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CAPÍTULO 2 – POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À HOMOFOBIA NAS

3.2. Direito à educação e o princípio da liberdade identitária

3.2.2 Liberdade identitária e a moralidade convencional

Uma compreensão liberal dos direitos exige a proteção da independência ética dos indivíduos. E a liberdade de formação, transformação e afirmação da própria identidade se compatibiliza com essa visão liberal, enquanto a ideia de imposição de convicções éticas de uma maioria sobre as minorias é uma visão antiliberal e inadmissível em um sistema regido por uma constituição que assegura direitos individuais de liberdade e direitos políticos de igual participação na composição da vontade pública. Em uma democracia constitucional, o Estado não pode limitar a independência ética de suas cidadãs, exceto para garantir outros direitos necessários à proteção da vida, da segurança e da liberdade de outrem, mesmo na hipótese em que haja maior popularidade de uma visão ética endossada pela maioria, mas controversa ao ponto de ser rechaçada por uma minoria168 (DWORKIN, 2011, p. 378). O argumento contrário afirma que a maioria tem direito de viver e de criar sua prole em uma cultura ética que julga conveniente, e isso incluiria, como instrumento de tal afirmação, uma legítima batalha pela propagação impositiva das normas sexuais cultivadas.

A difundida doutrina que podemos chamar de “moralismo convencional”169 é composta por dois argumentos: a) a sociedade tem um direito de proteger a si mesma e b) a sociedade tem direito de seguir suas próprias luzes. O argumento de que a sociedade tem um

168 Sobre a relação entre independência ética e a ética da maioria: “No entanto, devemos insistir para que esse ambiente seja criado sob a égide da independência ética, que seja criado organicamente pelas decisões de milhões de pessoas com a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e não por maiorias políticas que imponham as suas decisões a toda a gente” (DWORKIN, 2011, p. 380).

169 Dworkin discute os argumentos do moralismo convencional com base em alegações feitas pelo lorde inglês Devlin, em 1958, durante a segunda Maccabaean Lecture na Academia Britânica, cujo pronunciamento foi intitulado “The Enforcement of Morals”, em que se discutia a prática da homossexualidade (DWORKIN, 2007, pp. 371-398).

“direito” de proteger sua própria existência inclui um pretenso direito da maioria de defender suas próprias convicções éticas e de defender seu ambiente social das transformações que almeja evitar. A sociedade seria livre para fazer valer tal direito quando o sentimento público de rejeição a um comportamento que ela julga imoral causar suficiente repulsa e indignação, mesmo que esse comportamento não tenha efeitos diretos sobre outros indivíduos em particular, e a homossexualidade poderia ser legitimamente coibida caso seja considerada abominável com tal intensidade. Então as legisladoras devem se manifestar sobre algumas questões morais especialmente estruturantes da sociedade – e os padrões e relações formados “privadamente” fazem parte dessa dimensão estruturante do ambiente em que nós e nossa prole vivemos – e decidir se as instituições porventura ameaçadas são suficientemente importantes para serem protegidas às custas da liberdade humana. A esse propósito, as legisladoras devem se orientar com base em um “consenso da maioria” [sic] (Ibid., pp. 374- 382).

Dworkin replica que essa é uma compreensão incorreta do que significa desaprovar com base em princípios de moralidade pública; considera esse um “conceito discriminatório de uma posição moral”. Motivações de preconceito não são critérios pertinentes para demarcar as posições morais. Nossa cultura democrática reconhece como princípio que um homem ou uma mulher não podem ser consideradas moralmente inferiores com base em características que não possam evitar ter. Não seria coerente declarar a inferioridade moral de homossexuais quando se reconhece que é errado declarar a inferioridade moral de minorias raciais, étnicas, religiosas ou linguísticas; caso isso ocorresse, haveria um grave problema de incoerência.170 As razões de alguém para repudiar o comportamento de outrem devem pressupor coerência com as teorias morais que essas razões pressupõem. Assim conclui DWORKIN (Id., p. 393):

Sendo assim, os princípios democráticos que seguimos não exigem a aplicação do consenso, pois a crença de que preconceitos, aversões pessoais e racionalizações não justificam a restrição da liberdade alheia ocupa, ela mesma, uma posição fundamental e crítica em nossa moral popular. Por outro lado, nem a comunidade como um todo teria o direito de orientar-se por suas próprias luzes, porque a

170 Confira-se a passagem de Dworkin sobre a incoerência de se tratar a liberdade religiosa como prioritária, mas ao mesmo tempo negar aos outros o direito à sua própria liberdade de consciência e de crença: “Não se pode declarar um direito à liberdade religiosa e, depois, rejeitar os direitos à liberdade de escolha nessas outras questões essenciais sem revelar uma contradição clara. Se insistirmos para que nenhuma religião específica seja tratada como especial na política, não podemos tratar a própria religião como especial na política, como se fosse mais central para a dignidade do que a identificação sexual, por exemplo. Assim, não devemos tratar a religião como sui generis. É apenas uma consequência do direito mais geral à independência ética em questões essenciais” (Ibid., p. 385).

comunidade não estende esse privilégio aos que agem com base em preconceito, racionalização ou aversão pessoal.

A identidade constitucional não se confunde com as demais identidades pré- constitucionais (identidades éticas, religiosas, culturais, étnicas), mas incorpora seletivamente algumas das tradições pré-constitucionais que sejam com ela compatíveis através de um processo de reconstrução voltado para o equilíbrio entre a rejeição e a assimilação da tradição, entre o pluralismo inerente ao constitucionalismo contemporâneo e a tradição, entre a herança dos limites estruturais inerentes ao constitucionalismo e a herança sociocultural da comunidade política (ROSENFELD, 2003a, pp. 21-27, 97). A Constituição filtra, através da articulação entre discursos metafóricos e metonímicos, as tradições preexistentes e incorpora aquelas que não ameaçam sua integridade:171 nesse sentido a Constituição é uma nova tradição, ou melhor, é a “contratradição” que deve ser compartilhada pela comunidade política pluralista.

O argumento conservador discutido no Capítulo 1, de que as famílias que cultivam valores tradicionais têm o direito moral de defender a tradição de uma possível proliferação de comportamentos homossexuais a partir da incorporação da não heterossexualidade na identidade de crianças e adolescentes, não possui qualquer correspondência com uma noção de moral ou de ética compatível com nossa cultural política, com nossa identidade constitucional ou com nossas noções sobre democracia. Uma identidade constitucional pluralista não admite esse tipo de tradição preexistente de tal modo incompatível com os princípios do constitucionalismo; a única tradição que deve ser compartilhada em caráter obrigatório pela comunidade é a própria tradição das liberdades democráticas e dos direitos de igualdade, é o retorno a um recente passado de orgulho por nossa cambiante história republicana, tal como o conceito habermasiano de patriotismo constitucional. A proteção da liberdade identitária integra a independência ética do indivíduo que não pode ser vilipendiada pela comunidade a não ser em eventuais situações de proteção dos direitos de outro indivíduo. Não é o caso da proteção das identidades sexuais. Reconhecemos que as identidades sexuais são formadas em processos dinâmicos, transformativos e complexos, e em longo prazo a alteração das identidades pessoais poderá ter (e terá) um impacto sobre o modo como

171 ROSENFELD (2003a, p. 106) destaca três critérios para a incorporação da tradição preexistente pela nova (contra)tradição constitucional: a) é preciso que uma tradição não ameace a contratradição constitucional; b) é preciso que essa tradição não enfraqueça os limites do constitucionalismo e c) ela deve ser suscetível de ser aceita como válida por uma expressiva maioria no interior da comunidade política.

passaremos a viver nossas (novas) tradições. Agentes conservadores que se opõem à discussão de gênero e sexualidade nas escolas, como o deputado Jair Bolsonaro, sabem muito bem disso e por isso temem o poder desestabilizador das políticas públicas voltadas à tematização do gênero e da sexualidade. Não obstante, nada podem fazer para impedi-las sem que rompam o compromisso suposto de que todas agimos orientadas por um sistema coerente de princípios de justiça que obtém legitimidade ao tratar a todas e a todos com igual consideração e igual respeito.