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Linhas que se misturam Desenho que se forma.

No documento Percurso interior : paisagem (páginas 114-154)

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No caminho descubro pássaros incrustados. São buraquinhos ou passarinhos? Há alguém que os viu enquanto passava - presos que estão no cimento da calça- da - e os libertou em forma de desenho. A arte é mesmo um outro modo de olhar. A imaginação tem um papel importante neste trabalho. Não me ocorre outro ter- mo senão trabalho criativo. Passeio pelos lugares atenta às formas e desenhos. Olho os musgos que crescem nos troncos das árvores. Mestre Leonardo (M. Claret,1985).

Avistei na esquina do trabalho um pequeno pássaro no chão... Pequeno origami feito de guardanapo amassado, expulso do boteco por alguém que sem querer o pisou e modelou...

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Defi nir e materializar as imagens que encontro e se formam através do meu olhar é muito importante. Para isso desenho na rua, seleciono, ajunto, fotografo, recorto e pesquiso intensamente a construção da imagem que vislumbro. Faço esboços e aquarelas, colagens, rabiscos, reviro papéis, procuro antigos desenhos que me ocorrem à memória, esquecidos completamente que nunca estão. Procuro ver sem esforço isso tudo que produzo, observando a imagem defi nir-se. Vou cercando essa visibilidade possível vislumbrada no mundo à volta ou em sonhos e imaginação... Aos poucos encontro a forma almejada. Busco concretizá-la... “Atividade de risco” (Buti, 1992), oscilando sempre entre êxito e fracasso. Mira- gens... são muitas vezes o que avisto e persigo materializar. Paisagens internas outra vez e para isso é preciso ousar um percurso interior.

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Nos “Escritos e Refl exões sobre Arte”, mestre Matisse, fala-nos: (...) amo os de- senhos, estudo-os; procuro neles revelações sobre mim próprio. Considero-os como as materializações do meu sentimento.” (1972, pg 150.) Também Mário Quintana, poeta gaúcho (1906 – 1994) afi rmou que até mesmo as vírgulas em seus poemas eram confi ssão (Quintana, 2000, pg.11). Até as vírgulas... Como pequeninos desenhos reveladores de quem os fez... Os meus também.

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Minha mãe parecia uma cientista, fazedora incansável. Sua casa, uma ofi cina, verdadeiro laboratório. Produtos e procedimentos manuais para tudo: curar e reproduzir plantas, confecção de manteigas e licores: jabuticaba e marolo chei- rosos a borbulhar no álcool. Bolinha de massa sacudindo-se aerada chamando para assar o pão. A matemática dos moldes de costura: desenho sobre o tecido. Goma laca para as pátinas. Betume para escurecer as peças. Arte.

Enquanto isso meu pai, esculpia e modelava com lâminas de cera vermelha e gesso. Havia ouro, prata, porcelana e mercúrio na nossa casa. Sob o cheiro forte de produtos químicos de protético e odontólogo rodavam coisas num motor maluco. Alquimia.

Um dia, reapareceu um querido e velho amigo nosso e perguntou: – Quem era a pequena de olhos grandes que fi cava aqui observando tudo?

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Arte como ofício sempre foi a perspectiva que me interessou. Processos inte- ressantes e manuais para se realizar as coisas. Vida. Aprendi com meus pais e avós, com minha família italiana, lavradores empenhados nos segredos do solo e da lavoura. Busca por um fazer concreto e prático para defi nir e objetivar no campo das artes. Métier. Vocação: ato de chamar (do lat. Vocatio-onis: tendência, aptidão. Dic. Etim. Nova Fronteira, 1986, RJ).

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(...) A visão não constitui um registro mecânico de elementos, senão um apoderar-se de estruturas signifi cativas (...)

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Olhar. Ver. É preciso entender o que se vê, disse o mestre desenhista... Não me esqueci jamais... Para entender, desenho muitas vezes as mesmas coisas... A mesma rua, a mesma árvore, o mesmo lugar. E sempre é novo, sempre é uma outra vez. Assim, aprendo sempre.

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Alteio o olhar. Espaço de procura: meu entorno. Assim que encontro, visito tudo novamente, rodeio, buscando surpresas e revelações. Arabescos. Estou à dis- posição.

139 Observar o real é exercer um olhar ansioso por descrever pormenores e detalhes

realísticos? Não é assim para mim. Observo, mas me sensibiliza mesmo é o todo, o aspecto geral da paisagem. Um olhar perscrutador sim, mas um olhar que percorre o mundo visível buscando traduzi-lo enquanto síntese, registro de uma impressão à sensibilidade. Essa é a liberdade que procuro ao desenhar. Um espaço para a expressão que me interessa.

“Desenhar é concretizar uma ideia.” ‘‘(...) Uma obra sem desenho é uma casa sem madeiramento”

(Matisse, 1972, pg. 152).

Desenhar é algo do passado, dizem alguns. Não. O desenho é algo cultivado, conservado e aperfeiçoado. Uma prática que exige dedicação. O desenho é uma arte, uma linguagem.

(...) Não, Josino, a rima não é um recurso ultrapassado, mas um recurso adqui- rido e conservado. Por que o poeta não haverá de usar esse mágico anzol de imagens?

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O desenho é tagarela, “explicita ideias”, disse mestre Matisse. Quando ele real- mente diz, pode-se entender muito.

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Desenho. Desígnio, Intenção. Entendo isso como gesto, traço, registro, movi- mento e ritmo. Na paisagem, rendo-me ao ritmo. Se o ritmo me toma quando estou passeando por aí com os meus cadernos, há sempre um impacto. Como a sensação de um susto: impacto visual. É forte, é signifi cativo, não penso em nada, rendo-me à paisagem e registro as relações que me suscitaram o ritmo. Quando desenho sinto algo musical, uma música visível à qual dedico-me silenciosamente.

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A ideia das rimas plásticas como contrastes e analogias que conduzem o nosso olhar e despertam a sensibilidade (Lhote,1955, fi g. 19) aproxima-se ao que expe- rimento quando pratico o desenho.

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O esboço como anotação primeira, vívida e expressiva, é muito importante no meu pensamento, no modo como concebo o desenho. Muitas vezes acho que é o sufi ciente. Agrada-me tanto o que produzo assim que não cultivo o hábito do retoque. Conservo a impressão de que aquela anotação é produto do momento específi co em que a realizei, por isso basta estar como está. A palavra “esboço“ dá uma falsa ideia de incompletude e indefi nição, mas é onde se pode atingir um alto nível de expressividade. (Clarke, 1961, pg.134)

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Assim que iniciei este trabalho e voltei a utilizar os materiais gráfi cos, quis usar o nanquim. Mas o que me vinha à imaginação era o desenho todo em marrom e não o nanquim preto comum. Mas não o comprei. Passei a misturar o preto com o vermelho e a pesquisar os tons de marrom que me agradassem. Feito isso passei a usá-los nos desenhos. Um clima bonito surgiu, quente, linha escura mas nem tanto... Ainda assim faltava algo... Quando diluí a tinta e a linha se formou leve e transparente achei bom mas ainda faltava algo também...

Experimentei o azul que tinha no ateliê. Azul ultramar grave e escuro, lindo. Sua- vizei – o em aguadas leves e pintei os céus... Mais tarde adquiri um nanquim azul celeste que passei a usar e os céus fi caram mais claros e alegres. Marrons, dois azuis, vermelho, preto. Quando misturei tudo em camadas leves superpostas surgiu um lindo cinzento, encorpado ora em azuis, ora em vermelhos, ora em marrons. Índigo? Corri olhar mestre Piranesi (1720 – 1781) mais uma vez: cárce- res... Onde essa cor, esse tom?... Quando viu esses trabalhos, mestre Evandro disse: - Essa cor é sua...

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Foi a primeira pessoa que ao observar as aguadas, comentou sobre a cor... Cor que me chamou lá de longe da paisagem cinza do papel e que fui buscar em pesquisa e intenção... Sensibilidade do mestre – espectador. Um olhar especial, preparado, sábio.

Cor - segue sendo para mim a expressão primeira de um clima ou atmosfera. Mergulho, submersão, sentir. Mestre Ianelli (1922 – 2009).

A respeito da busca que move o artista tentando concretizar seu trabalho assim escreveu Marco Buti (1996, pg. 107): “À manifestação no plano material corres-

ponde uma rede de associações, infl uências, memórias, anseios, conhecimen- tos, refl exões, que justamente ao realizar-se atinge a máxima concentração e exigência: torna-se forma.”

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Forma. Sobre isso Paul Klee (1879 – 1940) nos deixou uma frase importante:

Boa é a formação, má é a forma porque a forma é fi m, é morte

(Bosi, 2006, pg.71).

A forma sempre me chama a atenção, ocupa - me os pensamentos e impres- sões. No entanto, o sentimento que guardo sobre isso possui afi nidades com o que Klee disse: a forma é difícil e realizá-la é sempre perder alguma coisa que fi ca de fora do que se imaginou ou viu... Busco um ritmo que arrebate a forma e a conduza. Como um pássaro branco que escapole da caixa – expressão.

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Um todo

Partir de um todo

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