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Linha argumentativa: Saberes médicos e conhecimentos científicos

5 A ARGUMENTAÇÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: METODOLOGIA

5.2 Análise do Corpus

5.2.3 Linha argumentativa: Saberes médicos e conhecimentos científicos

A terceira linha argumentativa escolhida para ser trabalhada nesta pesquisa está relacionada à utilização de conhecimentos pertencentes às ciências médicas. Esses argumentos aparecem na maioria dos votos que compõem a decisão e autorizam grande parte da fundamentação dos votos por lhe conferirem credibilidade. Ao se apropriarem em, manifestações de especialistas em anencefalia e na literatura médica correspondente, os Ministros, muitas vezes, conseguem justificar seus posicionamentos, atribuindo-lhes amparo científico que vai além de suas percepções subjetivas e desvinculam as crenças e os "achismos", como veremos a seguir.

O segundo capítulo do voto de M1 é intitulado de A anencefalia e foi escrito para discorrer sobre os conceitos da anomalia, seus diagnósticos e prognósticos. É através da apropriação do logos que M1 consegue oferecer um caráter mais técnico à sua argumentação, já que ele demonstra ter o conhecimento científico necessário através da utilização de itens lexicais e dizeres provenientes da literatura médica e de seus maiores especialistas. Nesse sentido, M1 elabora uma imagem de si associada ao conhecimento específico e certo sobre o objeto principal da demanda, para conferir-lhe credibilidade.

O Relator, portanto, seleciona dizeres de médicos renomados, por considerá-los suficientemente esclarecedores e inquestionáveis, fazendo com que não se percebesse os efeitos provenientes do pathos. Todavia, mesmo diante de um enunciado pautado em uma argumentação de caráter científico e construída a partir de itens lexicais científicos a emoção pode ser suscitada.

Esse cruzamento das três dimensões constitutivas da argumentação que suscita emoções no auditório pode ser demonstrada em: “isto é morte cerebral, rigorosamente igual. O anencéfalo é um morto cerebral [...]” (M1, p.47). Nesse trecho, o Relator equipara a ocorrência da anencefalia com a morte cerebral e é através da utilização da palavra “morte” e de sua derivação “morto”, as quais apresentam uma carga negativa, que ele leva o interlocutor a sentir o “peso” de um bebê que já pode ser considerado um ser morto dentro do próprio útero.

Em um momento posterior, ainda se referindo às características de um anencéfalo, M1 continua: “faltam, portanto, não somente os fen menos da vida psíquica, mas também a sensibilidade, a mobilidade, [...] consciência, cognição, vida relacional, comunicação,

afetividade e emotividade” (M1, p.47)84

. Esse excerto evidencia inúmeros aspectos presentes na vida de qualquer ser humano e, a partir disso, tenta suscitar tristeza, dó e até mesmo inconformidade, diante da inexistência de todos esses aspectos em um bebê. “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa”(M1, p.50).

M1 e M2 relembram, ainda, o caso de Marcela, uma suposta portadora de anencefalia que teria sobrevivido por um ano, oito meses e doze dias e que é um dos grandes argumentos difundidos pelos grupos que são contra o abortamento. Para refutar por antecipação esse argumento, ambos os Ministros já esclarecem que no caso não se trata de anencefalia e sim de uma meroencefalia, a qual não caracteriza a ausência total de cérebro, somente a ausência parcial desse órgão, a qual,apesar de causar diversas deficiências, é plenamente compatível com a vida humana.

Como estratégia de proteção de face, M1 continua sustentando a sua argumentação sob a égide das dimensões patêmica e demonstrativa a fim de combater um possível caráter eugênico de seu enunciado:

não se trata de feto ou criança com lábio leporino, ausência de membros, pés tortos, sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, cardiopatias congênitas, comunicação interauricular ou inversões viscerais. Enfim, não se trata de feto portador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Cuida-se tão somente de anencefalia (M1, p.53).

A enumeração de diversas deformidades fetais mostra que o caso em tela só se relaciona a uma única e específica deformidade que é considerada incompatível com a vida extrauterina. Não se trata, portanto, de outras deficiências fetais que são plenamente aceitáveis após o nascimento, e sim de uma deficiência que certamente impede o gozo de qualquer possibilidade de vida extrauterina. Nesse sentido, a imagem do locutor, devidamente protegida, não poderia ser associada de forma alguma a partidários do aborto de caráter eugênico, muito menos da maneira como era defendido pelos regimes fascistas.

Além disso, outro argumento constantemente trabalhado pelos grupos “pro-vida” do feto relaciona-se ao fato de que a obrigatoriedade dos nascimentos de anencéfalos seria útil para a realização de doação de órgãos para outros bebês que, por ventura, necessitassem daqueles. Assim, o bebê recém-nascido que tem a certeza de morte doaria seus órgãos a outros bebês que precisassem de transplantes de coração, rins e outros. M1, no entanto, desconstrói esse pensamento utilizando, mais uma vez, informações provenientes de autoridades médicas ao dizer que o anencéfalo é “comumente portador de diversas outras

anomalias” (M1, p.58) e possui “órgãos menores do que os de fetos saudáveis” (M1, p.58) o que “praticamente impossibilita a doação de órgãos” (M1, p.58)85

.

Dessa forma, M1 demonstra a ilogicidade de permitir que uma gravidez deva chegar até o fim com a finalidade exclusiva de doação de órgãos. No mesmo sentido, M2 também constrói o seu voto conceituando a anencefalia, no entanto, amplia o raciocínio argumentativo baseado em saberes médicos e científicos ao discutir conceitos da Bioética. A definição utilizada por ele é encontrada na Encyclopedia of Bioethics86 que define Bioética como “o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo a visão, as decisões, a conduta e as políticas – das ciências da vida e do cuidado da saúde, empregando uma variedade de metodologias éticas em um contexto interdisciplinar” (M2, p.2).

Essa definição mostra a preocupação de M2 em aduzir a importância de as diversas áreas de conhecimento serem vistas e estudadas sob um ângulo interdisciplinar, de forma que os campos das ciências biológicas, da ética, da moral e do Direito andem juntos auxiliando-se mutuamente.

Ao argumentar a emoção “lástima”, M2 refere-se aos índices científicos que mostram o alto nível de ocorrência da anencefalia e que apenas uma minoria de fetos chega até o final da gestação. Entre aqueles que conseguem nascer, a vida perdura por pouco tempo, normalmente, apenas por minutos, e isso seria incomparável com os longos noves meses esperados pela mulher na gravidez.

Lastimavelmente, são poucos os casos em que o infante anencefálico sobrevive por um considerável período fora do útero materno. Estudos feitos a partir de dados coligidos entre agosto de 2000 e julho de 2010 no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM/Unicamp) indicaram que 94% dos recém-nascidos com essa deformidade (já excluídos os que sequer sobreviveram até o parto) faleceram nas primeiras 24 horas após o nascimento; destes, 67% morreram na primeira hora. A média de vida calculada foi de 51 (cinquenta e um) minutos87 (M2, p.5).

No excerto acima, além da argumentação pelo termo de emoção "lástima", no sentido conferido por Plantin (2010), que justifica a atribuição de um experienciado ao locutor, há o levantamento de dados objetivos que apresentam números científicos capazes de suscitar

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Cf. Dr. Salmo Raskin, Médico pediatra e geneticista, especialista em Genética Molecular pela Universidade de Vanderbilt, Estados Unidos, especialista em Genética Clínica pela Sociedade Brasileira de Genética Médica, doutor em Genética pela Universidade Federal do Paraná e Dr. José Aristodemo Pinotti, Médico sanitarista, especialista pelas Univesidades de Florença e Milão, Itália, e pelo Institute Gustave Roussy de Paris.

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New York: MacMillan Editorial Reich, 1995, Rev. Ed., v. 1, p. XXI apud SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão. Direitos Fundamentais e Biotecnologia. São Paulo: Método, 2008. p. 48.

87MACHADO, Isabela Nelly; MARTINEZ, Sílvia Dante; BARINI, Ricardo. Anencephaly: Do the Pregnancy and Maternal Characteristics Impact the Pregnancy Outcome? In: Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. International Scholarly Research Network, ISRN. Obstetrics and Gynecology, Volume 2012, Article ID 127490.

emoções semelhantes às sentidas pelo locutor, se se levar em consideração a regra da sinceridade emocional, elaborada pelo mesmo autor.

Nessa linha argumentativa que enquadra os saberes médicos e científicos explorados pelos Ministros para a construção de seus respectivos votos, vale lembrar a justificativa de M1 sobre o fato de a anencefalia não se encontrar descrita no Código Penal Brasileiro como excludente de ilicitude. M1 pauta-se na ideia apresentada na petição inicial de que à época da criação e reforma desse diploma legal não havia meios próprios que possibilitariam a detecção dessa anomalia fetal nem o diagnóstico de outras anomalias incompatíveis com a vida extrauterina.

Entretanto, M3 refuta o argumento de M1 dizendo que à época existiam sim meios para detectar degenerações fetais e, para isso, utiliza informações de uma pesquisa88 as quais demonstram que “os diagnósticos de deformidades ou patologias fetais, realizados mediante as mais distintas técnicas, a começar do exame do líquido amniótico, já se encontram de longa data à disposição da Medicina” (M3, p.5-6).

Permito-me insistir nesse aspecto: caso o desejasse, o Congresso Nacional, intérprete último da vontade soberana do povo, considerando o instrumental científico que se acha há anos sob o domínio dos obstetras, poderia ter alterado a legislação criminal vigente para incluir o aborto de fetos anencéfalos, dentre as hipóteses de interrupção da gravidez isenta de punição. Mas até o presente momento, os parlamentares, legítimos representantes da soberania popular, houveram por bem manter intacta a lei penal no tocante ao aborto, em particular quanto às duas únicas hipóteses nas quais se admite a interferência externa no curso regular da gestação, sem que a mãe ou um terceiro sejam apenados (M3, p.6).

A partir do excerto acima é possível perceber que M3 atribui a responsabilidade de não enquadrar a hipótese da anencefalia no Código Penal ao Congresso Nacional, representante legítimo do povo. De forma que, se havia meios para a descoberta da anomalia e não houve o interesse pelos parlamentares em incluí-la como excludente de ilicitude no Código Penal à época de sua criação, é porque o “povo” não demandava tal proteção jurídica. Ademais, M3 exalta a capacidade e a condição dos parlamentares na criação e alteração das leis, atribuindo ao texto um aposto composto por itens lexicais fortes e significativos quais sejam, “legítimos representantes da soberania popular” (M3, p.6).

M3 alega, ainda, que a anencefalia não é a única doença congênita letal e, por isso, não poderia ser enquadrada nas hipóteses de excludentes de ilicitude do código penal sem que

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todas as outras também fossem incluídas. Para isso, utiliza os ensinamentos do Doutor Rodolfo Acatuassú Nunes, que lhe conferem credibilidade para falar sobre o assunto89:

A anencefalia é ainda, nos dias de hoje, uma doença congênita letal, mas certamente não é a única; existem outras: acardia, agenedia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal, holoprosencefalia, ostogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13 e 15, trissomia do cromossomo 18. São todas afecções congênitas letais, listadas como afecções que exigirão de seus pais bastante compreensão devido à inexorabilidade da morte90 (M3, p.16).

Para M3, se for aberta a possibilidade de isentar a antecipação terapêutica do parto de anencéfalos da sanção do crime de aborto, estar-se-ia “abrindo as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida intra ou extrauterina” (M3, p. 16-17). Esse trecho pode preocupar os interlocutores, tendo em vista que não se quer generalizar os efeitos da decisão ampliando para as demais anomalias fetais. Então, o orador alerta para o risco, caso se admita a inserção da anencefalia como excludente de punibilidade.

Insista-se: sem lei devidamente aprovada pelo Parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate público, retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto da Rocha Tarpéia, ao arbítrio de alguns, as crianças consideradas fracas ou debilitadas (M3, p. 17).

O último trecho selecionado para ser tratado nesse tópico comprova como o discurso decisório pode ser formado por elementos que podem comover o auditório. No caso, as emoções de medo ou terror podem ser suscitadas, tendo em vista a associação, feita por M3, da falta de lei devidamente aprovada pelo Parlamento à rocha Tarpéia que, no período Romano era considerada um local de execução.

Além disso, M3 equipara a situação dos fetos anencéfalos às crianças fracas ou debilitadas que eram atiradas do alto da rocha de Tarpéia sem chance de defesa apenas por não corresponderem ao ideal físico esperado pelos antigos romanos. A cena forte é descrita por meio de uma seleção lexical que causa revolta: "retroceder" (M3, p.17), "antigos romanos" (M3, p.17), "lançavam para a morte" (M3, p.17), "crianças consideradas fracas ou debilitadas" (M3, p.17).

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Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia Geral da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Tendo em vista todos os trechos escolhidos para a análise nesse tópico, é possível perceber como a utilização de argumentos de autoridade e baseados nos conhecimentos médicos e científicos a respeito da anencefalia são capazes de conferir credibilidade aos votos de uma maneira objetiva e, ao mesmo tempo, tocar seus interlocutores na expectativa de que esses sigam o locutor e votem no mesmo sentido que eles.