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VII. Lis, uma história de poluição

VII.1. Lis cantado

Lis, uma história de poluição

Aos rios reconhecem-se funções de tal modo importantes que Pedro Arrojo Agudo fala na necessidade de se considerarem os ecossistemas hídricos de uma forma abrangente, que inclua o seu benefício para os colectivos humanos e o facto de serem o suporte básico de vida de espécies não humanas que integram esses ecossistemas, e que tenha presente a articulação territorial entre as actividades produtivas, as funções ecológicas, os serviços ambientais e os valores sociais e simbólicos, designadamente as diferentes utilizações e o seu uso como recurso (água, pesca, energia), como vias de transporte e local de recreio e lazer, e o seu elevado valor estético e cénico (Agudo, 1999 e 2001), mas também simbólico e emocional, a propósito do qual Martinez Gil fala em fluviofelicidade (Gil, 2010). Relativamente aos rios nacionais, sabemos pela investigação de Luísa Schmidt que os rios fazem parte do imaginário português e que durante a 2ª metade do séc. XX foram os elementos da paisagem mais mediatizados, em particular com referências à sua função lúdica e instrumental (Schmidt, 2003).

VII.1. Lis cantado

Durante séculos, a beleza da paisagem e o aspecto bravio do Lis e do Lena inspiraram poetas e ensaístas. Ambos devem o seu nome a Francisco Rodrigues Lobo (1556-1625), discípulo de Camões, que os designou por Leirena e Heirena, respectivamente Lena e Lis61, naquele que terá sido o primeiro esforço no sentido de pensar cada um como uma unidade. O Lis tinha até aqui diferentes designações ao longo do seu percurso, era conhecido como rio Cortes, foz de Agodim, Ulmar, Alpentente e foz de Oitavim. Para Luciano Ramos, seria diferente celebrar       

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Aceitamos essa correspondência sabendo não estar isenta de controvérsia, aliás, extensível à possibilidade do rio que conhecemos como o Lis ter sido denominado rio Lena, que assim desaguava no Atlântico, ao passo que o Lis desaguaria à saída de Leiria no rio Lena (André e Cordeiro, 2002: 124-125; Ramos, 1968, 424-430), porém quando D. Pedro III encarregou o engenheiro Reinaldo Oudinot de dirigir as obras de aproveitamento dos campos e rectificação do rio Lis, por volta de volta de 1772, era com essa designação que a ele se referia e não por Lena (Oudinot, 1787).

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os encantos destes rios com a nova designação de cantar o rio das Cortes, de Ulmar, Porto de Mós ou Alpentente (Ramos, 1968: 430).

Francisco Rodrigues Lobo dedicou vários poemas aos cursos de água da região e do país. “Fermoso Rio Liz”62 é o poema mais emblemático e o que mais interessa à nossa investigação. Dele sobressai a imagem de um rio repleto de encantos e livre da intervenção humana, uma imagem igualmente presente em dezenas ou mesmo centenas de poemas publicados até meados da década de 80 do século XX, e que se vê alterada pela poluição que passou a caracterizar estes cursos de água.

Fermoso Rio Liz

Fermoso rio Liz, que entre arvoredos Ides detendo as águas vagarosas até que umas sobre outras de invejosas ficam cobrindo o vão destes penedos; Verdes lapas, que ao pé de altos rochedos sois moradas das Ninfas mais fermosas pontes, árvores, ervas, lírios, rosas, em quem esconde Amor tantos segredos: Se vós, livres de humano sentimento, em quem não cabe escolha nem vontade, também às leis de Amor guardais respeito, Como se há-de livrar meu pensamento de render alma, vida e liberdade se conhece a razão de estar sujeito?

Francisco Rodrigues Lobo (séc. XVII) Em conjunto, o Lis e o Lena têm inspirado gerações de poetas, populares e eruditos, que cantaram a beleza e esplendor destes rios, enquanto rios bravios e ao mesmo tempo repletos de encantos naturais. A sua ligação era tão forte que o provável enlace foi celebrado em 1911 por Joaquim Marques da Cruz no poema “Lenda do Liz e Lêna”.

Lenda do Liz e Lêna

Nasceu o rio Liz junto a uma serra No mesmo dia em que nasceu o Lêna; Mas com muita paixão, com muita pena Do seu berço não ser na mesma terra.       

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Posteriormente, Rodrigues Lobo fez idêntica evocação ao Tejo no poema “Fermoso Tejo meu, quão diferente”.

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Andando, andando alegres, murmurantes Na mesma direcção ambos corriam; N’elles bebendo as aves chilreantes Contavam esse amor que ambos sentiam. Um dia já espigados, já crescidos

Contractaram casar, de amor perdidos, N’um domingo, em Leiria, de mansinho... Mas Lena, assim a modo envergonhada Do povo, foi casar toda enfeitada Com o Liz mais abaixo um bocadinho.

Joaquim Marques da Cruz (1911) Em 1942, coincidindo com o arranque das obras do Plano Geral de Regularização do Rio Lis e Afluentes, em prosa poética, Virgílio Guerra Pedrosa dirigiu-se ao Lis para exaltar alguns dos seus usos: a rega dos campos, o rio como elemento da paisagem e motor do ecossistema e por último o Lis das lavadeiras no seu dia-a-dia63. Porém, a partir da década de 70, associada as descuido na limpeza das margens, a poluição marcou definitivamente a imagem do Lis e dos seus afluentes, alteração que rapidamente se reflectiu na produção literária. Num dos primeiros trechos dedicados ao Lis estão patentes os sinais de degradação deste rio. Trata-se de uma canção escrita e composta por Júlio César, de Vieira de Leiria, com o título “Canção do Lis”. O poema termina com uma mensagem de desencanto face ao progresso por ter roubado os encantos ao rio.

Canção do Lis

Formoso Lis que passas sussurrante Por entre verdes campos e pinhais, Acorda, vem ouvir estes meus cantos Envoltos nos gorjeios dos pardais. Tu és relicário dos segredos De tanto apaixonado à tua beira, Tu és ornamento de beleza

Tornando inda mais linda a nossa Vieira. (Estribilho)

      

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Virgílio Guerra Pedrosa escrevia: “Eu te saúdo também, ó meu querido Lis, prata líquida dos campos marginais, que passas rebrilhando ao sol, na doce alegria de os regares e que segues à toa, como um doidivanas, perdido a caminho do mar, segredando um gracejo a cada borboleta, soltando um queixume a cada passarinho”. Prosseguindo: “Nas pequenas angras que ficam nas margens – às Tercenas, à Ponte-Nova e até na Foz, ouvem-se lavadeiras cantando: canções de alegria ou de tristeza, cantigas de amor e de saudade” (Pedrosa, 1942: 19 e 20).

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Ó Lis que a nossa Praia vens beijar E os teus segredos sepultas nesse mar, Mas não te esqueças

Que nesta canção sentida Vão em teu seio

Retalhos da minha vida.

Altivos, verdejantes salgueirais Que aqui à tua beira tu banhavas Essa alegre vivenda dos pardais Que docemente a rir também beijavas. A onda arrasadora do progresso Roubou-te esses encantos de beleza, O verdejante mantão tão espesso Que a teus pés debruçou a natureza.

Júlio César (Canção do Lis, RL, 09-08-1975) Poucos anos depois, em 1982, Abílio Correia Neves, em “Rio Lis”, num misto de apelo e mágoa, partilhou as suas preocupações quanto ao futuro do Lis.

Rio Lis

Rio Lis! Protegem-te árvores seculares, Com as suas sombras, numa grande extensão; Líricos cantaram-te com uma certa unção... Agora corres sozinho em direcção aos mares! A incompreensão que não destrua a beleza, Os insensíveis que atendam os teus queixumes; Não deixes matar os teus peixes aos cardumes... Deixas esta minha alma a chorar de tristeza! Envolves a La Eirena muito ternamente, Com afecto, bem querer! Com grande alegria! Deixas esta linda Cidade de Leiria.

A cantar, a correr, arfando de desejos

Vais juntar-te ao Lena que cobres de mil beijos Num amplexo, com ardor... amorosamente!...

Abílio Correia Neves (extracto de “Rio Lis”, RL, 08-01-1982) Separadamente também o rio Lena tem sido motivo de inspiração, num desses exemplos, em 1983, José A. Padrão enfatizava o facto do rio se ter transformado em vazadouro para onde eram dirigidos os esgotos.

157 Rio Lena

Também aqui, oh Lena terás a tua voz.

Aqui, oh rio, correrá a tua água mas límpida e pura! Pelo menos aqui

não te deixaremos secar;

não te transformaremos em vasa douro nem em cano de esgotos.

aqui terás

as tuas braças de salgueiro, os teus pássaros com seus ninhos as tuas bogas e escalos;

saciarás a sede dos teus campos e cantarás o teu hino

à natureza e à vida;

aqui terás os teus espelhos de água,

onde as crianças e os velhos se mirem se recordem... aqui terás os teus choupos e chorões,

aqui terás os teus jardins

onde se possa sonhar a paz e a feli cidade, onde se possa extravazar a angústia, chorar e rir,

e ouvir despreocupados as vozes infantis

longe de ruídos, dos negócios e da política. Aqui enfim, oh Lena

te gravaremos as histórias que tu irás contar

ajoelhado aos pés

de Santa Maria da Vitória. E em que tu

mais pujante e vivo

inspirarás o futuro dos Homens que continuarão a nossa Vila.

José A. Padrão (RL, 30-09-1983) No final da década de 80, o Lis e o Lena agonizavam, num enlace desta vez de gemidos e dor, e não de encantos como para tal aludia Marques da Cruz. O poema “Ao rio Lena”, escrito por Deolinda para assinalar a comemoração do Ano Europeu do Ambiente, publicado a 8 de Maio

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de 1987 no jornal Região de Leiria, altera de forma definitiva a imagem destes cursos de água, numa altura em que eram bem visíveis os sinais de degradação da bacia do Lis.

Ao rio Lena – Onde vais, Lena De cara enfarruscada? É tua companheira, A bicharada.

Quanto a peixe nada. De prata eram tuas águas. Transparente e alegre

De pedra em pedra, saltitavas. Onde levas agora

Essas tuas águas,

Tão fétidas e de cor escura? A quem vais contar

As tristes mágoas

De perderes toda a brancura! – Vou ter com o meu irmão Que de nome é Lis

E cansado da poluição Chora desesperado e infeliz. E, de mão na mão,

Ambos iremos Tristes e desolados,

Padecendo do mesmo mal, Ter com o pai Mar,

Que está também a soluçar, Soltando gemidos de dor Porque os homens Já não têm coração, Porque os homens Já não nos têm amor!...

Deolinda (RL, 08-05-1987) A transformação da imagem do Lis e do Lena é acompanhada, praticamente em simultâneo, por alterações nas formas de fruição por parte das comunidades nestes ecossistemas em actividades de lazer, recreio e pesca, e nos usos da água para a agricultura, entre outros exemplos. Foi o que aconteceu no período posterior à inauguração das obras do Plano Geral de Regularização do Rio Lis e Afluentes, em 1957. Desde então, à imagem das lavadeiras que ocupavam as margens do Lis, de Leiria à foz na Praia da Vieira, adicionam-se os passeios domingueiros, os banhos nas suas águas, e os concursos de pesca e natação. Durante cerca de três décadas realizaram-se nas águas do Lis importantes provas de natação e grandiosos

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concursos de pesca64, quase todos com dimensão nacional, que contaram com a presença de centenas de concorrentes e muito público a assistir.

Gradualmente a poluição passa a afectar a organização destas actividades, uma transformação que ganhou visibilidade na sequência do XII Concurso Internacional de Pesca Desportiva de Leiria, após o envio de uma exposição a 3 de Agosto de 1971 a Associação Regional do Centro de Pesca Desportiva a manifestar o seu desagrado pela poluição das águas do Lis. Ainda assim, os primeiros sinais de poluição não impediram que prosseguisse a organização de iniciativas idênticas65, a demonstrarem uma estreita relação das populações com o rio. Na década de 80, o agravamento da poluição ameaçou a organização destas iniciativas e levou mesmo à sua suspensão. Um dos episódios mais marcantes ocorreu em Junho de 1986, entre Leiria e Monte Real, quando, no momento em que um grupo de pescadores do Grupo Desportivo Lispesca, se preparava para participar num concurso de pesca a organização se viu forçada a cancelar a competição perante o cenário desolador da morte de milhares de peixes. Este episódio destaca-se, igualmente, por ter sido de imediato denunciado à agência ANOP pela Comissão de Defesa Ecológica (associação com sede em Tomar) e só depois reportado às entidades oficiais (JL, 12-06-1986).

No final da década eram poucos os pescadores, amadores ou desportivos, que se arriscariam a pescar nas águas do Lis. Na sua edição de 30 de Junho de 1989, o Jornal de Leiria faz o ponto de situação ao afirmar: “O rio Lis foi em tempos idos um grande pólo de atracção de amantes de pesca desportiva e nele se realizaram importantes concursos. Hoje, se alguém se arrisca pescar no Lis, fá-lo junto à sua foz, aproveitando as águas do mar que na maré-cheia sobem o rio” (JL, 30-06-89). Do mesmo modo, representaria um risco tomar banhos nas águas do Lis,       

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Merecem particular relevo os concursos de pesca organizados pelo Sport de Lisboa e Benfica, com a realização da primeira edição em 1958 (SLB, 1958), e que tiveram edições sucessivas. A 2 de Agosto de 1964 realizou-se o VI Concurso Internacional de Pesca Desportiva no rio Lis, igualmente organizado pelo SLB, patrocinado pela Câmara Municipal de Leiria, Comissão Regional de Turismo de Leiria e jornal O Mensageiro, com a colaboração do Clube dos Amadores de Pesca Desportiva da Marinha Grande, Ateneu Desportivo de Leiria. Clube dos Amadores de Caça e Pesca de Leiria. No dia anterior, a 1 de Agosto, realizou-se uma prova a contar para a II Taça de Portugal, assim como a Taça Kubitschek de Oliveira, a I Taça Salazar e a II Taça O Mensageiro (SLB, 1964).

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Destacam-se o I Concurso de Pesca Desportiva do Rio Lis, organizado pela ATM – Associação de Trabalhadores Morgado, um concurso de Pesca Desportiva para amadores, realizado a 12 de Setembro de 1976, e que contou com a presença de 125 concorrentes (RL, 25-09-76). O “4º Concurso de Pesca Desportiva de Rio”, organizado pela Secção da Rua Paulo VI do Centro Social Paroquial Paulo VI (Sector Desportivo), disputado no dia 26 de Junho de 1977, entre 181 concorrentes, no Lis entre a Ponte do Sinaleiro e o Canal (Açude do Estádio) (RL, 09-07-1977); cuja V edição do certame se disputou em Outubro de 1978 e contou igualmente com mais de 180 participantes de vários pontos do país (RL, 14-10-1978). Assim como o I Concurso de Pesca de Rio das Obras Sociais da Câmara Municipal de Leiria, disputado em Monte Real no dia 10 de Junho de 1978, e uma prova de Pesca Desportiva no rio Lis, organizada pelo Centro Popular de Cultura e Recreio das Cortes e realizada a 7 de Setembro de 1980.

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problema sobre o qual parece ser elucidativo o título da notícia “Banhos perigosos. Rio Lis com águas inquinadas”, publicada também no Jornal de Leiria, na sua edição de 1 de Agosto de 1991 (JL, 01-08-1991).

Praticamente desde o final da década de 70 que no rio Lena estas iniciativas deixaram de se realizar. Nas suas crónicas para o jornal Região de Leiria, respectivamente de 31 de Julho e de 7 de Agosto de 1981, Josué P. Ruivo traçava um cenário negro do estado deste rio. Na primeira crónica falava do rio Lena (“para não falar também do Lis”) como um rio morto, onde nem os peixes, nem os alfaiates escaparam. Afirmava: “Pobre Lena, quem o viu e quem o vê! Hoje tem as águas podres, negras e mal cheirosas, não se vendo nelas a menor espécie de vida. Peixe, nem uma amostra. Os alfaiates que nos remansos das suas águas lhe davam vida e que serviam para nos distrair desapareceram e foram dar à perna para outro lado” (RL, 31-7-1981). A segunda crónica surge em resultado da reacção à primeira por parte dos leitores, que em menos de uma semana enviaram para Josué P. Ruivo 274 postais a expressar a sua preocupação pela poluição das águas deste rio.

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