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Literalidades O respeito pela letra do texto de partida

4. Capítulo III: Análise comparativa da tradução

4.4. Literalidades O respeito pela letra do texto de partida

4.4.4.4.

4.4.

Literalidades. O respeito pela letra do texto de partida

4.4.1.

A tradução directa

Verifica-se, na tradução, inúmeros casos em que o tradutor poderia ter recorrido aos processos de ortonímia e de ortosintaxe em vista de uma melhor compreensão por parte do leitor, mas não o fez. Pelo contrário, o tradutor deforma a língua de chegada, procurando respeitar o génio da língua original.

Essa atitude de respeito para com o texto de partida verifica-se, tanto a nível das estruturas frásicas, como a nível lexical. Vejamos como Michel Laban transfere para o texto de chegada a sintaxe do falar do musseque:

Texto em língua de partida Texto em língua de chegada

24. “Ele ficará, ficou, fica nos capins soterrados do Makulusu” (p. 27)

25. “ele me respondeu que não sei, meu alferes, o meu alferes é que sabe” (p. 125)

26. “dar café” (p. 22)

“Lui, restera, il est resté, il reste dans les herbes enterrées de Makulusu” (p. 26) “il m’a répondu je ne sais pas, mon lieutenant, c’est vous qui le savez” (p. 117)

“donner du café” (p. 21)

No exemplo 24, vê-se claramente que a boa lógica da sintaxe francesa exigiria uma sequência diferente na ordem dos verbos: “Lui, il est resté, il reste, il restera (…)”.

Trata-se, no entanto, de um problema de organização das ideias e esse problema não diz respeito apenas ao falante dos musseques de Luanda; acontece o mesmo em França como em qualquer outro país da Europa e do mundo, especialmente nas camadas populacionais menos instruídas. Não sendo um problema que prejudique a compreensão do enunciado e visto fornecer ao leitor uma informação importante sobre o estatuto social da personagem em questão na diegese, o tradutor manteve a ordem da frase original.

No exemplo 25, estamos diante do discurso indirecto do português dos musseques que difere do das línguas cultivadas por não se operarem nele as transformações gramaticais que tais línguas impõem aos seus falantes. Nessa frase, o falante faz depender de um verbo declarativo, neste caso do verbo responder, as palavras proferidas por outrem, o que é uma particularidade do discurso indirecto, mas, transcreve textualmente essas palavras. Há aqui como que uma mescla de discursos. A opção de Michel Laban por uma tradução literal permite manter a originalidade do texto sem comprometer a sua compreensão, pois que, semelhante construção se pode encontrar facilmente entre os franceses iletrados. Assim, o leitor de chegada pode ter uma percepção da posição sociocultural das personagens do texto.

O exemplo 26 ilustra melhor do que qualquer outro exemplo a vontade expressa pelo tradutor de respeito pelo texto de partida. Na verdade, Michel Laban opta aí pela tradução directa, não porque a língua francesa careça de palavras para expressar a referida atitude111. O francês dispõe de expressões como “jeter le gant”, “relever le gant”, que significam desafiar alguém ou aceitar um desafio112. A diferença entre as duas expressões e que julgamos ser a razão pela qual o tradutor optou pela forma original é que “jeter le gant” é um gesto de adultos franceses e “bater café” é um gesto de crianças angolanas. O primeiro consiste em jogar uma luva sobre a mesa e o segundo consiste em bater na mão de uma terceira pessoa – moderadora ou agitadora, ou em dois montinhos de areia. O tradutor procura ser autêntico ao tentar reproduzir a realidade infantil angolana. O leitor de chegada não encontra grandes dificuldades em

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O café é um ritual da luta corpo-a-corpo. Nas comunidades angolanas a violência (sobretudo infantil) é gerida dentro de um quadro ritual imutável e rigorosamente determinado. Quando dois indivíduos entram em desavenças, antes de a situação se tornar verdadeira agressividade, transfere-se o móbil da confusão para um terceiro elemento – o café – que não é mais do que dois pequenos amontoados de areia que representam os seios das mães desses beligerantes. O café é o elemento desencadeador da luta, mas também pode ser o elemento apaziguador, pois que, se um dos envolvidos se recusar em “batê-lo”, a luta não acontece, já que a violência passa a uma outra dimensão: a dimensão da dignidade, do prestígio social que ficam, nesse caso, abalados.

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compreender o significado dessa expressão, pois, a compreensão desse aspecto cultural é favorecida pelo contexto113. Porém, o contexto não nos dá a imagem completa do fenómeno. O leitor francês apenas pode saber tratar-se de um desafio de luta corpo a corpo no ambiente infantil. O gesto real só um leitor familiarizado com a realidade em questão pode visualizar.

4.4.2.

Os estrangeirismos

Texto em língua de partida Texto em língua de chegada

27. “velho sècúlo” (p. 156)

28. “Aiuê quente prazer de infância (…)” (p. 45)

“vieux sèculo” (p. 144)

“Aiuê, chaud plaisir d’enfance (…)” (p. 42)

As palavras vernáculas são, em grande parte, transpostas sem alteração para o texto de chegada. Essa atitude parece explicar-se por duas razões essenciais: por um lado, o tradutor tem perfeita consciência do valor que tomam certas palavras nas sociedades africanas e das perdas que implicaria qualquer tentativa de tradução; por outro, parece ser sua intenção africanizar o texto de chegada mostrando ao leitor uma realidade inteiramente nova para ele114.

Note-se que existem, em Nós, os do Makulusu, palavras que integram uma escala de valores que não encontra contrapartida semelhante em francês e explicitá-las seria

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De facto, o romance Nós, os do Makulusu está construído de uma maneira extraordinariamente pedagógica, que permite ao leitor, mesmo àquele que desconhece a língua dos musseques, encontrar no texto o significado de certas palavras ou expressões. Essa particularidade do romance de Luandino Vieira verifica-se também na tradução. Vejamos como o leitor de chegada tem acesso ao significado da expressão “donner du café”: “(…) ce n’est que plus tard que j’ai su ce que c’était que “donner du café”, c’est une façon de voir tout de suite ceux qui les ont en place (…)” (N.a.M. p. 21). A expressão “avoir en place” é perfeitamente compreensível para o leitor de chegada que a associa facilmente à ideia da virilidade. Essa informação, embora dê ao leitor de chegada uma representação da realidade que se pretende ilustrar, não lhe permite visualizar o fenómeno na sua totalidade.

114 “El traductor que recurre al extranjerismo enfrenta directamente a sus lectores con una palabra de la LO y, a lo sumo, les facilita su aprendizaje y el descubrimiento de su significado por el contexto. (Yebra,

op. cit.: 341). El traductor obra entonces lo mismo que los escritores originales de su misma lengua que

recurren a extranjerismos o por necesidad o por razones estilísticas” (Idem: 341-342). A preocupação do tradutor em manter o colorido africano do texto é de tal forma acentuada que ele procura mesmo criar mecanismos de compensação nos casos em que a língua de chegada não lhe permite reproduzir a forma de expressão original. Um exemplo muito elucidativo dessa intenção é a forma como é transposto para o texto de chegada o intonema característico do falar africano nos nomes “Mais-Velho-é! Maninho-é!” (N.M. p. 102). O tradutor recria na sua própria língua aquilo que o autor fez no original, mantendo, de certa forma, o ar africano da expressão e, sobretudo, a intenção do autor: “Eh l’Aîné! Eh Frérot!” (N.a.M. p. 96).

quebrar o ritmo do texto. Por exemplo, a palavra sècúlo115 traduzir-se-ia por “vieillard” em francês. No entanto, mais do que a idade, essa palavra, como vimos atrás, evoca a sabedoria e a experiência dos homens de idade o que não acontece com a palavra francesa.

O tradutor parece não ter, para esse caso, encontrado uma solução mais adequada de transmitir a mesma ideia ao leitor francês senão mantendo-a no texto de chegada e explicando-a no glossário.

Assim, o leitor de chegada pode fazer da referida palavra a mesma leitura que o leitor de partida, lendo a palavra sécùlo não apenas no sentido da idade, mas também do estatuto social que a idade confere às pessoas nas sociedades africanas.

Porém, em muitos casos, a manutenção, no texto traduzido, de palavras do texto de partida parece-nos explicar-se pela vontade de africanizar o texto de chegada. É o que se pode deduzir quando se vê no texto de chegada a interjeição “Aiuê”116 quando existe vocábulo correspondente em francês. Essa hipótese é, aliás, confirmada quando vemos que, em relação aos termos populares portugueses, o tradutor não tem a mesma preocupação em manter a forma. Vejamos um exemplo: “Ah, não pá! Galinha não (…) tá bem ajindungado e tudo, mas não, pá!” (N.M. p.15). Eis a tradução: “Ah, non, mon vieux! (...)” (N.a.M. p.14).

Em suma, a manutenção, na tradução, de palavras de origem kimbundu confere àquele texto um ar africano, além de dar a ler aos leitores de chegada o que realmente é expresso no texto original sem perdas de quaisquer espécie.

115

Como já dissemos anteriormente, a palavra “sècúlo” tem mais a ver com a ideia de hierarquia do que de longividade. Interessa acrescentar que, na sua acepção primeira, e, como nos diz o Dicionário

Complementar Português-Kimbundu-Kikongo do Padre António da Silva Maia (1994:610), “sekulu”

significa “tio”, que é, como nos indica a expressão sinónima “tata-ndenge”, o irmão da mãe, uma autoridade familiar importante na cultura angolana e africana em geral. Aliás, Luandino Vieira dá-nos semelhante informação no glossário de sua obra intitulada João Vêncio: os seus amores: “tio; homem idoso e de respeito” (J. V. S. A, p. 95).

116 “Aiué ou Aiuê, interj. (designativa de dor ou embevecimento). Ai! Ui! T. quimb. V. der.: kuiuia (arder). Alusão à intensidade do sentir” (Ribas, op. cit.: 343).