• Nenhum resultado encontrado

VII. Lis, uma história de poluição

VII.2. Lis domesticado

O comportamento bravio do Lis e dos seus afluentes dava origem a vastas áreas pantanosas, razão para que, desde o início da nacionalidade, esta bacia tenha sido sucessivamente intervencionada com o objectivo de domesticar as suas águas e conquistar, para a agricultura e criação de gado, uma vasta área pantanosa, que no início do séc. XX atingia 500 hectares de pauis permanentes. Os Campos do Lis, de Leiria à Praia da Vieira, foram alvo de várias tentativas de enxugo e regularização do leito, que motivaram a construção de infra-estruturas necessárias ao controlo dos caudais, e à bombagem e circulação da água para onde outrora não chegava, o que permitiu alargar as áreas de regadio. No litoral foi necessário estabilizar a foz, de modo a minorar a fragilidade das dunas, que facilmente deixavam o rio abrir novo leito para o mar, o que para desespero as populações piscatórias impedia a navegabilidade do rio, ainda possível na Idade Média. A obstrução da foz tinha ainda impacto sobre os Campos do Lis, uma vez que durante os temporais de Inverno as “areias transportadas pela deriva litoral e pelo vento eram depositadas na embocadura do rio Lis, obstruindo a sua ligação ao mar, provocando a inundação dos campos agrícolas a montante” (André e Cordeiro, 2002: 128).

161

Numa primeira fase, os monarcas trataram de acudir à faixa litoral. D. Afonso III, no século XIII, deu início à plantação do Pinhal de Leiria, intensificando-se com D. Dinis entre 1279 e 1325. O mesmo D. Dinis haveria de mandar drenar uma pequena parcela com cerca de 2 hectares no vale do Lis, para que fosse cultivável até ao mar – conhecida como Reino de Ulmar. Cerca de dois séculos mais tarde, a 22 de Agosto de 1463, os Campos de Leiria foram doados por D. Afonso V ao seu sobrinho D. Pedro de Menezes, conde de Vila Real e Senhor de Almeida. Após a Restauração, por Carta Régia de 11 de Agosto de 1654, os Campos do Lis passam para a Administração da Casa do Infantado, fundada por D. João IV (Pacheco, 1959: 39).

Será sob Administração da Casa do Infantado que, por volta de 1772, D. Pedro III encarregou o engenheiro Reinaldo Oudinot de “dirigir as obras de aproveitamento dos Campos e rectificação do rio Lis, no sentido de evitar o açoreamento que assustadoramente se alargava pelos terrenos marginais, transformando tudo num extenso areal improdutivo”, implicando, igualmente corrigir a saída do rio na foz (Saraiva, 1943: 12). A proposta de Oudinot66 envolvia todo o curso do rio, que seria rectificado e regularizado, e a foz. Sendo que Oudinot fez alguns ajustes no projecto à medida que as obras avançavam. A 31 de Julho de 1778 propôs “uma série de trabalhos que tinham em vista evitar alguns inconvenientes, por os julgar de grande utilidade para a fertilização dos campos, no intuito de melhor proporcionar o depósito dos lodos nateiros provenientes das inundações invernais, que assegurariam as culturas e aumentavam uma boa produção com a rega das terras que mais aptidão mostrassem para isso, e delas se tirassem abundantes colheitas”. A alteração proposta era de tal amplitude e influência na paisagem que se impunha a construção de um boqueiro abertura e a mudança do rio para uma direcção em linha recta. Na foz a intervenção implicava o seu deslocamento para sul, ou seja, do Pedrogão para Vieira de Leiria, onde seria construído um molhe de fixação dos areais da costa e das dunas, complementarmente o projecto previa a arborização dessa área (Nunes, 1993: 45-59; Pacheco, 1959: 43). Por Aviso Régio de 22 de Maio de 1779,       

66

O plano de Oudinot implicou obras a dois níveis: “1.º as que tiverão por objecto a reducção do Rio á huma linha recta, desmolindo os immensos morros de área que o fazião tortuoso, e herão causa de se demorarem as agoas no Campo. 2.º As que se fazem precisas para a segurança da Foz: estas consistem 1.º Em huma Jettea junto ao Mar para segurar a boca do Rio contra as Ondas e os ventos que continuamente trabalhão para tapala. 2.º Em hum maraxam de faxina, pedra e terra, o qual continua pelo rio a cima na mesma linha recta com a referida Jettea para conter o canal do rio sem tortura, e o impedir de romper para o Sul, como costumava: este maraxão principia pela parte de baixo em o sítio aonde já não se receião ondas de mar tam perigozas, e se pode admitir essa construção mais económica e não menos durável do que a da Jettea: 3º Em alargar e alimpar o seixo do Rio no sítio do Enliado, aonde se lhe tem praticado antigamente huma saída por hum outeiro de seixo, tudo e pisarra”» (Oudinot, 1787; Saraiva, 1943; DGSH, 1962).

162

foi determinada a Oudinot a execução daqueles trabalhos, posteriormente ampliados por uma proposta de 16 de Setembro de 1780 Aviso Régio de 27 de Janeiro de 1781. Por Carta Régia de 25 de Setembro de 1784 seria ainda ordenada a construção de novos boqueiros “para aliviar o pêso das águas” (Saraiva, 1943: 21).

Após a morte de D. Pedro III, em 1786, o príncipe D. João mandou o sargento-mor Manuel Caetano de Sousa fazer uma inspecção às obras, este, contudo, não se limitou a realizar tal tarefa, elaborou um novo projecto que motivou a reacção imediata de Oudinot através de um extenso relatório, segundo as suas palavras, como resposta “às malévolas e precipitadas apreciações do referido inspector” (Oudinot, 1787; Pacheco, 1959: 42). Apesar desta divergência, Oudinot manteve-se na direcção das obras do rio Lis, até que, por Aviso Régio de 2 de Janeiro de 1802, foi encarregue de “proceder à execução do projecto para a obra da abertura da barra nova e pôrto de Aveiro” (Saraiva, 1943: 27).

Os anos seguintes foram marcados pelas Invasões Francesas (1807-1808, 1809 e 1810-1811), durante as quais milhares de habitantes das populações da região perderiam a vida, uns dizimados pelas tropas invasoras, outros sacrificados à fome e doença, e outros fugiram. A região entrou em decadência, situação que se agravou após a saída dos franceses, com a ocupação Inglesa e as frequentes crises políticas (Pacheco, 1959: 43/44). Posteriormente, seria fortemente marcada pela reforma administrativa de 1832, que ao extinguir dízimos, milícias, ordenanças, prestações foraleiras e corporações de mão morte, permitiu que a propriedade ficasse acessível aos capitalistas, convertendo-se em proprietários, o que na prática resultou no abandono dos campos. Em 1834 foi extinta a Real Casa do Infantado e os seus bens foram incorporados na Fazenda Nacional.

Em 1840, reconhecendo “o estado de abandono, immensamente ruinoso à agricultura, em que se achava o mesmo campo, por estar reduzido a esterilidade e convertido em pântanos insalubres com grave detrimento da saúde dos povos confinantes” (Decreto de 24 de Dezembro de 1901, 1902: 3), o Decreto de 21 de Março, aprovou o regulamento de conservação e melhoramento dos Campos de Leiria, e criou uma junta de proprietários para dirigir e administrar as obras. Apesar desse esforço, a situação agravou-se a tal ponto que, a 15 de Junho de 1886, o Intendente de Pecuária do Distrito de Leiria afirmava estarem os campos marginais do rio de nível inferior ao do leito do rio, ou seja, em pleno mês de Junho, encontravam-se alagados, impossibilitando a lavra e sementeira. E a foz encontrava ameaçada a tal ponto que, a 12 de Abril de 1887, motivou a representação feita ao Governo pela

163

população de Vieira para pedir a sua intervenção na tentativa de salvarem as suas habitações. Uma tentativa em vão, pois no final do séc. XIX o rio abriu caminho para Sul e arrasou várias casas (Pacheco, 1959: 50-55).

No final do séc. XIX as repercussões estendiam-se a diversas comunidades e profissões. Leiria sofria igualmente as consequências da constante elevação do leito do rio, pois à semelhança do que ocorria nos campos a parte baixa da cidade era inundada, o que dificultava ou tornava perigoso o trânsito pelas pontes; por sua vez a morosidade dos esgotos colocava em risco a higiene e saúde dos seus habitantes (Decreto de 24 de Dezembro de 1901, 1902: 3/4). Nos campos, com o leito a correr mais alto e as dificuldades de escoamento das águas, estavam criadas as condições para a formação de pauis. Nestas condições era praticamente impossível ter terrenos em condições de cultivo e, como factor agravante, as populações eram frequentes afectadas por casos de paludismo e doenças como o distoma hepático afectavam o gado bovino (MOPC, 1945: 72; Pacheco, 1959: 87-118). Simultaneamente, o rio deixou de ser usado no transporte de madeiras, precipitando a crise na sua extracção e, por arrasto, na construção naval. Rapidamente o litoral entrou em agonia, assistindo-se ao êxodo em massa de lenhadores e artificies, e ao desaparecimento do antigo arsenal do Lis, que em compensação levou à expansão dos estaleiros de S. Martinho do Porto (Vieira, 1944: 11-12). Em 1901 foi criada, através do Decreto de 24 de Dezembro, a Junta Directora dos Serviços de Conservação do Regime do Rio Lis, a quem competia dirigir e administrar as obras de correcção do regime de bacia do rio Lis e o melhoramento dos campos de Leiria, assim como promover a correcção do regime do rio, e propor à aprovação do Ministro das Obras Públicas ante-projectos e projectos e a execução dos que fossem aprovados (Decreto de 24 de Dezembro de 1901, 1902: 10). Ficaria a cargo da Junta toda a despesa com a conservação das obras de interesse geral, incluindo a construção e conservação de novas obras a jusante da cidade de Leiria, e as que fossem levadas a efeito no álveo do rio e campos adjacentes e encostas. A novidade introduzida é que previa a existência de um fundo especial, para o qual contribuiriam anualmente os proprietários das freguesias marginais do rio Lis e dos seus afluentes, que possuíssem prédios rústicos ou urbanos, e para quem pudessem advir vantagens ou benefícios de cultura ou salubridade, na proporção do valor das suas propriedades e benefícios a auferir. Nesse sentido, a Junta estava mandatada a constituir um cadastro de todas as propriedades rústicas e urbanas. A Junta viria a ser extinta a 24 de Fevereiro de 1911 e em

164

sua substituição foi criada a Junta do Rio Lis, que viria igualmente a ser extinta pelo Decreto- lei n.º 25.283, de 23 de Abril de 1935 (Pacheco, 1959: 65-75).

Durante as primeiras décadas do séc. XX a secção do leito era incapaz de comportar as cheias normais de inverno, pelo que facilmente transbordava e levava consigo areia, invadindo os campos e inutilizando-os para a agricultura (MOP, 1949, 4; Henriques, 1952: 1). A intensa e permanente derivação de águas para o vale dificultava as condições de enxugo dos campos, e as cheias transformavam todo o vale num extenso lago cujas águas baixavam lentamente. O aproveitamento agrícola confinava-se a áreas reduzidas junto à encosta ou próximas do leito. Grande parte do vale estava transformado em paul, com mais de 500 ha de terrenos permanentemente inundados e mais de 100 ha só no Verão conseguiam enxugar. A linha de caminho-de-ferro do Oeste e a estrada Leiria-Figueira da Foz eram frequentemente interrompidas pelas cheias (Henriques, 1952: 1; Pacheco, 1959: 102).

Em 1941, na tentativa de resolver o problema foi apresentado o plano geral dos trabalhos a realizar no vale do Lis, integrados no Plano Geral de Regularização do Rio Lis e Afluentes, cujo projecto ficou concluído no ano seguinte, elaborado na Secção de Estudos de Hidráulica Fluvial da Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos, chefiada pelo Eng. Alberto Abecassis Manzanares (MOP, 1949: 2; Henriques, 1952: 2). À semelhança do projecto de Oudinot, as obras tinham como objectivo a: “1- Defesa dos campos marginais contra as cheias do rio que provocavam inundações e a consequente invasão da areia. 2- Drenagem dos campos baixos que constituíam pauis permanentes ou que tinham deficientes condições de enxugo. 3- Rega do vale do Lis em toda a área abrangida pelas obras. 4- Fixação e melhoramento do estuário do rio de modo a permitir o rápido escoamento das cheias e a evitar as inundações provocadas pela completa obstrução da foz muitas vezes verificada” (MOP, 1949: 3). O plano previa, nomeadamente, a construção de canais de drenagem de águas altas, de redes de drenagem de águas baixas e canais de rega, associados à construção de pontes e diques; e construção de diques e molhes na foz do Lis (MOP, 1949: 4; Henriques, 1952: 3-7).

A obra de regularização fluvial consistia “essencialmente no aprofundamento, alargamento e ligeira rectificação do leito do rio, numa extensão de cerca de 30 quilómetros, desde a cidade de Leiria até à foz, permitindo o escoamento da máxima cheia prevista, o que passava pela construção de diques marginais suficientemente elevados, de forma a ficarem com o seu coroamento acima do nível de águas altas extraordinárias” (MOP, 1949: 4; Henriques, 1952: 3). Abrangia “2.535 hectares, dos quais, deduzindo as áreas ocupadas pelo futuro leito do Lis,

165

linhas de água afluentes e valas principais, no total de 150 hectares”, se obtinham 2.385 hectares (MOPC, 1945: 58). Por sua vez, a desobstrução da foz era justificada dada a impossibilidade em assegurar um regular funcionamento da obra fluvial sem que se conseguissem boas condições de escoamento das águas das cheias, que chegava a fechar completamente e a abrir nova saída para o mar (Henriques, 1952: 5). Com esse objectivo foram construídos, logo em 1943, dois esporões de grandes dimensões e dois diques, um deles sobre o antigo dique Oudinot, prosseguindo depois os trabalhos (Pacheco, 1959: 129).

O enxugo derivava do facto de existirem terrenos baixos, que impediam a drenagem eficaz de todas as águas por escoamento directo em caso de cheias, daí que a maior parte dos campos ficasse submerso durante praticamente o ano inteiro (Pacheco, 1959: 102; Alves, 1963: 104). De modo a dar solução a esse problema foi necessário prever a elevação mecânica da água dos campos quando se verificassem águas altas no Rio Lis, sendo projectada a construção de canais de drenagem e melhoramento das confluências dos afluentes, assim como a correcção torrencial dos cursos de água que transportavam maiores quantidades de areais; e, principalmente, a regularização do troço terminal dos principais ribeiros afluentes, o que obrigava a que tivessem cota de fundo superior em geral à do rio. Praticamente todos os terrenos abrangidos pelas obras seriam beneficiados com rega, nesse sentido foram avaliados os quantitativos de água necessários para a rega de 2.145 ha úteis, quer através dos cursos de água, quer pela obtenção de água com origem em fontes freáticas ou artesianas, ou pelo armazenamento em albufeiras. O projecto previa ainda a construção de vários açudes, várias estações de bombagem (através de bombas eléctricas) e uma rede de canais de rega, constituída por canais de terra e canais revestidos a betão, totalizando os canais revestidos cerca de 41km (Henriques, 1952: 3-9).

O custo da obra ascendia a 39 957 contos - 25 250 para regularização, enxugo e rega; 14 707 para regularização da foz do Lis (Pacheco, 1959: 137). As despesas financiadas pelo Estado seriam “reembolsadas em 50 anos mediante uma taxa a pagar pelos beneficiários das obras” (Henriques, 1952: 10; MOP, 1949). Os custos sofreram um agravamento considerável, atingindo 97 797 contos: 79 406 na regularização do rio, enxugo e rega; 18 391 na regularização da Foz do Lis. Um agravamento que, segundo Aragão Pacheco, se justifica, principalmente, pelo facto do projecto ter sido elaborado nos dois primeiros anos da guerra, com base nos preços então correntes, os quais sofreram aumentos consideráveis até à conclusão dos trabalhos (Pacheco, 1959: 138/142). A partir de 1942, com a aprovação do

166

Plano Geral das Obras, tiveram início obras de ensaio. Mas foi a partir de 1946, com a publicação do Decreto-lei n.º35.559, de 28 de Março, que começaram efectivamente (Henriques, 1952: 10; MOPC, 1945: 3). Uma vez que os Serviços Hidráulicos passaram a dispor do necessário equipamento mecânico, no final desse ano estavam abertos 15 quilómetros de canais de drenagem de águas altas e 8 quilómetros de rede baixa, e foram definidos os novos leitos do rio de Monte Real à foz, numa extensão de 12 quilómetros (MOP, 1949: 9). Onze anos depois, a 26 de Maio de 1957 foram inauguradas pelo Chefe de Estado, general Craveiro Lopes, as obras de defesa, enxugo e rega dos Campos do Lis, pondo “termo a uma luta que, durante séculos, os agricultores dos chamados campos de Leiria vinham travando com as forças da natureza” (Alves, 1963: 102), segundo afirmou o representante dos proprietários na cerimónia de inauguração.

As obras permitiriam o cultivo de arroz, aveia, cevada, milho, trevo, feijão, tremoço, batata, fava, grão-de-bico e produtos hortícolas. Quanto à pecuária já se praticava, mas uma vez eliminados os responsáveis por diversas doenças, a criação de gado tinha um enorme potencial de progressão, sobretudo a criação de suínos, aproveitando os produtos agrícolas que não podiam ser utilizados na alimentação. Pelo contrário, o facto de não existirem terrenos baldios ou incultos limitava a capacidade de criação de gado ovino e caprino. Na área abrangida pelas obras haveria na altura cerca de 7 000 suínos, 4 800 dos quais fêmeas, um sintoma da aposta na criação de leitões na região (Lourenço, 1993: 38; (Pacheco, 1919: 117- 118).

Documentos relacionados