• Nenhum resultado encontrado

2 REVISÃO DA LITERATURA: O QUE NOS DIZEM AS PESQUISAS QUE DIALOGAM

4.2 LIBERDADE DISCIPLINADA

Cabe lembrar, que a liberdade disciplinada, foi um dos pilares de sustentação do Manifesto dos Educadores: mais uma vez convocados13 de 1959, diz o Manifesto:

Porque não nos dispomos a fanfarrear nas festas do ensino livre, nessa orgia de tentativas e erros a que resvalaria a educação no país, não se segue nem se há de concluir que pregamos o monopólio do Estado. Pela liberdade disciplinada, é que somos. Monopólio só existiria quando a educação funcionasse como instrumento político e ideológico do Estado, como um instrumento de dominação. Que não existe ele entre nós, estão aí por prova a legislação do ensino que abre à iniciativa privada amplas possibilidades de exploração de quaisquer domínios da atividade educacional, e o número crescente de escolas particulares de todos os graus e tipos que por aí se fundaram e funcionam, não sob o olho inquisidor e implacável do Estado, mas com uma indulgência excessiva dos poderes públicos em face de deficiências de toda ordem e de ambições de lucro, a que, salvo não poucas e honrosas excepções, devem tantas instituições privadas de ensino secundário a pecha de "balcões de comércio", como as batizou Fernando de Magalhães há mais de vinte e cinco anos, numa crítica severa de nosso sistema educacional. (MANIFESTO DOS EDUCADORES, 2006, p. 214, grifo nosso).

Os signatários do manifesto de 1959 destacaram que a iniciativa privada, visando essencialmente o lucro e não a garantia de direitos, proporcionou na época, um número crescente de escolas com ensino duvidoso; acabou limitando a fiscalização estatal devido a conflitos de interesses; e, por consequência, o direito foi sendo substituído por "balcões de comércio". Percebemos que, os signatários não defendiam o monopólio estatal da educação, mas o controle estatal para a garantia do direito à educação.

Consideramos esse movimento de grande importância, pois, de certo modo, a reivindicação foi contemplada na Constituição de 1988. Tanto que, de maneira expressa, o artigo 209 estabeleceu o ensino livre à iniciativa privada, desde que o Poder Público autorize, avalie e garanta que as normas da educação nacional sejam cumpridas integralmente e sem desvios (BRASIL, 1998).

Assim, o dever primeiro em garantir a educação a todos é do Estado. Mas, complementarmente faculta-se à oferta da educação a terceiros, desde que sigam suas normas impostas. Dessa forma, o Estado busca a garantia do pleno exercício do direito à educação a

13

Redigido por Fernando de Azevedo em 1959 e assinado por 164 (cento e sessenta e quatro) pessoas importantes no cenário educacional. Desse modo, "[...] conforme escreveu Fernando de Azevedo, o documento contém algumas respostas diretas às questões prementes do momento pelo qual passava a educação brasileira na sua relação com a sociedade brasileira. Para dar essas respostas, o documento seguia duas linhas básicas: a defesa da escola pública como um instrumento democrático e, segundo, a discussão da relação entre a educação e o desenvolvimento econômico" (DE CARVALHO, 2008, p.09).

toda sociedade brasileira. Em síntese, a iniciativa privada quando se submete à disciplina estatal, se compromete com as regras gerais da educação expressas na Constituição Federal, e também, com a Convenção dos Direitos da pessoa com deficiência (BRASIL, 1988). Nessa ordem, Cury (2008, p. 17-19) ressalta que

[...] o dever do Estado em propiciar o ensino é imperativo e está subordinado àquele direito de aprender. Esse ponto de partida não fica garantido a partir das vontades individuais, portanto, só a intervenção de um poder maior poderá fazer desse bem um imperativo para uma igualdade de condições e de oportunidades. [...] No campo da liberdade de ensino, é o ensino que dá o tom; no campo público, é a aprendizagem do estudante que marca o direito. Contudo, para ambos a relação

aprendizagem/ ensino ou ensino/ aprendizagem representa um bem público ainda que mediado pela iniciativa privada (grifo nosso).

Além da participação da iniciativa privada em sentido stricto, a Constituição Federal também faculta às Instituições Especializadas a possibilidade de participar da educação. Nesse sentido, o Estado se reserva o direito de direcionar os recursos públicos às instituições como o objetivo de expandir seu campo de atuação. Entretanto, no nosso entendimento, trata-se de uma mera possibilidade, pois os recursos públicos devem ser aplicados primordialmente na educação pública, conforme estabelece o texto constitucional:

Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas que:

I - comprovem finalidade não-lucrativa e não distribuam resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcela de seu patrimônio sob nenhuma forma ou pretexto;

II - apliquem seus excedentes financeiros em educação;

III - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades;

IV - prestem contas ao Poder Público dos recursos recebidos (BRASIL, 1988, grifo nosso).

No entanto, esse dispositivo contribui para o afloramento de uma tendência liberal que enaltece a iniciativa privada em detrimento do serviço público. Percebe-se, desse modo, "[...] o esforço do capital para adentrar todos os setores da sociedade, inclusive a educação, buscando transformá-la também em objeto do mercado" (MICHELS; GARCIA 2014, p. 168).

Tomados por esse entendimento, encontramos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) posicionamentos firmes a respeito do limite da autonomia da vontade dos particulares.

A ministra Ellen Gracie, que foi relatora do Recurso Extraordinário (RE 201819/ RJ) 14 de 2005, taxativamente pacificou o seguinte entendimento:

A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República [...]. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem

jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e

garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e

definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se

impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. (BRASIL, 2005, grifo nosso).

Na mesma direção, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI, 1266)15 improcedente, o ministro relator Eros Grau firmou o entendimento que há

[...] serviço público mesmo na prestação, pelo setor privado, dos serviços de educação. Por isso mesmo é que o art. 209 da Constituição declara expressamente ser livre à iniciativa privada o ensino. Se o ensino não fosse serviço público, não haveria razão para a afirmação do preceito constitucional. Não importa quem

preste tais serviços - União, Estados-membros e municípios ou particulares. Em qualquer hipótese, haverá serviço público. No caso da educação, diz ainda a

Constituição, no artigo 209, que ela pode ser exercida pela iniciativa privada,

desde que atendidas duas condições: o cumprimento das normas gerais da educação nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo poder público

(GRAU, 2005, p.01, grifo nosso).

Por esse ângulo, fica evidente que ao tratar sobre a garantia do direito educacional, não cabe nem ao Estado e muito menos a iniciativa privada, ventilar a possibilidade de seleção de pessoas a atender, de problemas a resolver ou serviços a ofertar. Desse modo, o fim social estabelecido nas diretrizes gerais da educação, como regra geral, tem prevalência sobre a expectativa de particulares de lucro ou de qualquer outro tipo de favorecimento. Esse entendimento facilita a compreensão de que

[...] a escola tem como finalidade ser espaço de aprendizagem de conteúdos, de valores e de competências para continuar aprendendo [...]. Sem a consciência dessa finalidade e dessa função, a escola pode derivar para muitas coisas e descurar do fundamental, communio mínima estabelecida oficialmente (CURY, 2008, p. 20).

14

O Recurso Extraordinário foi interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que mantivera decisão de reintegração de associado excluído do quadro da sociedade civil União Brasileira de Compositores (UBC), sem a garantia da ampla defesa e do contraditório.

15

A ação proposta pela Confederação Nacional de Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) requeria que se declarasse a inconstitucionalidade da Lei n.º 6.586/94 do Estado da Bahia, que estabelecia a adoção de material escolar e de livros didáticos pelos estabelecimentos de particulares de ensino pré-escolar.

Ao observar o fundamento da liberdade disciplinada estabelecida pelo Estado para que terceiros colaborarem com oferta da educação, fica evidente que a finalidade é a garantida do direito público por meio da ampliação de oportunidades. Todavia, no nosso entendimento, ampliar não consiste em subverter a lógica da primazia do investimento no ensino público e muito menos ser uma forma de diminuir o dever do Estado.

Cabe frisar, que só o Estado tem a possibilidade de proporcionar igualdades de condições, pois dificilmente a iniciativa privada buscará a garantia do direito independentemente do investimento necessário (CURY, 2008). Contudo, consideramos razoável que, em caso de necessidade, as Instituições Especializadas constituam uma alternativa para a administração pública, desde que sigam a disciplina estatal e tenham o apoio preciso (JANUZZI, 2015). Todavia, compreendemos que essa opção não deve virar regra.

Vale lembrar ainda, que por meio dos mecanismos de controle social o Estado também admite a participação indireta da sociedade civil na Educação. Citamos, por exemplo, a participação nas tomadas de decisões durante as conferências da área educacional, nas reuniões dos conselhos fiscais e dos fóruns específicos (BOSCHETTI, 2009). Embora, caracterizem-se como participação indireta, esses outros tipos de participação assumem absoluta pertinência.

Acreditamos que a liberdade disciplinada constitui-se em uma marca própria do Estado Democrático na educação, onde se busca uma estratégia de atuação comum sem ser uniforme ou dispersa e a unidade sem desconsiderar os limites federativos (CURY, 2008).

Salientamos, por fim, que as decisões tomadas pela administração pública implicam nas despesas orçamentárias. Dessa forma, abordamos no próximo item do capítulo, algumas características da principal fonte de recursos da Educação Especial - o FUNDEB.