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O LINGUISTA EM FORMAÇÃO QUE FALA PB E PRETENDE SE DEDICAR A PROBLEMAS DESTA LÍNGUA

CONSIDERAÇÕES FINAIS 263 REFERÊNCIAS

1.1 O LINGUISTA EM FORMAÇÃO QUE FALA PB E PRETENDE SE DEDICAR A PROBLEMAS DESTA LÍNGUA

A proposta de ensino da língua latina que busco desenvolver neste trabalho destina-se a um público específico: falantes de PB que visam uma habilitação superior em língua portuguesa. Essa população não é pequena: no Brasil, todo ano, cerca de 250 mil estudantes

ingressam nessa carreira, segundo dados atualizados do e-MEC,10 o

sistema eletrônico do Ministério da Educação que organiza o acompanhamento dos processos regulatórios da educação superior brasileira (BRASIL, 2014). Interesso-me particularmente por esse público porque, ainda hoje, ele constitui a imensa maioria de estudantes que, no Brasil, são instados a estudar latim.

Parte desses estudantes, pela maneira como entra em contato com a língua latina dentro da sua formação em língua portuguesa, não extrai dessa disciplina curricular subsídios efetivos para atingir a principal premissa da sua habilitação: compreender a língua portuguesa. A maior prova da existência dessa crise curricular do latim é a abundância, nas últimas décadas, de trabalhos de latinistas pelo Brasil que admitem a sua ineficácia na formação em língua portuguesa e buscam alternativas para o ensino do latim, propondo uma renovação de objetivos e métodos.

Em um recente trabalho intitulado “O ensino do latim no Brasil: objetivos, métodos e tradição”, Heck (2013, p. 7, grifo meu) propõe-se a

[...] compreender o motivo do abandono do ensino da língua latina no Brasil e, consequentemente, propor um resgate desse ensino como elemento importante na formação do jovem e na preparação do adulto para a vida profissional, cumprindo, assim, o preceituado no artigo 205, da Constituição Federal de 1988.

Há mais de duas décadas, Bruno (1990, p. 34, grifo meu) protestava:

Se, ainda que tenhamos sido legatários de toda sua literatura, nos pusermos diante dele contaminados pelo preconceito de que tratamos com uma língua morta, o latim divide, pois denuncia, por si só, o longo espaço de tempo entre o seu desaparecimento e o momento em que, hoje, nos defrontamos com ele. E, se

ele divide, para que estudá-lo? Para melhor conhecer a língua materna? Que,

então, pelo menos, se amplie a carga horária destinada ao estudo da nossa língua

10

A estimativa de 250 mil ingressantes por ano foi obtida da seguinte maneira: fiz uma busca no e-MEC por todos os cursos de Letras-Português (ou habilitação dupla) em atividade no Brasil e multipliquei a quantidade de ocorrências pela média das quantidades de vagas oferecidas anualmente por esses cursos (há cursos que oferecem 40 vagas anuais, outros, 80, e outros, 120 vagas, por exemplo). O resultado foi um número próximo a 250 mil.

materna, e não se sacrifiquem professores infelizes e alunos atônitos com o

estudo do que é morto, mesmo que o morto possa conferir alguma erudição e

permita pôr-se em um arremedo do seu sistema um poema de Drummond. Contudo, o professor de latim não dá lições de anatomia nem é arqueólogo antigo que se satisfaça com datar, catalogar e descrever exaustivamente um fóssil.

Miotti (2006), em sua pesquisa, percebeu pelo menos dois claros momentos de crise enfrentados por essa disciplina. O primeiro ocorre na década de sessenta, quando o latim deixa de ser obrigatório no ensino básico brasileiro:

Se o latim passou por uma séria crise na década de sessenta, em boa parte isso não foi culpa apenas dos modismos da época. Sabe-se que alguns dos professores do antigo ginásio faziam os alunos simplesmente decorar os textos estabelecidos pelos programas sem que compreendessem de fato o que decoravam. (MIOTTI, 2006, p. 11, grifo meu).

O segundo momento, mais recente, é verificado por Miotti no final da década de 80 e início dos anos 90 – prestes à extinção da obrigatoriedade dessa disciplina nos currículos dos cursos de Letras, que aconteceria em 1996:

[...] em 1989 o latim ingressa numa séria crise: em média quase 40% dos alunos, semestre após semestre, fracassavam nas suas investidas no mundo clássico – reflexo de uma possível rejeição à metodologia empregada ou apenas do imediatismo de uma visão-de-mundo comercial e tecnicista que veio sendo incutida nos cursos de formação profissional desde a década de sessenta. (MIOTTI, 2006, p. 55, grifo meu).

A propósito, em 1996, no ápice dessa crise, Moura e Borges Neto (1996, p. 1, grifo meu) alertavam:

Sem dúvida, uma das áreas que mais carecem de pesquisas e publicações especializadas (pelo menos no Brasil) é a do ensino de língua latina. Não por mera coincidência, as disciplinas de latim nas nossas universidades acumulam

altos índices de reprovação, desistência e fenômenos afins. [...] Esses problemas

ocorrem, de um lado, por causa de um equívoco na definição dos objetivos do ensino de latim, e, de outro, devido à metodologia que se origina de tal concepção.

Contudo, não são apenas latinistas que constatam essa crise. Em uma pesquisa feita com egressos de cursos de Letras (com habilitação em português e outras línguas modernas) da Universidade Federal de Santa Maria, Maraschin (2009, p. 75) buscou aferir uma autoavaliação de ex-estudantes com relação às disciplinas de língua latina cursadas.

Sua pesquisa levou em consideração nove objetivos de aprendizagem:11

(1) capacitação à leitura de textos antigos; (2) compreensão de expressões latinas usadas em textos acadêmicos; (3) solução de dúvidas na grafia de palavras portuguesas a partir do conhecimento diacrônico; (4) desenvolvimento de raciocínio abstrato pela tradução de textos clássicos; (5) auxílio em questões sintáticas do português; (6) domínio de termos técnicos de origem latina usados em outras disciplinas; (7) conhecimento do léxico de outras línguas românicas; (8) auxílio no estudo da morfologia e da fonética histórica e aperfeiçoamento da escrita padrão do português; (9) conhecimento da história e da cultura ocidental e sua relação com o presente. Os resultados obtidos por Maraschin (2009) revelam que, na autoavaliação dos alunos quanto ao sucesso da sua aprendizagem, o índice de respostas “insuficiente” ou “regular” (as piores avaliações possíveis na pesquisa) é muito alto. O índice dessa avaliação negativa chega a 80% com relação ao critério 8, 50% com relação ao critério 5, e 40% com relação ao critério 3 – critérios esses que são particularmente relevantes aqui.

Os mesmos estudiosos que reconhecem essa crise propõem soluções que variam muito entre si, porém todas se concentram na redefinição de objetivos de ensino, método ou abordagem. Não encontrei qualquer proposta que procurasse recontextualizar o ensino de latim dentro de uma formação em língua portuguesa cujo público seja composto por falantes de português brasileiro. Ao que me parece, se continuarmos a insistir em reformular os objetivos, o método ou a abordagem sem ter clareza de quem é o sujeito da aprendizagem, qual é a sua realidade, quais são as suas necessidades e sobretudo qual é a sua identidade, vamos continuar “abrindo portas já abertas” que não nos levarão muito longe na busca de uma solução para essa crise.

Rajagopalan (2005, p. 12) defende que o professor de línguas, antes de se propor a ensinar, deve buscar conhecer melhor seus alunos,

deve tentar identificá-los12 para poder se encaixar na sua maneira de

pensar e, assim, tornar a aprendizagem mais efetiva. Essa proposta vem diretamente ao encontro do modo como percebo o problema em questão: para que o estudante se identifique com a língua latina e obtenha sucesso na sua aprendizagem, parece-me importante que ele se identifique com

11 Esses objetivos de aprendizagem não coincidem com a proposta de ensino que ainda farei nesta tese. Cito a pesquisa de Maraschin (2009) apenas para mostrar, de diferentes perspectivas, como a crise em questão é percebida pelo público brasileiro.

esse conteúdo curricular, que ele o perceba como algo ligado à sua própria identidade.

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