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A música foi assunto da primeira crônica publicada por Lima Barreto, no pequeno jornal estudantil A Lanterna224, em 1˚ de dezembro de 1900 e intitulada Francisco Braga –

concertos sinfônicos. Lima apresenta um tom ufanista, característica incomum aos seus escritos futuros, mais próprio às suas personagens, como o Major Policarpo Quaresma, ao enunciar o Brasil como um país abençoado225 com talentos artísticos (se comparado aos seus vizinhos e

tendo a Europa como modelo), inclusive musicais. Ressalva, entretanto, que faltaria gosto à população, devido à educação de baixa qualidade, para apreciar os grandes artistas nacionais. Esta falta de gosto, indiferente aos artistas nacionais de relevo, seria, inclusive, um traço marcante dos brasileiros: “[...] mas a clássica e santa indiferença do povo estiola, pelo desânimo, os rebentos que de vez em quando apontam.” (LIMA BARRETO, 2004, v.1, p.59) Por fim, o escritor conclui que o músico que dá nome à crônica nunca seria um artista popular, o que talvez indicaria uma qualidade de primeira ordem.

Já em sua primeira crônica, Lima Barreto apresenta a conturbada relação entre o senso estético da obra e a sua popularidade. Nas duas décadas seguintes, o duplo estética- popularidade será retomado quando o escritor tratar do carnaval e das canções carnavalescas.

Em Um domingo de páscoa226, Lima reproduz Ciranda, cirandinha e comenta:

Não é de hoje que muitas canções populares não querem exprimir nada.[...] Na própria ‘Ciranda’, que é tão comum, para conhecer-lhe o sentido e significação, precisamos ir ao dicionário e saber que ‘ciranda’ é uma peneira de junco, usada na Europa para joeirar cereais. (LIMA BARRETO, 1961a, p.260)

224 Conforme atestam Beatriz Resende e Rachel Valença (Lima Barreto, 2004, v.1, p.60 ), este pequeno jornal estudantil fundado por Júlio Pompeu de Castro e Albuquerque se apresentava como “órgão oficioso da mocidade de nossas escolas superiores”. O amigo de Lima Bastos Tigre também colaborava com o jornal. Vale relembrar que neste momento o escritor ainda cursava a Escola Politécnica.

225 “Entretanto, poucos países novos foram favorecidos do bom Deus por uma floração tão brilhante de músicos, pintores, poetas [...].” (LIMA BARRETO, 2004, v.1, p.59)

Na mesma crônica o autor reproduz trechos da canção Samba-lelê227, e tece o seguinte comentário: “[...] seria própria para desafiar a paciência de um sábio investigador, a fim de lhe explicar o seu sentido e objeto.” (LIMA BARRETO, 1961a, p.260)

Em Sobre o carnaval228, Lima observa que escreve em um sábado véspera de

carnaval. Ele atribui à idade (o escritor beirava os 40) o seu aborrecimento com o mesmo. “Nunca fui carnavalesco, mas, como todo melancólico e contemplativo, gosto do ruído e da multidão e não fugia a ele.” (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.137) Caso fosse rico, participaria das grandes aglomerações humanas (festival no Ganges, peregrinação à Meca no Ramadã). Apesar disto, se pudesse, fugiria do Rio de Janeiro durante o carnaval.

Os motivos que impulsionam seu desejo não são os mesmos da polícia e nem os da Liga pela Moralidade. Lima explica o que o aborrece:

[...] é a conclusão a que fatalmente chego ao ouvir as suas cantigas, sambas, fados, etc., ao ouvir toda essa poética popular e espontânea, de não possuir o nosso povo, a nossa massa anônima, nenhuma inteligência e de faltar-lhe por completo o senso comum. Mete horror semelhante pensamento. (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.137)

O escritor reafirma que pouco lhe importa a imoralidade ou a chulice das canções (assinala que a polícia impede a execução das cantigas mais “poluídas”). Pondera, ainda, que, de todo jeito, se as aspirações intelectuais e artísticas fossem seguidas, automaticamente já se combateria a imoralidade e a chulice nas letras das canções. Lima ainda reproduz um telegrama de Belo Horizonte publicado em A Noite, no qual a Liga pela Moralidade mineira requere à polícia a proibição da execução de tangos e maxixes pelas bandas que vão se apresentar nos coretos da Avenida Afonso Pena durante o carnaval, pois tais ritmos seriam deveras provocantes229.

É curioso observar que na crônica Bailes e divertimentos suburbanos Lima Barreto (2004, v. 2, p.501) vai justamente reclamar da “licenciosidade” das novas danças de origem africana, não deixando de observar que “Passando para os pés dos civilizados, elas são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais.”

227 A canção Samba-lelê será analisada neste capítulo, quando se discutirá o racismo presente nas canções carnavalescas.

228 Veículo e data desconhecidos. Há indicação de provável publicação em fevereiro de 1920.

229 Dois ritmos afro-americanos. Conforme será estudado adiante neste capítulo, as danças de matrizes afro eram vistas sob os estigmas do barbarismo e da sensualidade. O atrativo, de acordo com a historiadora Martha Abreu (2017), estaria presente justamente na “hediondez”.

Lima acusa os compositores populares de, sem recursos intelectuais e artísticos, recorrerem a estribilhos e cantigas sem nexo. Tal demonstração de pobreza mental lhe causaria piedade, indiferença e aborrecimento.

Lima Barreto assegura conhecer a poesia dos alienados230 (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.138), e dispara: se comparada à poesia dos carnavalescos, a dos loucos apresentaria vantagem na concatenação de ideias, no sentido e mesmo no fazer poético. Reconhece que seria tolice exigir dos poetas dos cordões e dos ranchos carnavalescos231 sentido impecável, mas ao menos tais poetas deveriam ser:

[...] capazes de não desmentir o estro dos nossos humildes cantores roceiros do “desafio”, que são verdadeiramente povo; entretanto, raramente caem com as suas quadras no contra-senso ou, melhor, no sem-senso, agravado do palavreado oco e idiota da atual musa carnavalesca. (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.138)

Além de culpar os poetas, o escritor incrimina também a imprensa, pois ela publicaria esta “lírica atroz e sem sentido”, envaidecendo os autores. Argumenta que a imprensa deveria ser mais criteriosa na publicação e na apreciação, pois assim os poetas carnavalescos melhorariam.

Após realizar a exegese de mais duas canções, Lima Barreto faz um apelo:

Fazendo estas despretensiosas considerações, não me move nenhuma espécie de antipatia pelo folgar do povo; mas, pedir unicamente a ele próprio que nessa sua folgança, nesse poetar de sua alma alanceada, quando procura, nestes três dias, esquecer seu penar e a sua dor, no riso, no gargalhar e no estonteamento, puséssemos seus trovadores mais gosto, mais sentido, compusessem mais cantares que pudessem ser entendidos, coisa que não lhes é impossível, pois todos conhecemos as poesias roceiras, as quadras populares, quase sempre expressivas e denunciando verdadeira poesia. (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.140)

O autor adota um tom conciliador ao concluir a crônica. Ele exalta o caráter narcotizante do carnaval e aponta para as poesias roceiras como uma poética nacional-popular exemplar. Lima Barreto assegura que suas observações demeritórias não seriam causadas por nenhuma antipatia pelo povo.

É possível observar como o escritor se coloca logo acima como elemento externo ao povo. É interessante notar as flutuações na identidade que Afonso Henriques enuncia para si em sua obra: ora faz parte do povo, ora não.

230 À época, Lima Barreto já tinha duas passagens por manicômios.

As flutuações podem ser observadas já no mês seguinte em: Legião da Mulher Brasileira.232 Neste texto, Lima abre com críticas às feministas e à recém fundada Legião da

Mulher Brasileira.

Em um segundo momento relata que, dias antes do carnaval, alguns de seus colegas de botequim (“me dão a honra de ouvir minhas prédicas sociais e políticas”) 233 fundaram “um

cordão, rancho ou bloco”234 chamado Rapaduras Gostosas. Pode-se observar a flutuação

identitária do autor na passagem a seguir, apesar de a crítica ser a mesma da crônica anterior:

Eu não sei bem por que quiseram tal nome, mas nada objetei-lhes e calei toda a crítica irreverente ou tola a semelhante manifestação de arte popular. Diabo! Eu sou do povo também; não descendo, como o presidente, de fidalgos flamengos [...]. Sou essencialmente homem do povo e criticar manifestações artísticas de pessoas da mesma condição que a minha pode parecer pretensão e soberbia. Guardei a crítica e convenci-me de que podia haver rapaduras amargas. (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.161-162)

Novamente o escritor observa falhas na concatenação de ideias dos populares em uma atividade carnavalesca. Desta vez, se inclui no povo. Apesar de não ter feito ressalvas pessoalmente aos seus companheiros neste episódio, as fazia regularmente através da imprensa. Lilia Schwarcz (2010) ressalta a ambiguidade de Lima, que lutava para refutar as teorias racistas europeias enquanto ele próprio realçava a superioridade do Velho Continente, especificamente no campo cultural, ao diminuir práticas brasileiras, especialmente quando:

[...] procurou desconsiderar sambistas e carnavalescos populares, em sua maioria negros e mestiços, assim como, de maneira oposta, entenderia os cânones literários franceses com ganhos não só dos brancos instruídos e cultivados, mas da própria civilização; da qual ele próprio achava fazer parte. (SCHWARCZ, 2010, p.37)

Lima Barreto retoma a comparação com os alienados e a crítica à música popular em O pré-carnaval235, na qual trata da publicação das letras das canções carnavalescas,

principalmente na imprensa. O escritor suburbano reforça que a poética carnavalesca é: “Pior que a dos loucos dos hospícios.” (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.489)

Nesta crônica, após reproduzir algumas letras de marchinhas nas páginas da revista, conclui: “Logo na primeira estrofe do seu hino, que chama ‘marcha’, denunciam que são

232 A.B.C., de 27-3-1920.

233 É válido observar a caracterização que o escritor faz de seus vizinhos: “[...]Manuel Parafuso, artista pintor de liso, muito consagrado pelas famílias abastadas da redondeza; o secretário era Miguel Barbalho, um rapaz acobreado da mais perfeita aparência caprina [...]” (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.162)

234 Aos olhos de Lima Barreto, assim como aos de boa parte da imprensa da época, as formas populares de carnaval, como ranchos e cordões, eram indistintas. (CUNHA, 2001, p.154)

candidatos ao primeiro prêmio de reclusão mental que em geral todos eles [compositores carnavalescos] disputam.” (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.490)

O escritor encerra a crônica reforçando suas críticas: “Enfim, a leitura desta pasmosa literatura carnavalesca, só nos pode levar a uma conclusão; é que a mentalidade nacional enfraquece e o próprio gosto popular se oblitera, em querer perder a sua espontaneidade e simplicidade.” (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.490)

Retornando à Bailes e divertimentos suburbanos, Lima Barreto (2004, v.2, p.504) reclama da mesmice dos festejos momescos, sem originalidade, nem engenho “[...] são os mesmos cordões, blocos, grupos [...]”. O escritor conclui a crônica atestando que o subúrbio não se divertiria mais. A vida estaria tão difícil que os suburbanos não se permitiriam mais as diversões familiares e equilibradas: “Precisa-se de ruído, de zambumba, de cansaço, para esquecer, para espancar as trevas que, em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para dia, acompanhando pari passu as suntuosidades republicanas. ” (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.504). Continua:

[...] o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com o álcool, com a lascívia das danças novas236 que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte-

americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos... (LIMA BARRETO, 2004, v.2, p.504)

Lima Barreto, já soturno, com o aproximar da morte, estaria menos esperançoso. Analisaria os divertimentos e o carnaval pela ótica do embotamento, do esquecimento das agruras, reforçando a crítica à baixa qualidade das canções populares. O escritor também censura a “transposição” das músicas de origem africana para os subúrbios, imitando um modismo estadunidense e europeu, que acabava por reforçar estereótipos racistas ao deslocar tais músicas de seu devido contexto, conforme observado pela historiadora Martha Abreu (2017).

O povo, oprimido, já não teria seus festejos tradicionais. Agora seria mais cômodo imitar as elites, prendendo-se em bovarismos, em ideias estrangeiras, de acordo com Lima Barreto. Este ponto será analisado a seguir. Quem sabe, ao menos no campo do divertimento, segregado e por imitação, o povo pudesse sentir o que seria a modernidade proposta por aquela jovem república.