• Nenhum resultado encontrado

Limite extremo da filosofia prática

2.3 Possibilidade do imperativo categórico

2.3.3 Limite extremo da filosofia prática

No tangente a esse limite extremo da filosofia prática, Kant trata da antinomia entre

liberdade e necessidade natural. Essa aparente contradição entre liberdade e necessidade natural precisa ser eliminada, para que este conflito da razão especulativa não cause danos ao

exercício da razão prática113. Explicitando em que consiste cada um desses dois conceitos tem-se que: o conceito de liberdade não é oriundo da experiência, visto que ele é necessário,

a priori, e que determina as ações da vontade humana, considerada como livre. Por outro

lado, é igualmente necessário que tudo aquilo que acontece, seja determinado, inevitavelmente, por leis naturais; ora, essa necessidade natural também não é um conceito oriundo da experiência, porque implica o conceito de necessidade e, portanto, o de um conhecimento a priori. Esse conceito de natureza é confirmado pela experiência segundo leis universais. Por isso, conclui Kant, “a liberdade é apenas uma idéia da razão cuja realidade objetiva é em si duvidosa; a natureza, porém, é um conceito do entendimento que demonstra,

110 KANT, 1986b, p. 113-114. 111 Ibid., p. 114. 112

BECKENKAMP, op. cit., p. 54. Ainda de acordo com esse autor: “Esta estratégia defensiva da idéia da liberdade marca já a dialética da Crítica da razão pura e é concluída na Analítica da Crítica da razão prática. Na Fundamentação, ela é apresentada no quarto item da terceira seção, sugestivamente intitulado ‘Do limite extremo de toda filosofia prática”.

113

e tem necessariamente de demonstrar, a sua realidade por exemplos da experiência”114. Disso resulta uma “dialética da razão”, pois a liberdade que a vontade se atribui parece estar em contradição com a necessidade natural. Nesse cômpito, sob o ponto de vista especulativo, a razão envereda para a direção da necessidade natural – que, como afirma Kant, é muito mais plano e praticável que o da liberdade; contudo, do ponto de vista prático, ela (a razão) envereda para a direção da liberdade: “o único por que é possível fazer uso da razão nas nossas ações e omissões”115. Portanto, a conclusão a qual Kant chega é a de que há de se pressupor que, entre liberdade e necessidade natural das ações humanas, nenhuma contradição se encontra, porque a nenhum desses conceitos se pode renunciar116.

Na seqüência, Kant afirma que é preciso, pelo menos, eliminar de modo convincente essa aparente contradição, mesmo quando não se pudesse nunca conceber “como é que é possível a liberdade. Pois se até o pensamento de liberdade se contradiz a si mesmo ou à natureza, que é igualmente necessária, teria ela que ser abandonada inteiramente em face da necessidade natural”117.

Outro aspecto digno de nota é o fato de Kant afirmar ser impossível escapar a essa contradição, se o sujeito, com respeito à mesma ação, se pensar como livre e como submisso à

lei natural. Dessa forma, se, sob a esfera da natureza, a liberdade não for possível, deve-se

pressupô-la, sob o ponto de vista prático, para alcançar a independência da razão face às inclinações naturais118. Por isso,

(...) é um problema inevitável da filosofia especulativa mostrar, pelo menos, que a sua ilusão por causa desta contradição assenta em que pensamos o homem em sentido e relação muito diferente quando lhe chamamos livre do que quando o consideramos como peça da natureza e submetido às suas leis, e que ambos, não só podem muito bem estar juntos, senão que devem ser pensados como necessariamente unidos no mesmo sujeito.119

Tal se justifica porque,

(...) de contrário, não se poderia explicar por que havíamos de sobrecarregar a razão com uma idéia que, embora se deixe unir sem contradição a outra suficientemente estabelecida, vem no entanto enredar-nos numa questão que põe a razão no seu uso teórico em grandes dificuldades.120

114

KANT, 1986b, p. 106, grifo nosso.

115 Ibid. 116 Cf. Ibid., p. 107. 117 Ibid. 118

Cf. SILVEIRA, op. cit., p. 24.

119

KANT, 1986b, p. 107.

120

Porém, esse dever é tarefa da filosofia especulativa, a fim de que abra caminho à filosofia prática121. Se essa aparente contradição não é resolvida – ou permaneça “intacta” –, é possível que se sustente uma posição fatalista “(com base certamente em fundamentos da razão teórica), pois então ‘a teoria a este respeito é bonum vacans, de que o fatalista pode com razão se apossar e expulsar toda moral de sua pretensa propriedade, ocupada sem título’”122. Contudo, não é possível afirmar que é aqui que inicia a fronteira da filosofia prática, pois,

(...) aquela liquidação do debate não lhe pertence de maneira alguma; o que ela exige da razão especulativa é somente que acabe com esta discórdia em que se acha embaraçada em questões teóricas, para que a razão prática tenha repouso e segurança em face dos ataques exteriores que poderiam disputar- lhe o terreno sobre que quer instalar-se. 123

Para explicar a pretensão legítima à liberdade da vontade – a qual até mesmo a razão humana vulgar a possui –, Kant afirma que essa se funda na “consciência e na pressuposição admitida da independência da razão quanto a suas causas determinantes puramente subjetivas, que no conjunto constituem o que pertence somente à sensação e, por conseguinte, cai sob a designação geral de sensibilidade”124.

É por causa disso que, para Kant, a liberdade é o primeiro e fundamental postulado da razão, do qual depende a possibilidade do imperativo categórico. Pressupor a liberdade da vontade de um ser racional traz como conseqüência a autonomia dessa vontade como condição formal que é a única sob que ela pode ser determinada125. Ainda segundo ele,

Não é somente muito possível (como a filosofia especulativa pode mostrar) pressupor esta liberdade da vontade (sem cair em contradição com o princípio da necessidade natural na ligação dos fenômenos do mundo sensível), mas é também necessário, sem outra condição, para um ser racional que tem consciência da sua causalidade pela razão, por conseguinte de uma vontade (distinta dos desejos), admiti-la praticamente, isto é na idéia, como condição de todas as suas ações voluntárias.126

121

Cf. Ibid., p. 108.

122

BECKENKAMP, (op. cit., p. 55). Em seguida o autor afirma: “Neste sentido, então, a defesa da idéia de liberdade no âmbito da filosofia teórica constitui ainda uma espécie de dedução, cujo objetivo é lavrar as credenciais ou preparar o título de propriedade da moralidade, evitando assim que o domínio do incondicionado seja declarado bem sem dono, de que inclusive o fatalista se pode apossar. Quando se deixa o domínio das aplicações condicionais, fica-se sem recursos para estabelecer positivamente o que quer que seja, nada restando senão ‘defesa, isto é, refutação das objeções daqueles que pretendem ter visto mais fundo na essência das coisas e por isto declaram atrevidamente impossível a liberdade’”.

123 KANT, 1986b, p. 109. 124 Ibid., p. 108. 125 Ibid., p. 114. 126 Ibid.

Assim sendo, o limite da investigação moral reside na necessidade de separar da razão pura todo o conhecimento material, fazendo com que permaneça apenas a forma, ou seja, a lei prática que confere validade universal às máximas. Determinar esse limite extremo é, consoante Kant,

[de] grande importância já para que, dum lado, a razão não vá andar no mundo sensível, e por modo prejudicial aos costumes, à busca do motivo supremo de determinação e dum interesse, concebível sem dúvida, mas empírico, e para que, por outro lado, não agite em vão as asas, sem sair do mesmo sítio, no espaço, para ela vazio, dos conceitos transcendentes, sob o nome de mundo inteligível, e para que não se perca entre quimeras.127

Portanto, do exposto, tem-se que o imperativo categórico é possível porque o dever ser categórico é uma proposição sintética a priori, pois o ser humano pertence aos mundos sensível e inteligível – assim o exige a idéia de liberdade –, e esta (a liberdade) torna possível o imperativo categórico num ser racional dotado de sensibilidade. Dito de maneira distinta, o imperativo categórico é possível sob o pressuposto da idéia de liberdade. Essa resposta dá o princípio supremo de moralidade: a autonomia da vontade. Porém, a pergunta de como ele é possível, fica sem resposta. O que se pode afirmar é que a razão pura é prática. Mas, como a razão pura pode ser prática também não se pode explicar, apenas pensar, sob risco de entrar num círculo vicioso128.

127

Ibid., p. 116.

128