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Lima Barreto conseguiu perceber e atacar o bovarismo da elite, da imprensa e das ciências pátrias219, que veriam o nacional pela ótica da ausência em relação ao estrangeiro. Ressaltou os preconceitos de classe e de cor que se escondiam por trás do projeto de Brasil das elites republicanas. Denunciou este projeto que se baseava nas ideias de força, violência, dissensões, de exclusão do popular, da negação da história nacional, criando uma nova, que buscava “apagar” a população negra. Alertou para os incentivos oferecidos pelos empresários e pelos governos à prática do futebol pelos trabalhadores, como uma forma de perpetuarem a dominação. Os empresários teriam trabalhadores dóceis, enquanto os governos brasileiros imporiam ao povo a “identidade brasileira”. Criticou, de forma até romântica, a mudança das práticas de entretenimento dos subúrbios, identificando nos avanços do futebol e de outros tipos de dança, como os ritmos americanos ragtime e foxtrot220, uma forma de descaracterização e

bovarismo.

218 Aqui utilizamos a expressão de comunidades políticas imaginadas aplicadas por Benedict Anderson para definir as nações. A nação seria um construto imaginado, que teria a si atrelada um significado e um valor simbólico comum - pessoas que se reconheceriam como compatriotas. Vale ressaltar que a nação seria imaginada “como uma comunidade, porque independentemente da desigualdade e da exploração efetiva que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal.” (ANDERSON, 2008, p.31-34). 219 Conforme já ressaltado por Schwarcz (2017a), os intelectuais e cientistas brasileiros, advindos, em sua grande maioria, das elites brasileiras (modernizadoras, que se diziam liberais, mas eram conservadoras no campo social, como demonstra Schwarz (2012) em vários ensaios) enfrentavam um dilema: por um lado, eles apoiavam as ideias europeias de hierarquia racial, da superioridade do branco sobre o negro, que afirmava categoricamente a impossibilidade dos povos não brancos alçarem os mais altos estágios da civilização. Por outro lado, elas queriam transmitir ao mundo a imagem de um Brasil moderno, que mesmo sendo tratado pelos europeus como um laboratório da mistura racial (o atraso do Brasil comprovaria as hierarquias raciais e a tese de que a miscigenação causava degeneração) fadado ao fracasso, a intelectualidade brasileira modificou suas ideias, considerando a miscigenação um fenômeno não totalmente negativo (alguns viam na miscigenação a única saída para o sucesso da colonização europeia nas regiões tropicais) e que a mistura racial poderia ser “curada”, através de políticas como a do branqueamento. Assim, essa intelectualidade procurava se equilibrar: justificava a dominação social e racial das elites, enquanto formulava teses que possibilitariam ao Brasil integrar o rol dos países modernos. 220 Na crônica Bailes e divertimentos suburbanos, publicada na Gazeta de Notícias, de 7-2-1922.

Coelho Neto e João do Rio podem ser colocados, a partir das crônicas analisadas neste capítulo sobre futebol, em um campo oposto ao de Lima Barreto: alinhados às elites. Defensores (podemos nos questionar até que ponto) do projeto de nação que excluiria o popular (tanto cultural quanto racialmente).

Cerca de dez anos após a morte de Lima Barreto, a elite encontra um intérprete, Gilberto Freyre, que consegue acomodar a dicotomia elite-povo, branco-negro, com sua ideia de equilíbrio de antagonismos e de democracia racial. De um lado, podemos interpretar esta acomodação e aceitação da cultura e do corpo mestiço como uma “concessão” das elites, justamente para viabilizar a imagem de um país civilizável e uno, esvaziando potenciais conflitos entre dominantes e dominados (colocando-os em igualdade, ao menos teórica). Mas este corpo e esta cultura mestiça, transformados em nacionais, permanecem sob constante tensão; a aceitação não chega a ser total nem no campo do discurso, já que o corpo nacional, agora mestiço, está sob constante pressões rumo ao branqueamento, vide que o modelo ideal continua a ser o corpo branco.

Em 1956, Gilberto Freyre escreve o prefácio do Diário Íntimo, na coleção das obras completas organizadas por Francisco de Assis Barbosa e publicadas pela editora Brasiliense, sob o título de O diário íntimo de Lima Barreto. Neste prefácio, ele afirma ter realizado o projeto de Lima Barreto de publicar uma espécie Germinal Negro221.

Freyre elogia a obra do escritor suburbano, sem deixar de expor a sua teoria das relações raciais. Lima Barreto teria sido o autor que mais “se aproximou de tais possibilidades de revelação e de interpretação da vida, de realidade, da natureza humana, tal como essa natureza ou essa realidade foi condicionada no Brasil, pelas relações entres senhores e escravos, ainda mais do que entre branco e gente de cor ou entre europeus e africanos.” (FREYRE, 1961, p.12)

Além disso, reforça que “há e houve entre nós um grande sentimento liberal com certas restrições em favor do negro”, e que 13 de Maio seria fruto de um consenso nacional. Afinal, o Brasil seria marcado por “preconceitos menos de raça do que de classe.” (FREYRE, 1961, p.16)

221 Cabe, neste momento, aprofundamento sobre este projeto literário de Lima Barreto (2011, p.47-48): “Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopeia. Animará um drama sombrio, trágico e misterioso, como os do tempo da escravidão. Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra-prima, adiá-lo-ei para mais tarde. [...] Ah! Se eu alcanço realizar essa ideia, que glória também! Enorme, extraordinária e – quem sabe? – uma fama europeia. [...] Mas... e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça que pertenço.”

É curiosa a sempre recorrente comparação entre Machado de Assis e Lima Barreto. Neste caso, Freyre (1961, p.15) atribui parte do descontentamento de Lima por não ter tido sua inteligência reconhecida como Machado, mulato como ele, mas que para todo efeito seria branco, de tão inteligente. Freyre (1961, p.14) observa um espaço peculiar de Lima Barreto, que acabava sendo um não lugar – de um lado, sua “condição biológica” o afastava da sociedade, mas de outro, sua instrução o separava da gente de cor: “incapaz de transformar sua simpatia literária em vida comum com ela.”

Freyre deixa transparecer qual teria sido o grande drama na vida de Lima – não embranquecer (FREYRE, 1961, p.14): “Pobre e obrigado, pela sua condição econômica, a ser, em grande parte sociologicamente homem de cor: sem oportunidade de transformar-se em mulato sociologicamente branco como, na mesma época o igualmente negróide evidente – embora mais claro de pele do que Barreto – Machado de Assis.” Aqui Freyre trai sua teoria da igualdade racial no Brasil, deixando escapar como o ressentimento de Lima não deve ser lido como justa revolta contra o preconceito, mas como falta de reconhecimento social, reiterado por sua condição de negro, pelo seu não embranquecimento. Em outras palavras, podemos identificar em Lima Barreto o corpo mulato sempre tensionado, sempre rumo ao branqueamento, nunca aceito totalmente, sem um local próprio e cômodo na sociedade brasileira.

Capítulo 3 Lima Barreto e o carnaval carioca

“Vamos recordar Lima Barreto/ mulato pobre, jornalista e escritor/ figura destacada do romance social/que hoje laureamos nesta cidade.” Estes versos abriram o desfile da sétima escola de samba a se apresentar no sambódromo da Marquês de Sapucaí, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Tijuca, no ano de 1982. Com o samba-enredo Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre a escola classificou-se em 9º lugar entre 12 participantes. Segue a letra:222

Vamos recordar Lima Barreto Mulato pobre, jornalista e escritor Figura destacada do romance social Que hoje laureamos neste carnaval O mestiço que nasceu nesta cidade Traz tanta saudade em nossos corações Seus pensamentos, seus livros

Suas idéias liberais

Impressionante brado de amor pelos humildes Lutou contra a pobreza e a discriminação Admirável criador, ô ô ô ô

De personagens imortais Mesmo sendo excelente escritor Inocente, Barreto não sabia Que o talento banhado pela cor Não pisava o chão da Academia Vencido pela dor de uma tragédia Que cobria de tristeza a sua vida Entregou-se à bebida

Aumentando o seu sofrer Sem amor, sem carinho

Esquecido morreu na solidão (bis) Lima Barreto

Este seu povo quer falar só de você (bis) A sua vida, sua obra é o nosso enredo E agora canta em louvor e gratidão

A agremiação campeã, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, desfilou sob a canção Bumbum Paticumbum Prugurundum, que apresenta o seguinte trecho: “Bumbum Paticumbum Prugurundum/O nosso samba minha gente é isso aí/ Bumbum Paticumbum Prugurundum / Contagiando a Marquês de Sapucaí”.223

222 Informações retiradas de: Galeria do Samba. Disponível em: <http://www.galeriadosamba.com.br/escolas-de- samba/unidos-da-tijuca/1982/>. Acesso em: 01 jan. 2019.; Samba enredo 1982. Disponível em: < https://www.letras.mus.br/unidos-da-tijuca-rj/1757369/>. Acesso em: 05 jan.2019.

223 Galeria do samba. Disponível em: <http://www.galeriadosamba.com.br/escolas-de-samba/imperio- serrano/1982/>. Acesso em 10 jan. 2019.

Como veremos neste capítulo, Lima Barreto tinha um posicionamento bastante crítico ao carnaval carioca do início do século XX. Não é possível saber qual seria a reação do escritor ao desfile em sua homenagem. É factível, entretanto, conjecturar a repulsa que lhe causaria Bumbum Paticumbum Prugurundum, já que a falta de lógica nas canções era alvo dos ataques que fazia aos festejos momescos de sua época.