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Além do sensacionalismo, Machado de Assis também detectou na imprensa de sua época um certo gosto em endossar a opinião dominante, ao incentivar, por exemplo, a prática do direito de propriedade, principal mote do regime escravocrata. Era prática comum os jornais se comprometerem a publicar anúncios que oferecessem recompensa a quem capturasse os escravos, considerados como a principal mercadoria daquele ciclo econômico. É necessário salientar que esse tipo de publicidade era uma primordial fonte de renda para o jornalismo brasileiro. Logo, é paradoxal que uma imprensa que tem propósito a luta das liberdades individuais, pudesse no Brasil se concretizar como um

elemento que contribuiu para o reforço da mentalidade escravocrata. Com base no conto machadiano “Pai contra mãe”, pode-se compreender como a imprensa, instituição representativa do progresso e espaço de combate à tirania, funcionou, no Brasil, como veículo que irá facilitar a garantia do direito de propriedade e, portanto, comprometida com os interesses da classe senhorial – os donos do poder:

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia da gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á generosamente”, – ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. (MACHADO DE ASSIS, 1997: 660) (grifo meu).

No trânsito mercadológico do século XIX, o escravo e os objetos tinham o mesmo valor, conforme mostra Machado na crônica “Bons Dias!”, de 26 de junho de 1888. Munido da poética da dissimulação, o cronista finge ocupar o lugar do homem branco para tornar pública a corrente ideológica da classe dominante, ao comparar os anúncios de venda de escravo, publicados nos jornais, à técnica utilizada pelos comerciantes no tocante à venda das chitas, dos cretons, os morins – tecidos importados que vestiam a burguesia. De acordo com o cronista, a exaltação das qualidades dos panos e dos escravos era a ‘arma’ do negócio.

Momentos antes da promulgação da Lei Áurea, o Brasil viveu um caloroso debate entre aqueles que opinavam que o fim da escravidão ofereceria um colapso irreversível nas instituições nacionais, e os abolicionistas, que lutavam pela libertação dos negros e pelo reconhecimento deles enquanto sujeito e merecedor das benesses sociais assim como os brancos. Machado de Assis participou desse debate, expressando o ponto-de- vista do escravo, tanto africano quanto afro-descendente. Para tanto, Machado proporcionou a fala a um escravizado para que ele mesmo opinasse a respeito do impacto da medida abolicionista em sua vida. Vejamos o que disse o Pai Silvério, na crônica “Gazeta de Holanda” (produzida em versos), de 27/09/1887, ao ser entrevistado pelo cronista:

Outro rumo... Ah! sim; falava Da outra semana. Cheia Esteve de gente escrava, Desde o almoço até a ceia (...)

Uma questão – se, fundado Este regimem presente, pode ser considerado

O escravo inda escravo ou gente. (...)

Eu, que suponho acertado, Sempre nos casos como esses, Indagar do interessado

Onde acha os seus interesses, Chamei cá do meu poleiro Um preto que ia passando, Carregando um tabuleiro, Carregando e apregoando. E disse-lhe: ‘Pai Silvério,

Guarda as alfaces e as couves; Tenho negócio mais sério,

Quero que m’o expliques. Ouves?’ Contei-lhe em palavras lisas, Quais as teses do Instituto, Opiniões e divisas.

Que há de responder-me o bruto? ‘Meu senhor, eu, entra ano, sai ano, trabalho nisto; Há muito senhor humano, Mas o meu é nunca visto. ‘Pancada, quando não vendo, Pancada que dói, que arde; Se vendo o que ando vendendo, Pancada, por chegar tarde. ‘Dia santo nem Domingo Não tenho. Comida pouca: Pires de feijão, e um pingo De café, que molha a boca.

‘Por isso, digo ao perfeito Instituto, grande e bravo: Tu falou muito direito,

Tu tá livre, eu fico escravo’ (1938:384-387) (grifo meu).

Quem está livre de fato são os integrantes do instituto, que discutiam a condição dos escravos, isto é, a própria elite. Reparem como Machado utiliza o verbo “ficar” e não o verbo “ser”, apontando que a condição escrava não constitui a identidade do negro e sim a construção cultural de uma hegemonia branca que reservou ao afro-descendente o exclusivo papel de força de trabalho. A declaração de Pai Silvério: “eu fico escravo” – mostra antecipadamente que o 13 de maio seria insuficiente aos negros, pois mesmo libertos, eles ficariam dependentes dos seus antigos senhores, pois teriam grandes dificuldades em conseguir emprego e disputar de igual para igual um lugar ao sol junto aos homens livres. Segundo Otávio Ianni, Machado de Assis estava consciente desta realidade, apresentando por isso uma postura cética diante da Abolição, visto que “para muitos, a alforria poderia significar uma calamidade, quanto às condições de vida e trabalho que teriam de enfrentar” (1998:22). Raimundo Faoro (1998) também sublinha a visão de Machado de Assis, que se opôs ao regime escravista, sem contudo se deixar levar pela idéia de que a Abolição da Escravatura seria a panacéia para o conflito étnico no Brasil:

Havia alguma coisa diferente no seu modo de sentir a realidade do Rio de Janeiro, sem o véu culto, ilustrado, falsamente livresco dos seus contemporâneos, embriagados de fórmulas. Somente ele, isolado na multidão que aclama, ousou manifestar a inanidade do 13 de maio. Livre o escravo, estará na rua, sem emprego, ou receberá do senhor a esmola do salário, em troca de igual trabalho, com as antigas pancadas e injúrias (1988: 323).

A denúncia da condição crítica do negro feita por Machado de Assis mostra um jornalismo empenhado em dar voz também ao ‘excluído’, investigar as mazelas das desigualdades étnica e social e buscar subverter a ordem de uma certa prática publicitária que sustenta os jornais, na base da submissão da liberdade pelo direito de propriedade.