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CONSIDERAÇÕES FINAIS 263 REFERÊNCIAS

1.2 IDENTIFICAR-SE COM O OBJETO DE ESTUDO

2.2.1 Mudança de terminologia

Ainda que, conforme expliquei há pouco, o termo

“conservadorismo” neste contexto não implique nenhuma apreciação moral, ao longo desenvolvimento desta pesquisa, após uma série de críticas e sugestões, considerei prudente substitui-lo por “fenômenos permanentes” (ou simplesmente “permanências”) e colocar tais fenômenos ao par de “processos reincidentes” (ou simplesmente “reincidências”). Com isso, evito que se confunda “conservadorismo” com qualquer apologia ou crítica à tradição e, ainda, ajusto a terminologia à concepção de língua que assumi no início desta tese: a de um processo dinâmico em constante variação e mutação, no qual não há outra coisa senão continuidades, descontinuidades, reincidências e reorganizações do sistema.

Ao teorizar sobre tais continuidades, descontinuidades, reincidências e reorganizações, Castilho (2007) – em quem me apoiei ao apresentar a concepção de língua que assumo – defende a existência de três princípios que organizam a atividade linguística: os princípios de ativação, reativação e desativação de propriedades linguísticas. Segundo o primeiro princípio, também chamado de princípio da projeção pragmática, os falantes podem ativar propriedades lexicais, semânticas, discursivas e gramaticais conforme as condições das interações linguísticas de que participa. Nesse sentido, os falantes projetam o que

Sacks, Schegloff e Jefferson (1974, p. 702) chamam de “unidades-tipo” (palavras, sintagmas e sentenças) a fim de tentar antecipar a atuação verbal do seu interlocutor, ativando propriedades já disponíveis nessas unidades-tipo. Conforme o princípio da reativação, também chamado de princípio da correção, o falante pode reorganizar as propriedades (lexicais, semânticas, discursivas e gramaticais) de uma unidade-tipo conforme as necessidades surgidas no curso da atividade linguística. Por fim, a desativação, ou princípio da elipse, é “o movimento que ocasiona o abandono de propriedades que estavam sendo ativadas” (CASTILHO, 2007). Tal movimento resulta no desaparecimento de determinada variante linguística que foi preterida após a mudança ser consumada. Grosso modo, parece-me razoável admitir que, portanto, ativação implica permanência, continuidade ou conservação; reativação implica inovação; e desativação implica mudança.

A fim de ilustrar como esses princípios se aplicam, apresento no quadro a seguir uma síntese dos processos de lexicalização, semantização, discursivização e gramaticalização pelos quais passou o advérbio latino ante, conforme a análise de Castilho (2007, p. 345-350): Quadro 3 - Processos de lexicalização, semantização, discursivização e gramaticalização que incidiram sobre ante

Princípio Descrição do processo

Léx

ico

Ativação A ativação lexical (lexicalização) é o movimento mental de escolha das categorias cognitivas e de seus traços semânticos que serão agrupados nas palavras. Assim, na lexicalização de ante, foram escolhidas a categoria de espaço, e a subcategoria de espaço transversal anterior, concentradas etimologicamente nesse item já no advérbio latino ante “adiante, antes, anteriormente” que, por sua vez, deriva-se do ide. *ant- “testa, fachada, frontispício”. O étimo deu origem no latim a três categorias lexicais, exemplificando o fenômeno da polilexicalização: (1) Como pronome-adverbial locativo e temporal, representava

habitualmente um participante da cena localizado diante dos olhos, gramaticalizando-se como preposição, como em “innumerabiles supra,

infra, ante, post mundos esse” [existem inúmeros mundos em cima,

embaixo, atrás, na frente], ou o tempo anterior, gramaticalizando-se como advérbio, como em “tertio anno ante” [três anos antes]. (2) Como preposição, ante selecionava caso acusativo, com significado igualmente locativo, como em “ante oculos ponere” [pôr diante dos olhos], ou temporal, como em “ante Romam conditam” [antes da fundação de Roma]. (3) Por algum mecanismo de caráter associativo, a expressão desenvolveu o sentido de comparação, aparecendo na locução conjuncional correlativa ante ... quam, “antes que”.

Reativação A reativação lexical (relexicalização) é o movimento mental por meio de que rearranjamos as propriedades lexicais e as palavras que as representam, renovando o léxico. Para continuar com ante, no latim vernacular esse item vinha reforçado por uma partícula preposta, donde

Princípio Descrição do processo

abante, deante, exante, inante, casos evidentes de relexicalização.

Interessante sublinhar que nesse processo são acionadas outras tantas preposições latinas, as quais têm em comum (i) disporem os participantes num percurso, de que se assinala o marco inicial num imaginário eixo horizontal, de onde alguém se afasta (ab), ou (ii) disporem os participantes no ponto superior de um eixo vertical igualmente imaginário (de), ou, finalmente, (iii) situarem-no num ponto de chegada, para o qual alguém se destina ou se inclui (in). Essa relexicalização deve explicar-se pela vaguidão de um termo como ante. Provavelmente, as preposições agregadas ao advérbio serviam para inserir pontos de referência no espaço, delimitando o ponto inicial ou final. O português preservou quase todos esses itens, que funcionam como (i) o pronome-advérbio antes, com -s paragógico, (ii) a preposição

ante e suas relexicalizações avante, diante [< de in ante], adiante [< ad de in ante], a segunda das quais deu surgimento a adverbiais complexos

como de hoje em diante, e (iii) o prefixo ante- e sua relexicalização, que aparece em substantivos (antanho, antecipação, antebraço, avanguarda/vanguarda etc.), em pronomes circunstanciais de tempo

(antes-de-ontem, anteontem, antemanhã), e em verbos (arc. avantar,

antevir, avançar [<* abantiare]).

Desativação A desativação lexical (deslexicalização) é a morte das palavras. A perda lexical é maior em determinados campos semânticos que em outros, afetando inicialmente as palavras que designam as partes do corpo humano. Alguns autores admitem que as seguintes preposições estão em processo de substituição no PB: a por em/para, em por ni, de por desde,

ante por diante de e após por depois de. O item que sai e o item que o

substitui entram inicialmente em variação, assumindo uma das variantes um valor mais geral, e outra um valor mais específico, até que a troca lexical seja consumada. Quando uma preposição A é trocada por uma preposição B, é de supor-se que A esteja morrendo.

S

em

ân

ti

ca Ativação A ativação semântica (semanticização) corresponde à criação dos significados, de que resultam as categorias da dêixis/foricidade, da

referenciação, da predicação, da verificação e da conexidade. As preposições ante e perante predicam seu complemento preservando seu valor prototípico quando o ponto de referência é lexicalizado por objeto, seja /+concreto/, como em “foi condenável seu comportamento ante o tribunal”, seja /+abstrato/, como em “não poderemos ficar mudos ante o espetáculo de quebra de ética em nosso parlamento”.

Reativação A reativação produz na semântica as ressemantizações, alterando-se sua adequação à representação dos objetos e dos eventos. No item em análise, uma primeira alteração de sentido ocorre quando passamos de

espaço anterior para tempo anterior. Quando o dispositivo

sociocognitivo desativa na preposição complexa antes de seu sentido prototípico de espaço anterior, ele ativa ao mesmo tempo o sentido de

tempo anterior atribuído à figura. O trâmite espaço > tempo co-ocorre

com a categoria cognitiva de movimento. Quer dizer que o tempo passado da figura se situa anteriormente ao tempo futuro do ponto de

referência, como se pode ver em “dois corretores andaram dias antes das eleições de casa em casa pedindo votos”, isto é, “os dias” se situam

no passado, e “as eleições” ocorreram no futuro. Diremos, então, que

ante (e antes de) foram ressemantizadas, passando de expressões de espaço a expressões de tempo. Nova ressemantização ocorre quando o

Princípio Descrição do processo

ponto de referência vem lexicalizado por um evento, como em “o

espírito de partido quebrou suas fúrias ante as considerações do bem público”. Entender como se desenvolveu o sentido de “por causa das considerações” é um desafio e tanto. Provavelmente a alteração envolva a noção de tempo contida no evento “consideração”, colocado imageticamente à frente de “quebrar suas fúrias”. Se o tempo do evento-

ponto de referência ocupa imageticamente um lugar de hierarquia mais

alta que o do evento-figura, que ele passa por metonímia a governar, segue-se que “considerações” passa a causador, e “quebrar suas fúrias” passa a causado. Por outras palavras, a metáfora do tempo do evento foi o gatilho da metáfora de causa. O espaço mental “evento situado num tempo” projetou um novo espaço, o de “evento causador”.

Desativação A desativação semântica (dessemantização) está por trás das alterações de sentido provocadas pelas metáforas, pelas metonímias, pela especialização e pela generalização, por meio dos quais “silenciamos” o sentido anterior e simultaneamente ativamos novos sentidos. Na literatura, denomina-se o primeiro processo de “desbotamento de sentido” (inglês bleaching). Nos exemplos mostrados até aqui, temos lidado com a escala [espaço > tempo > causa]. Se examinarmos os pronomes-advérbio constituídos a partir da mesma etimologia da preposição ante, será possível agregar também modo a essa escala. Assim, em “antes você não tivesse vindo a S. Paulo!”, equivalente a “que/oxalá não tivesse vindo a S. Paulo!” o caráter modal volitivo desse exemplo está implícito no traço de comparação próprio a antes, documentado já na latinidade. E é que, assinalando o espaço situado à frente do falante, cuja avaliação cognitivamente positiva tem sido lembrada na literatura, antes implícita uma escolha e explicita uma vontade. A comparação está implícita em “vir a São Paulo” / “não vir a São Paulo” e a escolha está na opção por “não ter vindo a São Paulo”. Com isso, antes se dessemantiza, perdendo seu valor espacial, e se ressemantiza, adquirindo um valor modal novo. E a língua continuará com seus processos de perdas e ganhos.

Disc

u

rso

Ativação No sistema discursivo, o princípio de ativação (discursivização) produz a hierarquização dos tópicos, a construção das unidades discursivas e sua conexão. A preposição que tem servido aqui de exemplificação opera como discursivizadora quando não governada por verbo ou por outra classe predicadora, funcionando como introdutora de construção de tópico ou como conectivo textual. A preservação das categorias de

espaço e tempo concorrem para seu funcionamento como construções de

tópico, via processos semânticos simultâneos de desativação do valor de lugar físico e de tempo cronológico, e ativação de sentidos mais abstratos tais como “espaço do discurso”, “tempo do discurso”, em exemplos como “Antes de tudo, me explique que assunto é esse” (construção de tópico delimitadora), “Depois, o amor é extremamente, demasiadamente pueril, e até extravagante” (conectivo textual). Reativação O princípio de reativação (rediscursivização) abre caminho à repetição

dos enunciados, à sua correção e parafraseamento, que asseguram a coesão do texto, alterando seu eixo argumentativo, entre outras estratégias. Veja-se este exemplo da “nossa preposição”, em que ela atua como rediscursivizadora: “Ante a perspectiva dos jogos da Copa do Mundo, será melhor acelerar o programa escolar” [discurso argumentativo]. “Ou antes, caiam fora porque o PCC voltou a atirar!”

Princípio Descrição do processo

[discurso jussivo].

Desativação A desativação produz no sistema discursivo a desdiscursivização, de que resulta o abandono da hierarquia tópica, e ocorre quando os locutores desenvolvem estratégias tais como os parênteses e as digressões. É evidente que muitas classes de palavras são envolvidas no processo, e as preposições não ficam de fora.

Gra

m

áti

ca Ativação A ativação das propriedades gramaticais (gramaticalização) é responsável pela construção dos sintagmas e das sentenças, pela

ordenação dos constituintes, pela concordância, pela organização da estrutura argumental etc. Neste particular, entendo que a atribuição de caso e de papéis semânticos pelos operadores da predicação decorre do princípio de projeção estrita, a que se referem os termos “transitividade”, “regência”, “valência”, “princípio de projeção”. A projeção estrita é o correlato gramatical da projeção pragmática. Do ângulo da

fonologização, os itens preposicionais aqui exemplificados

exemplificam o problema da paragoge de -s no pronome-advérbio antes, a prótese de a- e a redução do grupo ns em ad+trans > atrás, por regramaticalização de trans, o mesmo tendo ocorrido em post, alterado para depois (<de+post), cujo iode deve ter resultado da ditongação da vogal acentuada o quando travada por alveolar surda, como em arroz > pop. arroiz. O item está sendo refonologizado na forma pop. adispois. Do ângulo da sintaticização, a preposição ante introduz argumento interno oblíquo e adjuntos adverbiais de lugar, tempo e qualidade. Reativação A reativação das propriedades gramaticais produz a regramaticalização

das construções, captada na literatura por meio dos termos poligramaticalização e reanálise. A reanálise é a mudança das fronteiras entre constituintes. Ela explica, entre tantos outros fenômenos, a regramaticalização do substantivo tipo, que deixa de ser interpretado como o núcleo de um sintagma nominal (como em [[[um] [tipo] [de

saia]]]), passando a ser considerado como o especificador desse

sintagma (como em [[um tipo de] [saia]]), o que abre caminho à sua discursivização como marcador discursivo (cf. “tipo assim, vamos tomar um café?”). Reanalisam-se sintagmas e as sentenças, o que acarreta mudanças da fronteira sintática. Repetem-se as palavras, para criar a constituência sentencial. O redobramento sintático pode ser interpretado igualmente como um caso de reativação de propriedades gramaticais. Desativação A desativação das propriedades gramaticais (desgramaticalização) é

responsável pela categoria vazia, de que se encontram exemplos na fonologia (erosão fonética, omissão do núcleo silábico etc.), na morfologia (morfema flexional zero) e na sintaxe (elipse de constituintes sentenciais, ou categoria vazia). Capitula-se aqui igualmente o fenômeno da ruptura da adjacência estrita.

Fonte: Adaptado de Castilho (2007, p. 345-350).

Conforme resta claro nessa análise exaustiva de Castilho, esses princípios permitem conciliar efetivamente diacronia e sincronia na análise linguística sem perder de vista a dinamicidade da língua e, além disso, me licenciam a tratar de permanências e reincidências no PB.

A partir dessa perspectiva, nas seções seguintes, tentarei relacionar alguns dos principais aspectos alegadamente permanentes do PB em relação ao PE e verificarei se tais casos remontam especificamente ao português arcaico ou se é possível vinculá-los ao latim. Antes, porém, de passar ao exame desses aspectos, considero conveniente esclarecer onde essa discussão se encaixa dentro do debate maior sobre as diferenças entre o PE e o PB.

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