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O CAMINHO DO SUFISMO E DAS ORDENS SUFIS PARA O BRASIL: ESTABELECENDO A SUA ORIGEM

1) Limano ou Lemane:

É um termo que vem do árabe al-Imam, designando aquele que é responsável pela condução da oração em grupo, não é um “sacerdote” ou Shaykh, mas alguém que conhece o Alcorão mais que os outros e tem condições de levar a cabo a oração em comunidade. O termo al-Iman, além do que já foi citado, pode ser empregado, também, para designar o representante do Shaykh de uma Tariqa, sendo o seu substituto em ocasiões em que o Shaykh esteja impedido de conduzir as orações da Confraria, por qualquer motivo.

2) Alufá:

Termo que vem de alfa; é o designativo para o professor do Alcorão e era como os iorubas chamavam seus professores em geral; João José Reis dá como sinônimo de malam em haussá, que vem do árabe mu’alam, professor. Rolf nos informa que os Paxás do Sudão, que eram nomeados pelo Imperador do Marrocos, traziam, como título honorífico, escrito anteriormente ao nome de cada um, o título de Alfa, “com um ‘u’ disjuntivo, para a pronunciação mais fácil”277. Acrescenta o autor: “'EI-Fa' ou Alfa' é um titulo análogo àquele de Si ou Sidi como os árabes. Atribui-se a toda pessoa que possui certa instrução ou alguma fama de piedade". Apesar dos significados dados há que se considerar que Alufá é o nome utilizado para designar, também, aquele que confecciona amuletos ou que faz algum tipo de adivinhação oracular, tal como aponta William R. Bascom: “Entre os Yorubá, o corte na areia é praticado por adivinhos muçulmanos conhecidos como Alufás.”278

Os Alufás eram profissionais da religião e cobravam por seus serviços ou recebiam presentes da comunidade.

A renda dos Alufás vem de três fontes principais: presentes dos pais de seus alunos de Alcorão; ofertas feitas em pagamento por orações em ritos de passagem que celebra; e os rendimentos provenientes da adivinhação e preparação de amuletos e talismãs. A adivinhação islâmica entre os Yorubá possui similitude com Ifá.279

277 REIS. Op. Cit., p. 117.

278 Cf. BASCOM, William Russel. Ifa divination: communication between gods and men in West Africa.

Indianapolis: Indiana University Press, 1991, p. 8. O corte na areia é, em árabe, Darb ar-raml: sistema de adivinhação praticada por muitos povos muçulmanos da região do Saara, que consite em uma forma de geomancia em que se fazem cortes na areia, formando figuras que são interpretadas de forma oracular. Além de Bascom, outros estudiosos como Wim M. J. van Binsbergen (Islam and transformations in Africa, Leiden: Brill, 1997, p. 87); Louis Brenner (Muslim divination and the history of religion in Sub-Saharan Africa. In Pemberton III, J. Insight and artistry in African divination: A cross-cultural study. Washington D.C.: Smithsonian Institution Press, 2000, p. 119); Jeremy Seymour Eades (The Yoruba Today. Cambridge: CUP Archive, 1980, p. 180) e Stephen Skinner (Terrestrial astrology: Divination by geomancy. London: Routledge & Kegan Paul, pp. 53-54) dizem que essa forma de adivinhação deu origem ao oráculo de Ifá praticado pelos Yorubá.

O Alufá era e é uma figura muito importante na comunidade muçulmana africana, permanecendo, até hoje, seu grande papel social, como mostra Adekunle Balogun:

Estudiosos muçulmanos em terras iorubás são geralmente conhecidos como Alfaa ou Aafaa. A nomenclatura Aafaa é usada para se referir a uma categoria de muçulmanos que tenham sido educados nas ciências alcorânicas e na língua árabe, podendo ensiná-los, especialmente às crianças. Algumas vezes um Aafaa é assim chamado por se envolver em atividades missionárias; tais pessoas são chamadas de Aafaa Arowasi. Com o advento do Islã em terras Iorubás, estudiosos muçulmanos, usando o conteúdo do Alcorão, as orações recomendadas pelo Profeta, logo assumiram o papel de curandeiros tradicionais Iorubás, cuidando dos problemas das pessoas, sejam eles físicos, psicológicos ou espirituais. [...] A palavra Aafaa, usada pelos Iorubas para designar seus sábios, não é de origem Ioruba ou Haussa. Parece ser de origem árabe, como as várias sugestões dadas pelos linguistas sobre sua provável origem etimológica, as quais são unânimes. Por exemplo: Al-fatihah (o versículo de abertura do Alcorão recitado frequentemente pelos Alfaas); al-Fahim (pelo seu profundo conhecimento do Islã); Alf (um mil, por que gravaram na memória mil Ahadith do Profeta); Alif (a primeira letra do alfabeto árabe).280

Fig. 11 – Adivinho fazendo os riscos na areia.281

As etimologias sugeridas por Adekunle Balogun podem ser usadas para dar origem à palavra Alufá, a qual é usada até hoje em terras africanas e na diáspora.

O alufá é um curandeiro que cria amuletos e o conhecimento para o criar não é um estudo marginal, mas parte integrante da sua formação. A construção de amuletos e a prática de sua criação são tão mescladas e interligadas que, no contexto africano ocidental, a escrita árabe não pode ser encarada apenas como uma tecnologia racional para registro da voz; ao contrário, estão amarrados nas correntes do poder divino, na magia e nos valores religiosos. [...] O Alufá funciona com um

280 BALOGUN, Muhsin Adekunle. Sycretic beliefs and practices amongst muslims in Lagos State, Nigéria. Tese

de Doutorado. Birmingham: School of Philosophy, Theology and Religion of University of Birmingham, 2011, pp. 42-43.

281 Imagem disponível em: <http://www.zoom-net.com/fineart/artisti/fabio-cattabiani-/articolo1.aspx>. Acesso

curandeiro, cuja magia é praticada no interior do domíno do Islã, obedecendo as leis islâmicas sobre o que é lícito e o que é proibido. Isso não exigia nenhuma mudança em sua atitude em relação à magia referente aos muçulmanos ou não- muçulmanos, ele simplesmente introduzia uma nova tecnologia que poderia complementar ou substituir um amuleto antigo por um novo, distinto do velho apenas na medida em que continha caracteres árabes.282

O antropólogo John David Yeadon Peel nos traz a relação que havia entre os Alufás e os Babalawos (Sacerdote do culto ao Orixá Òrúnmilá, patrono dos sistemas oraculares, segundo o panteão Iorubá):

Nos meados do Séc. XIX os laços profissionais entre Babalawos e Alufás muçulmanos eram cordiais – como um Babalawo disse a um Pastor: “cada um de nós Babalawos tem um amigo Alufá e cada Alufá tem um amigo Babalawo, tanto que eu conheço aqueles de Abeokuta que fizeram amizade com Babalawos a fim de terem ajuda em questões difíceis de adivinhação.283

Assim, o Alufá, nas funções em que exerce nas comunidades muçulmanas e não- muçulmanas, está intimamente ligado à figura do “Marabout do Magrebe ou ao Waly dos países árabes”284, ou seja, um líder da comunidade Sufi, considerado como “homem santo”,

que possui poderes miraculosos, faz adivinhação, interpretação de sonhos e confecciona amuletos de proteção para todos os fins285. Em todo o mundo árabe, com raras exceções, os Shuyukh Sufis fazem as mesmas coisas.

Os Alufás (clérigos muçulmanos) apresentavam-se para oferecer tangível poder espiritual na forma de amuletos contendo orações e a oferta de esmolas em sacrifício – Saraa – cuja atração derivava de sua assimilação aos sacrifícios tradicionais (uma salutar lembrança de que o Islã, apesar de toda sua intraduzibilidade ao nível da linguagem, muitas vezes fazia exigências menos onerosas aos seus convertidos do que as feitas pelo Cristianismo).286

João do Rio nos faz uma descrição detalhada dos Alufás brasileiros, na qual podemos ver alguns costumes Sufis em suas práticas;

Os alufás... são maometanos com fundo de misticismo. Quase todos dão para estudar a religião... Logo depois da suma [do árabe sunnah] ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi retintos, com a cara reluzente entre as barbas brancas, fazendo o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o

282 BRANDON, George Edward. From Oral to Digital: rethinking the transmission of Tradition in Yorùbá

Religion. Em: OLUPONA, Jacob K. & REY, Terry (eds.). Òrìşà Devotion as World Religion: The globalization of Yorùbá Religious Culture. Wisconsin: The University Of Wisconsin, 2008, p. 457.

283 PEEL, John David Yeadon. Religious encounter and the making of the Yoruba. Indiana: Indiana University

Press, 2003, p. 113.

284 PEEL, Op. Cit, p. 366.

285 Cf. CAIRUS. Op. Cit., p. 64 e BASTIDE, Roger. As Religiões africanas no Brasil: Contribuição a uma

sociologia das interpenetrações de civilizações. Vol I. Rio de Janeiro: EDUSP. 1971, p. 105.

286 LEWIS, Donald M.. Christianity reborn: the global expansion of evangelicalism in the twentieth century.

kissium continua, sentados eles em peles de carneiro ou de tigre. Essas criaturas

contam à noite o rosário ou tessubá [do árabe, tasbih] (gn)”287

Sentar-se em peles de carneiro e usar o tasbih para contar o número de repetições daquilo que se está rezando é uma prática que se vê no Sufismo. Na grande maioria das Ordens Sufis o Shaykh se senta em uma pele de carneiro, sacrificado para Allah, especialmente no dia do ‘Aidh al-Adha (Festa do Sacrifício) e se utiliza de um tasbih para contar o número de repetições dos Nomes ou Atributos Divinos, bem como o número de repetições dos versículos do Alcorão. Fora do contexto Sufi não se usa a pele de carneiro para se sentar e raramente há a prática do Dhikr com o uso do tasbih, pois esta é prática condenada pelos Salafin, que a consideram uma inovação, tendo em vista ser praticada pelos Sufis, especialmente os de 99 contas. Para se ter uma ideia da condenação ao uso do Tasbih por alguns setores do Islã, podemos citar o que vimos em Medina, em 2005, ano em que fizemos a peregrinação à Meca: um senhor de meia idade, que estava em frente à tumba do Profeta Muhammad, retirou um tasbih com noventa e nove contas do bolso e o começou a utilizar para contar o número de repetições que faria de algum Dhikr, este foi atingido por algumas pancadas de cassetete, dadas pelos policiais que ficavam no interior da Mesquita do Profeta, os quais apreenderam o objeto, ou melhor, tomaram-lhe das mãos aos berros, pois qualquer ritual Sufi na Mesquita do Profeta é reprimido imediatamente.

Fig. 12 – Dervixes da Tariqa Naqshbandiyya Uthmanniyya; note-se o tapete de pele de carneiro em que o

Shaykh está sentado e o imenso tasbih, que será utilizado para as repetições do Dhikr.288

Outro costume dos malês, registrado pelo abolicionista Manuel Querino, um dos primeiros intelectuais e políticos negros do Brasil, escreveu que “pela manhã era servida uma mesa, em que se sobressaia a toalha muito alva, de algodão”289. O uso da toalha ou pano branco nas ceias comunais é um costume Sufi, especialmente das Ordens Sufis Qadiriyya e Tijaniyya, que colocam a toalha ou um pano branco para o local aonde se vai praticar qualquer ato religioso (para o muçulmano a alimentação comunal é um ato religioso, que é encerrado com a prática de um Dhikr). Entende-se que colocar o pano ou toalha branca o local se tornará puro, de forma a permitir que os Anjos que são enviados para acompanharem o Dhikr, segundo a crença dessas confrarias, fiquem contentes e possam acompanhá-lo.

Há, ainda, a crença de que a pureza do local permitirá a manifestação do Profeta Muhammad e dos “santos”. A manifestação dos mortos para os dervixes está baseado no Alcorão: “E não digais dos que são mortos no caminho de Allah: ‘Eles estão mortos’. Ao contrário, estão vivos, mas vós não percebeis” (Alcorão, 2:154). Para que os mortos, ou melhor, para aqueles que “estariam” mortos possam se manifestar há necessidade da limpeza extremada do ambiente no qual se realiza a prática.

Fig. 13 – Pano branco utilizado nas cerimônias da Ordem Sufi Tijaniyya290

288 Retirado da Página da Tariqa Naqshbandiyya Uthmanniyya: <http://www.yursil.com/blog/>. Acesso em:

12/02/2012.

289 QUERINO, Manuel. A raça africana e os seus costumes. Salvador: Ed. Progresso, 1995, p. 107. 290 Retirado de: <http://bakarysambe.unblog.fr/2009/08/14/>. Acessado em: 20/01/2012.