental, o romancista experimenta, em narrativas na primeira pessoa do singular, o perigo de uma

história única. Ou, como aqui colocaremos: o fatalismo da Grande História. Primeira parte: Ludvik

Segunda parte: Helena Terceira parte: Ludvik

57 (MATTOS, 2004, p. 130) 58 (MATTOS, 2004, p. 133)

40 Quarta parte: Jaroslav

Quinta parte: Ludvik Sexta parte: Kostka

Sétima parte: Ludvik – Helena – Jaroslav

A Grande história, como já dito, é trabalhada dentro do romance numa perspectiva existencial, havendo um fato histórico que faz funcionar justapostos os dois níveis sobre os quais o romance é composto, a história do romance e a história romanesca: o avanço do Comunismo e uma crítica a este regime em suas diversas faces, sendo tal crítica mobilizada pelas reflexões de Ludvik em seus encontros com seus desafetos, por assim dizer, Helena, Jaroslav, Kotska, Zemaneck e com seus afectos, inconciliáveis, Marketa e Lucie – compondo a história romanesca. Poder-se-ia pensar tal crítica presente no romance da seguinte maneira: Jaroslav, o comunismo enquanto pretensão de resgate do passado patriarcal presente no folclore; Kostka, a utopia comunista projetada no Evangelho; Helena, o comunismo enquanto fonte de um homos sentimentalis.59 Outra possibilidade, seria pensar a maior ocorrência das rememorações de Ludvik e mesmo os diálogos com as outras personagens enquanto a enunciação de uma espécie de voz suprema que se sobreporia as demais, sendo esta a única voz que deva prevalecer ao final, no entanto, afastando-nos do então mencionado terrorismo

do pequeno contexto que impõe uma análise ideológica do romance e mesmo das obras de

arte e, para além de mobilizarmos mais um processo contra Ludvik, pensaremos esse ego

experimental enquanto a posta em cena da existência do diverso no ciclo; é dizer, pensaremos

Ludvik em uma relação não imediata com o Super-homem de Nietzsche, mas como um “destruidor dos valores” – aquele que não se sente, não se confessa culpado e que por isso não merece o perdão – sendo este um homem (ou uma época) sem valores. De um Ludvik irmão, não por filiação, de Josef K. que não cessa em colocar o romance sob a forma de uma

meditação interrogativa :O que é a aventura se a liberdade ação de um K. [e diríamos de um

Ludvik] é totalmente ilusória? O que é o futuro, a revolução e a justiça se os camaradas do partido mal desconfiam do processo o qual iniciam?

Onde está a diferença entre o privado e o público se K., mesmo em seu leito de amor, não fica jamais sem dois agentes do castelo? E o que é, neste caso, a solidão? Um fardo, uma angústia, uma maldição, como quiseram que acreditássemos, ou, ao contrário, o valor mais preciso, a ponto de ser esmagado pela coletividade onipresente? (KUNDERA, 1988b, p. 17)

[...]

As almas líricas que gostam de pregar a abolição do segredo e da transparência da vida particular não se dão conta do processo que iniciam. O ponto de partida do totalitarismo parece com o do Processo: virão

59 KUNDERA, Milan. Os Testamentos Traídos, p. 07. (Parte dessas percepções foram possíveis e despertadas

na/pela leitura de trabalhos realizados por alunos do curso Ideias Filosóficas e Forma Literária, ministrado pelo professor Wilton Barroso ao largo do primeiro semestre de 2015.)

41 surpreendê-lo em sua cama. Virão como gostavam de fazê-lo seu pai e sua mãe. (KUNDERA, 1988b, p. 101)

A este lirismo da transparência da vida particular, Kundera contrapõe, com seu Ludvik: Virão e lerão seus bilhetes, suas cartas mais particulares; Marketa marca um espírito

de época, o otimismo lógico; mais adiante, acompanhamos Ludvik a dividir o leito de amor

com Lucie e a onipresença da vigilância, não mais a do Partido, mas a do Exército. Kundera (1988, p. 16) ao colocar em relação as dimensões entre público e privado, em contextos marcados por diversas formas de totalitarismo (mesmo em contextos em que a democracia é colocada como absoluta), considera que “a unidade da humanidade significa: ninguém pode escapar em nenhum lugar”. Ou, há culpa e desculpantes por toda parte: o poder, o poder. Milan Kundera, com seu Ludvik, ajuda-nos a colocar que a culpa implica modos de vida e de pensamento: a vida tornada um tribunal.