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LITERATURA INFANTIL NA ATUALIDADE

3.2 Literatura e imaginário: representações sociais sobre a estética e a cultura negra

A elaboração teórica de Moscovici (2009) sobre as representações sociais é importante porque contribui para compreensão das interações sociais entre as populações negra e branca, os processos simbólicos e as possibilidades de reconstrução de representações positivas contidas na literatura infantil de temática afro-brasileira sobre a população negra, fazendo uso da sua interdisciplinaridade, complexidade e transversalidade para analisar a valorização das crianças mediante as significações construídas com base em imagens e elementos da cultura africana apresentados nas obras. Guaresh (2011) discorre sobre ideologia que aqui se conecta com as representações sociais dentro da perspectiva da identidade negra evidenciada na literatura infantojuvenil:

São diversos os elementos que costumam estar ligados ao conceito de RS: ele é um conceito dinâmico e explicativo, tanto da realidade social, como física e cultural. Possui uma dimensão histórica e transformadora. Junta aspectos culturais, cognitivos e valorativos, isto é, ideológicos.

Está presente nos meios e nas mentes, isto é, ele se constitui numa realidade presente nos objetos e nos sujeitos. É um conceito sempre relacional e por isso mesmo social (GUARESHI, 2011, p. 162).

Busca-se nessa abordagem das representações a ligação possível entre os estudos culturais, a representação, a identidade e a diferença. Ademais, analisa-se a possibilidade de construção identitária de crianças negras mediante as representações em uma literatura infantil que traz em si traços de uma cultura negada, que pode funcionar como símbolos que se revestirão em significados possíveis para uma identificação. As representações sociais sobre a população negra são percebidas sob diferentes aspectos no que diz respeito à cultura de modo geral – é sempre desvalorizada em relação ao modelo de música, poesia, filosofia, produção literária, entre outras manifestações culturais difundidas pelos currículos escolares.

Em meio às relações sociais no espaço escolar, quando analisados de forma crítica, empreendendo importância aos significados e signos presentes, é possível estabelecer nexos entre os apelidos e as representações sociais sobre a população negra, e, se adentrarmos à história, é possível interligá-los, sobretudo, com período em que o processo de construção da identidade nacional imputou vários estereótipos sobre a negra e o negro a fim de negar e justificar as sua exclusões da identidade que vinha sendo imaginada e planejada para o Brasil. Neste sentido as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e africana propõem:

[...] a valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, sua cultura e história. Significa buscar compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura dos seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em virtude de seus antepassados terem sido explorados como escravos, não sejam desencorajados de prosseguir seus estudos, de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra (BRASIL, 2004, p. 12).

Abramovay, Cunha e Calaf (2009), em sua pesquisa, apresenta um quadro de apelidos sobre a população negra, no qual afirma que alguns deles, recolhidos em outras pesquisas permanecem em uso ou mesmo são ampliados (ABRAMOVAY & RUA, 2002; ABRAMOVAY et al., 2006; CASTRO; ABRAMOVAY, 2006) “não apenas se repetem, mas

também se diversificam e multiplicam ao longo do tempo”, como aponta o quadro. (ABRAMOVAY, 2009, p. 214).

Quadro 1 – Apelidos usados em insultos contra as pessoas negras Assolan

Africano Beiçuda

Bois do cabelo enrolado

Cabelo de bombril/cabelo ruim/cabelo à prova d‟água

Café/café com leite Carvão Chica da Silva Chiclete de mecânico Chocolate podre Churrasquinho Cola de asfalto Endiabrado Escravo Feijoada/feijão preto Fumaça

Galinha preta de macumba Gorila

Macaco

Macaco da bunda vermelha

Maconheiro Mussum Lacraia Neguinho da favela Negro safado Nega do fubá Palito de fósforo Petróleo Picolé de asfalto Pneu/suco de pneu Pré-histórica Preto Preta fedida Preto de macumba Roda Saci-pererê Toalha de mecânico Toddy Torrada queimada Tição Tiziu Zé pequeno

Fonte: Abramovay; Rua (2002); Abramovay et al. (2006); Abramovay; Castro (2006); Abramovay, Cunha e Calaf (2009).

Alguns desses apelidos, muito atuais, relacionados a personagens de lendas, de filmes da atualidade, programas de humor, animais, alimentos, objetos e localização geográfica, possuem uma correlação com adjetivos elaborados para o corpo negro, que ultrapassaram o tempo histórico e ainda hoje constituem representações pensadas para as crianças e jovens negros no espaço escolar e divulgadas pela literatura, como apresentado decorrer da pesquisa.

As questões relacionadas à higiene do corpo negro também possuem representações sociais que atravessam a sociedade de maneira abrangente. As falas no cotidiano dão conta do pensamento de que o negro possui cheiro diferente dos outros seres humanos. Tais falas fazem parte das concepções pejorativas que retiram a condição humana comum a todos os seres humanos, com corpos que possuem órgãos com funcionamento idênticos. Essa intenção, que pode ser notadas na incidência de apelidos, tornam tensas as relações no espaço escolar.

A valorização da criança e do jovem, negra e negro, no espaço escolar é de fundamental importância para uma educação na qual se pretenda que seja humanizada, por meio do repúdio aos apelidos e ao tratamento diferenciado que o povo negro historicamente vivenciou no ambiente escolar e que, certamente, tem influência sobre a qualidade das aprendizagens e a permanência no processo da educação básica. Sobre a importância da política de valorização da população negra, as Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira (2004) traz importante direcionamento para a construção de identidades valorizadas a partir do espaço educacional das escolas públicas e particulares:

Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade imposta a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente (BRASIL, 2005a, p.14).

No ano de 2008, quando lecionei para crianças de 6 anos e desenvolvi um projeto voltado para a educação das relações étnico-raciais, pude ouvir de uma criança negra de cabelos lisos, filha de pai e mãe negros, a seguinte frase “cabelo de negro fede”. O racismo impregnado na frase da criança evidencia o quanto ainda estão vivos os estereótipos negativos sobre o corpo negro e como esses modos de conceber o outro interfere nas relações sociais, estabelecendo conflitos entre aqueles que têm suas identidades ligadas aos povos estigmatizados e facilitando a configuração das identidades do grupo cujas representações dos atributos são positivas.

Abramovay, Cunha e Calaf (2009) concluem em sua pesquisa sobre os insultos:

Nota-se que os insultos contra pessoas negras são cotidianos e têm como objetivo colocá-los no lugar social a que elas são relegadas: pobreza, a criminalidade, marginalização, a sujeira ou, o que é pior, retirá-las do mundo social remetendo-as para a esfera da animalidade (ABRAMOVAY, 2009, p. 218).

Quanto ao aspecto da moral e honestidade, há um imaginário facilmente identificável nas piadas que afirmam o negro como ladrão e pessoa de má índole. De uma forma muito presente nas conversas cotidianas, na mídia e, sobretudo, nas relações dentro da escola, esses estereótipos vão se tornando enraizados com mudanças muito lentas na forma de a sociedade brasileira conceber o povo negro, mudanças que são, quase sempre, impulsionadas nas lutas políticas por equidade de tratamento, entendidas

como tratamento diferenciado para se poder chegar à igualdade de condições de conquistas nas várias instâncias sociais.

Nesse ponto, as pesquisas já mencionadas anteriormente evidenciaram a população negra sob o olhar preconceituoso e racista no livro didático e na literatura tradicional para crianças e jovens. A perpetuação dessas formas determinantes de constituir o imaginário social sobre a negra e o negro é ponto central da nova literatura que surgiu como possibilidade de mudança, uma vez que a pesquisa publicada recentemente (ABRAMOVAY, CUNHA, CALAF, 2009) aponta para a necessidade de ações de combate ao racismo no ambiente escolar para o pleno sucesso das crianças como um todo e, em especial, das crianças negras por serem vítimas do imaginário racista que ainda persiste nas relações cotidianas no espaço da escola.

Os apelidos apresentados anteriormente são palavras carregadas de sentidos, amplamente divulgadas e constituídas no pensamento de senso comum. As pessoas sabem a quem se referem tais apelidos e a que grupo específico estão sendo dirigidos, pois são diferentes dos apelidos que podem ser usados para qualquer pessoa, homem ou mulher, criança ou adulto. Esses apelidos são como uma logomarca, têm uma representação direcionada diretamente à população negra, e como eles chegam aos dias de hoje, muitas vezes intactos ou ampliados de acordo com o momento histórico no qual o que há de negativo sendo veiculado pela mídia passa a constituir combustível para uma realimentação dos estigmas que vão compor a representação da população negra na sociedade.

Um apelido em si pode não carregar um construção social mais profunda a ponto de trazer ao pensamento um grupo de pessoas, mas se um conjunto de palavras solto de um contexto é capaz de localizar os seus destinatários, é porque no imaginário coletivo tais grupos já ocupam um lugar social, bastando, assim, uma palavra para que se saiba a quem é dirigido o enunciado.

Quando uma criança negra é apelidada e o apelido se refere às suas características físicas, todas as outras crianças negras sentem-se atingidas, sabem que o apelido é para um conjunto, ninguém escapa à classificação explicitada pelo apelido, e da mesma forma ocorre com as piadas racistas. Elas estão no presente, mas as raízes do sentido que permeia o apelido e a piada são profundos em termos de constituição de um pensamento coletivo, já discutido e elaborado sobre a população negra. O desafio é pensar os motivos pelos quais tais apelidos fazem parte de outras representações já pesquisadas, sobretudo na literatura, e como esta se tornou veículo de manutenção de

tais representações, influenciando nas construções identitárias de crianças negras e brancas.

Nesse sentido, a construção social sobre o que é ser negra e negro foi elaborada, sobretudo, quando a elite intelectual e científica viabilizou o projeto eugenista brasileiro, evidenciado no capítulo anterior. Tal construção possui nexo com a teoria das representações sociais na abordagem de Moscovici (2009), ao apontar o quanto determinadas representações são frutos de uma realimentação constante, a ponto de fazer parte de um pensamento social, sem que essa mesma sociedade se dê conta da imposição que determina certos pensamentos sobre os diversos grupos e a dinâmica gerada pelas representações mantidas ou criadas, mas sempre ligada:

É, pois, fácil ver por que a representação que temos de algo não está diretamente relacionada à nossa maneira de pensar e, contrariamente, por que nossa maneira de pensar e o que pensamos depende de tais representações, isto é, no fato de que nós temos ou não temos dada representação. Eu quero dizer que elas são impostas sobre nós, transmitidas e são produto de uma sequência completa de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo e são resultado de sucessivas gerações [...] Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas as descrições que circulam dentro de uma sociedade, mesmo as descrições científicas, implicam elos de prévios sistemas e imagens, uma estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem [...] (MOSCOVICI, 2009, p. 37).

Na atualidade os estudos pós-coloniais têm tratado das identidades surgidas a partir das interações entre as diferentes culturas. A questão do poder e da legitimação de determinadas identidades, neste trabalho, está sendo analisada do ponto de vista da teoria das representações sociais por buscar elucidar as ligações simbólicas que estabelecem sentidos no imaginário e propiciam a emergência e arquivamento de campos conceituais a respeito de pessoas e culturas. Esse pensar sobre a sociedade remete o sujeito a refletir sobre si mesmo e atribuir identidades, reconhecer as diferenças e fortalecer a própria identidade. Jodelet (2009) contribui ao abordar a intervenção dos movimentos sociais como importante possibilidade de mudança e de enfrentamento por meio de novas representações que nascem com o viés político de modificar a realidade oferecendo outras formas de concepção dos grupos estigmatizados por meio das representações construídas por grupos que buscam a hegemonia:

Estas representações são concebidas como “enunciados performáticos” cuja “objetivação no discurso” tem o poder de revelar, construir e instituir uma realidade. É assim que uma representação produzida por um grupo heterodoxo, colocando em questão uma ideologia dominante, oferece

uma alternativa de interpretação da realidade social e se torna uma força de combate e de mudança [...] (JODELET, 2009, p. 108).

Essa dinâmica da imaginação está presente em todas as sociedades. É por meio do imaginário que podemos conhecer o outro, seus símbolos, seus modos de agir e ser, suas crenças, sua identidade de grupo e a sua continuidade pela preservação do imaginário mediante as tradições de um povo.

A questão política da manutenção do imaginário sobre determinados povos está intimamente ligada à questão do poder, à necessidade de manter a hegemonia e, muitas vezes, de desqualificar a existência de outros grupos.

O poder estabelecido exerce influência na constituição do imaginário social e das representações construídas com base em símbolos amplamente reconhecidos e aceitos pela imposição secular do poder por meio de vários recursos, entre eles o discurso. Sobre essa imposição, Baczco (1985) contribui:

A influência do imaginário social sobre as mentalidades depende em larga medida da difusão deste e, por conseguinte, dos meios que asseguram tal difusão. Para garantir a dominação simbólica, é de importância capital o controle destes meios que correspondem a outros tantos instrumentos de persuasão, pressão e inculcação de valores e crenças. É assim que qualquer poder procura desempenhar um papel privilegiado na emissão dos discursos que veiculam os imaginários sociais, do mesmo modo tenta conservar um certo controle sobre seus circuitos de difusão (BACZCO, 1985, p. 313).

A elaboração das identidades não é algo nato nos sujeitos, tampouco fixo. O conjunto de símbolos contidos nas experiências da vida social produz um conjunto de significações capazes de remeter os sujeitos a determinados grupos e espaços. Ao apreender o simbólico das instituições sociais, o imaginário estabelece conexão com o real pela representação que o sentido cria e o que pertence a um grupo ou a outro.

Nesse sentido, o entendimento da diferença para que se compreenda como se constrói o processo de pertencimento identitário e a função do simbólico nessa construção é fundamental. Segundo Silva (2008a): “A identidade e a diferença não podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido. Não são seres da natureza, mas da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem” (p. 78).

A formação dos sistemas de referência, os quais são acessados para classificar, distinguir, incluir ou excluir, está ligada às representações sociais construídas e que

propiciam a interpretação do mundo. Moscovici (2009) aborda a visão que tem sobre as representações sociais:

As representações sociais devem ser vistas como uma maneira específica de compreender e comunicar o que nós já sabemos. Elas ocupam, com efeito, uma posição curiosa, em algum ponto entre conceitos, que têm como seu objetivo abstrair sentido do mundo e introduzir nele ordem e percepções que reproduzam o mundo de uma forma significativa [...]. Nós sabemos que representação = imagem/significação; em outras palavras a representação iguala toda imagem a uma ideia e toda ideia a uma imagem (MOSCOVICI, 2009, p. 46).

Segundo Alves-Mazzotti (2008), que se pauta nas representações de Moscovici, a atividade representativa constitui um processo psíquico em que o objeto é transformado de acordo com as experiências e valores do sujeito e influenciado pela sua natureza social de classe, cultura e grupos. Em outro ponto, a autora aborda a identificação dos grupos devido a representações compartilhadas por eles.

Santos (2010), ao abordar a questão dos estudos pós-coloniais, evidencia que estes estão revestidos de uma proposta que reivindica o reconhecimento das culturas marginalizadas e, consequentemente, das identidades negadas na dinâmica social geradora de representações que excluem até os dias de hoje os povos colonizados e os colocam em posição de subalternidade frente aos colonizadores, enfraquecendo de maneira compulsória as identidades que possuam diferenças culturais do colonizador.

[...] o pós-colonialismo tem um recorte culturalista, insere-se nos estudos culturais, linguísticos e literários e usa privilegiadamente a exegese textual e as práticas performativas para analisar os sistemas de representação e os processos identitários [...] (SANTOS, 2010, p. 234). Nessa mesma linha de pensamento, Silva (2009) faz referência à representação como sendo: “um sistema de significação, uma forma de atribuição de sentido. Como tal, a representação é um sistema linguístico e cultural arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado à relação de poder” (SILVA, 2009, p. 91).

O autor traz o conceito de performatividade para mostrar que as representações têm na linguagem uma possibilidade de produzir o fato pela repetida enunciação, ou seja, aquilo que comunicamos já está construído em nós e permeia a sociedade como um todo, servindo para reforçar ou definir as identidades.

Essa dinâmica social, em que crenças, opiniões e declarações são compartilhadas têm a função de criar as representações, perpetuá-las ou mesmo difundi-

las por meio de veículos de informação, é eficaz e bastante utilizada. Foi o caso da literatura infantil de décadas passadas, as quais, demonstraram todo um conjunto de representações sociais sobre as crianças negras brasileiras, apresentando enredos, situações e ilustrações completamente interligadas às representações negativas sobre a população negra como um todo.

3.3 Monteiro Lobato e o pensamento eugenista expresso na literatura para