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“Carnaval, sedução, palco de ilusão Vista sua fantasia Povo e Liga se abraçam, 20 anos se passam...”29

Com as apresentações mais rentáveis, logo após o carnaval de 1984 um grupo entre as grandes escolas de samba fundaria, em 24 de julho, a Liga das Escolas de Samba do Rio de

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J.L. Froes, Danoninho, Edmar, Jorge 101, Fenando Lima, R. França e Lee Santana. Carnaval, doce ilusão. A gente se vê aqui no meio da multidão: 20 anos de Liga. Caprichosos de Pilares, 2005.

Janeiro (Liesa), que se tornou representante oficial das agremiações do Grupo Especial e principal interlocutor e parceiro da prefeitura e da Riotur na organização dos desfiles a partir de então. A iniciativa foi tomada devido a divergências entre algumas das maiores escolas da cidade e a Associação das Escolas de Samba, que reunia 52 filiadas. As agremiações maiores se sentiam prejudicadas pelo fato de o desfile delas arrecadar a grande maioria do dinheiro conseguido no carnaval e, no fim, a quantia ser dividida igualmente também com as menores, como aponta comunicado do arquivo da Liesa divulgado no ato de fundação da Liga:

“As escolas de samba Acadêmicos do Salgueiro, Beija-Flor de Nilópolis, Caprichosos de Pilares, Estação Primeira de Mangueira, Imperatriz Leopoldinense, Império Serrano, Mocidade Independente de Padre Miguel, Portela, União da Ilha do Governador e Unidos de Vila Isabel, após terem se desligado da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, resolveram fundar , entidade que as representará perante ao público e às autoridades. Tal atitude foi tomada ante as dificuldades causadas pela estrutura vigente naquela associação e que lhes geravam constantes transtornos na organização dos desfiles.” (ARQUIVO DA LIESA, 1984)

A partir daí, a Liesa imprime um caráter mais empresarial e que tenta dar maior autonomia das escolas de samba em relação ao poder público. Foram então colocadas em prática ações que visavam gerar recursos para as agremiações, como a fundação de uma gravadora própria (Gravasamba), com um contrato com a RCA, que logo em 1985 vendeu cerca de um milhão e duzentas mil cópias, número extremamente expressivo para o mercado fonográfico. Além disso, foi iniciado um confronto com a Riotur pelo controle da organização dos desfiles. Em 1987, o primeiro em que a Liga foi totalmente responsável pelos direitos de transmissão, as televisões pagaram US$ 450 mil às escolas. Em 1992, essa disputa acabou resultando num acordo estabelecendo que atribuía à Liga a direção artística do espetáculo e à Riotur a administração das instalações, com a Liesa beneficiada com o total do montante relativo à venda dos direitos de televisionamento, e 50% da arrecadação da vendagem de ingressos, relação que se mantém até hoje.

Assim, de acordo com Cavalcanti, a Liga racionalizou financeira e administrativamente aspectos importantes da organização do desfile, tomando para si a coordenação do julgamento, escolhendo os jurados, discutindo os quesitos, enquanto as escolas também organizavam sua administração e comercializavam seu funcionamento.

No entanto, esse movimento de organização empresarial dentro das escolas é, sem dúvida, bastante dúbio, já que é mantido nelas o poder de banqueiros do jogo do bicho,

proibido no país desde 1946 e que desde então guarda relação íntima com diversas agremiações numa espécie de mecenato local. As escolas de samba se tornaram para os bicheiros a forma de se integrar à população, numa dinâmica de patronato, ajudas pessoais e benfeitorias públicas em troca da lealdade do povo, muitas vezes com claros interesses políticos, como no caso de Aniz Abrahão David, o Anízio, da Beija-Flor, cuja família tem diversos representantes no governo municipal de Nilópolis.

Assim, agremiações que experimentaram grande crescimento nas décadas de 70 e 80 são justo aquelas cuja presença de bicheiros é marcante. Além da Beija-Flor, podem ser citadas também a Imperatriz Leopoldinense, com Luiz Pacheco Drummond; Unidos de Vila Isabel, com Ailton Guimarães Jorge; e Mocidade Independente de Padre Miguel, com Castor de Andrade.

Essa relação entre o jogo do bicho e as agremiações se intensifica muito ao longo dos anos 80 e, no início dos 90, já está presente em quase todas grandes escolas, inclusive em outras que aparecem com muita força no cenário carioca, como Unidos do Viradouro, de Niterói, cujo patrono e presidente era na época o bicheiro José Carlos Monassa.

Logo, como afirma Cavalcanti, a presença dos banqueiros do bicho nas agremiações em curso de organização administrativa ressalta uma dualidade entre empresariamento e patronagem que “fala para a sociedade mais ampla o discurso da racionalização econômica, e mantém, entretanto, para dentro das escolas em que se cediam o estrito controle do processo de mercantilização que favorecem.”30. O dinheiro em circulação nas agremiações, portanto, passava por um circuito pessoalizado e perpassado por valores como o de lealdade, autoridade e honra, vindo daí a figura do presidente de honra da agremiação, na maior parte das vezes o bicheiro, que aproveita essa relação para usar as agremiações na lavagem de dinheiro ilegal do jogo.

E a fundação da Liesa pelos próprios patronos das escolas veio reforçar o poder deles na administração do espetáculo. Pouco depois de fundada, a Liga foi assumida pelo então presidente de honra e patrono da Mocidade, Castor de Andrade, que assumiu a presidência da Liesa até serem estabelecidos um estatuto, um regimento interno e um alvará de funcionamento. Nas eleições que se seguiram, venceu o Anízio da Beija-Flor. Desde então, os bicheiros se revezam no poder, que já esteve também nas mãos de Luiz Pacheco Drummond, da Imperatriz, e Ailton Guimarães Jorge, que se desvinculou da Unidos de Vila Isabel e é o atual presidente da Liesa.

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Nesse período, como destaca Cavalcanti, assiste-se a representantes do poder público cumprimentando contraventores na avenida, legitimando o poder do patronato nos espaços vazios deixados pelos governos que, de certa forma, foram preenchidos pelos bicheiros em diversas comunidades.

Na década de 90, mais um passo, e as atribuições da Liga extrapolam a direção artística do espetáculo, com a Liesa passando também a controlar a administração financeira dos desfiles, como aponta a nota de esclarecimento do prefeito do Rio, Cesar Maia, para justificar a ruptura que aconteceu em 1995 entre o poder público e a administração das apresentações:

“O contrato de gestão de 1992 alocou às escolas a responsabilidade pelo espetáculo, como deveria ser. Nossa administração deu dois passos à frente. O primeiro, de fundo comercial, foi desenvolver um sistema de venda e captação de recursos – direta e indiretamente – em torno do desfile que permitisse o autofinanciamento das escolas, liberando-as de qualquer tipo de dependência financeira, seja de bicheiros- patronos, seja de qualquer outro tipo de mecenato.

(...)

Com isso, separamos inteiramente as funções públicas – responsabilidade com o evento e o equipamento – das funções particulares e de responsabilidade exclusiva das escolas, como já há muitos anos acontece com os clubes de futebol.” (ARAÚJO, 2003, p. 251 a 253)

Foi apenas no ano 2000, com o carnaval de lembrança dos 500 anos de ocupação do Brasil pelos portugueses, é que a prefeitura voltou a subvencionar os desfiles, repassando uma verba de R$ 500 mil para cada agremiação do Grupo Especial, o que acabou se mantendo nos anos seguintes. Apesar disso, a ruptura de 1995 representou um marco de independência administrativa das escolas, que, de certo, não pagam mais seus desfiles apenas com o dinheiro repassado pelo poder público e as arrecadações de ingressos, transmissão e venda de CD, recorrendo agora a outras estratégias, como o patrocínio de empresas, para financiar seu carnaval.