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4 AUTONOMIA: FUNDAMENTO DA DIGNIDADE HUMANA

4.2 O reino dos fins

Por “reino”, deve-se entender a “ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns”299. Como as leis determinam os fins segundo a sua validade universal, se se prescinde das diferenças pessoais entre os seres racionais e do conteúdo dos seus fins

297

WEBER, op. cit., p. 40.

298

Para Paton, essa é a Fórmula IIIa (op. cit., p. 185). Baseando-se na exposição de Paton da formulação da autonomia da vontade, Tugendhat, (op. cit., p. 158), afirma: “(...) pode-se dizer que as fórmulas 3 e 3ª apenas sublinham certas nuanças da 1ª fórmula, assim que as únicas duas fórmulas realmente distintas são a primeira e a segunda, as quais, contudo, Kant mostrou de forma convincente serem equivalentes”.

299

KANT, 1986b, p. 75. Ao introduzir a discussão acerca do reino dos fins, Galeffi (op. cit., p. 161) assevera: “Bem no meio de um trabalho em que a razão crítica alcança cumes altíssimos através de um esforço verdadeiramente titânico, esta imagem kantiana do mundo moral num reino dos fins nos faz pensar num dos sublimes interlúdios que o grande Platão inseria, às vezes, lá pelo meio de seus diálogos (como por exemplo o mito das almas após a morte no Fedon) quase para dar à mente cansada de tanto raciocínio um momento de trégua, numa visão mítica da realidade. Mas, como todo mito contém um significado simbólico que resume, muitas vezes, uma inteira doutrina, assim, nesta imagem de um reino dos fins, nós podemos ver simbolicamente representada a verdadeira pátria à qual pertence o homem, de direito, pela sua natureza racional, pela sua espiritualidade. Trata-se de um mundo a realizar-se – é claro –, mas que não podemos deixar de querer que se realize, sem, por isso mesmo, perder a verdadeira prerrogativa de homens”.

particulares, é possível pensar uma totalidade de todos os fins – tanto dos seres racionais como fins em si, como também dos fins próprios que cada qual pode propor a si mesmo –, em uma união sistemática300.

Kant afirma que os seres racionais estão, todos, submetidos à lei que ordena que cada um deles “jamais se trate a si mesmo ou aos outros, simplesmente como meios, mas sempre

simultaneamente como fins em si”301. Disso, resulta uma ligação sistemática entre os seres racionais mediante leis objetivas comuns, ou seja, um reino que, exatamente porque tais leis visam a relação dos seres racionais uns com os outros como fins e meios, pode-se chamar um “reino dos fins”, que, como ressalva Kant, “na verdade é apenas um ideal”302.

Diante disso, uma questão que se coloca é: em que o (ideal) reino dos fins se diferencia de um reino temporal? A resposta a essa pergunta consiste em que num reino temporal, a convivência dos/entre os seres humanos é regulada pela simples subordinação às leis jurídicas; ao passo que, no reino (ideal) dos fins, a convivência (entre os seres humanos) regula-se pela lei moral, ou seja, por uma lei perfeita, em virtude da qual, como sustenta Galeffi, “acima dos próprios atos, são as mais íntimas intenções que se tornam objeto de ponderação e avaliação infalível por parte de um juiz que fala do íntimo de cada um, ao mesmo tempo em que fala para todos”303.

É importante destacar que, nesse reino dos fins, um ser racional pertence como “membro” quando é legislador universal, porém, estando submisso à essas leis; e, como “chefe”, quando, como legislador, não está submisso à vontade de um outro304 – aliás, essa é outra característica que difere o reino dos fins de um reino temporal, pois, neste (no reino temporal), cada ser humano pertence como membro, mas não necessariamente como chefe, ao passo que no reino dos fins, pertence, simultaneamente, como membro e como chefe. Pela liberdade da vontade, o ser racional tem de considerar-se sempre como legislador de um reino dos fins, quer seja como membro, quer seja como chefe. Entretanto, lembra Kant, um ser racional não tem o lugar de “chefe” assegurado somente pela máxima de sua vontade, “mas

300

Nas palavras de Kant (1986b, p. 76): “Ora, como as leis determinam os fins segundo a sua validade universal, se se fizer abstração das diferenças pessoais entre os seres racionais e de todo o conteúdo dos seus fins particulares, poder-se-á conceber um todo do conjunto dos fins (tanto dos seres racionais como fins em si, como também dos fins próprios que cada qual pode propor a si mesmo) em ligação sistemática, quer dizer, um reino dos fins que seja possível segundo os princípios acima expostos”.

301

Ibid.

302

Ibid.

303

GALEFFI, op. cit., p. 162.

304

apenas quando seja um ser totalmente independente, sem necessidade nem limitação do seu poder adequado à vontade”305.

Desse modo, a moralidade consiste na relação de toda ação com a legislação, por meio da qual somente um reino dos fins é possível. Tal legislação deve ser encontrada em todo ser racional e brotar da sua vontade. O princípio regente do ser racional é o de nunca praticar uma ação que não esteja em acordo com uma máxima que possa converter-se em lei universal, ou seja, só de tal maneira que “a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal”306. Caso as máximas não sejam, pela sua natureza, necessariamente concordes com o princípio objetivo dos seres racionais como legisladores universais, então a necessidade da ação, segundo aquele princípio, denomina-se “dever” (Pflicht) – obrigação prática. Kant destaca que o dever não pertence ao chefe no reino dos fins, mas, sim, a cada membro e a todos em igual medida.

O dever não está fundado sobre os sentimentos, impulsos ou inclinações, mas somente na relação dos seres racionais entre si. Nessa relação, a vontade de um (ser racional) tem de ser considerada, sempre e simultaneamente, como legisladora, pois, se assim não o fosse, os seres racionais não poderiam se pensar como “fim em si mesmo”. Para tal, a razão relaciona cada máxima da vontade, concebida como legisladora universal, com todas as outras vontades e todas as ações para consigo mesmo. Faz isso, não em virtude de qualquer outro móbil prático, mas “em virtude da idéia de “dignidade” (Würde) de um ser racional que não obedece a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente dá”307.

Como sustenta Kant, no reino dos fins, tudo tem, ou um “preço” (Preis), ou uma “dignidade” (Würde): “quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”308. Para explicitar o conceito de dignidade e distingui-lo de tudo o resto, Kant faz a seguinte distinção: as coisas que se relacionam com as inclinações e necessidades gerais do ser humano têm um preço venal – um preço de

mercado (Marktpreis); por sua vez, aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade,

corresponde a certo gosto pessoal tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionpreis); porém, “aquilo que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si

305 Ibid. 306 Ibid. 307 Ibid., p. 77. 308 Ibid.

mesma, não tem somente valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é,

dignidade”309.

Consoante Kant, a moralidade é a única condição que pode fazer, de um ser racional, um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins. “Portanto, a moralidade e a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade”. O que confere dignidade ao ser racional é, justamente, a possibilidade de participar na legislação universal que o torna, por este meio, apto a ser membro de um possível reino dos fins – “para que estava já destinado pela sua própria natureza como fim em si e, exatamente por isso, como livre a respeito de todas as leis da natureza”310 –, obedecendo somente às leis que ele mesmo se dá e segundo as quais as suas máximas podem pertencer a uma legislação universal, à qual ele simultaneamente se submete. Isso porque coisa alguma tem valor senão aquele que a lei lhe confere. Entretanto, a própria legislação, que determina todo o valor, tem que ter, exatamente por isso, uma dignidade, ou seja, um valor incondicional, incomparável, cuja avaliação, que qualquer ser racional sobre ele faça, só a palavra respeito (Achtung) pode exprimir convenientemente311.