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Capítulo 3. As memórias da repressão florianista em Coelho Netto e Lima Barreto

3.2. Lima Barreto e a repressão florianista

3.2.1. Policarpo Quaresma e seus antecessores: ficção e verossimilhança nas memórias do

3.2.1.1. Literatura e memórias acerca da repressão política durante a Revolta da Armada

Este subitem tem o objetivo de propor, a partir das relações pessoais e profissionais de Lima Barreto e das memórias de determinados ex-presos políticos do regime florianista, uma interpretação acerca das condições de surgimento de Policarpo Quaresma e de como o romance de Lima Barreto dialoga com narrativas memorialísticas que o antecedem.

A análise se concentra principalmente na literatura sobre a Revolta da Armada que circulou durante a juventude de Lima Barreto. Partimos da hipótese de que essa literatura pode ter fornecido subsídios para que o escritor construísse alguns aspectos do enredo de seu romance.

Tentaremos também, a partir da correspondência de Lima Barreto depositada na Biblioteca Nacional, estabelecer em que medida o círculo íntimo de relações do escritor bem como seus interesses profissionais podem ter influenciado a criação de Triste Fim de Policarpo Quaresma.

3.2.1.1. Literatura e memórias acerca da repressão política durante a Revolta da Armada

Uma das primeiras memórias sobre a repressão empreendida pelo governo Floriano Peixoto durante a Revolta da Armada foi composta pelos presos políticos da Casa de Correção. Como vimos no capítulo 1, redigido em 1894, o jornal manuscrito A Justiça 96 fazia denúncias sobre o tratamento dispensado aos prisioneiros políticos do regime florianista e relatos sobre o cotidiano dos presos na Casa de Correção.

Também vimos que um dos editores do periódico era o engenheiro Lício Clímaco Barbosa, funcionário público da companhia dos Telégrafos, sobrinho e afilhado de Rui

96

A Justiça: jornal dos presos políticos da Casa de Correção. Divisão de Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.

96 Barbosa.97 Seu pai, Clímaco Ananias Barbosa, estava a bordo do encouraçado Aquidabã durante a Revolta da Armada: em 10 de outubro de 1893, ele enviou uma carta a Rui Barbosa, seu irmão, alertando sobre um ataque dos navios da esquadra revoltosa e comentando sobre uma possível adesão do almirante Saldanha da Gama.98 Lício, por sua vez, foi preso durante a revolta por suspeita de cumplicidade em uma tentativa de sabotagem aos túneis da Estrada de Ferro Central do Brasil.99 Nos anos seguintes à Revolta da Armada, Lício Clímaco Barbosa dedicou-se ao jornalismo, trabalhando em O Paiz.

Com a saída de Floriano da presidência da República, surgem algumas obras que tratam da experiência da repressão política durante o governo Floriano Peixoto, as quais podem ser consideradas precursoras de Policarpo Quaresma: A deshonra da República: apreciações gerais sobre a revolta da marinha de guerra nacional e o governo do vice- presidente marechal Floriano Peixoto, de Honorato Caldas; Notas e apontamentos sobre minha prisão na Fortaleza da Conceição, na Casa de Correcção e na minha residência, de Alfredo de Barros; Sonho no Cárcere: dramas da revolução de 1893 no Brasil, de Atanagildo Barata Ribeiro; Os mysterios da Correcção durante a revolta de 6 de setembro de 1893 publicados pelo Commercio de São Paulo; Fuzilados em Sepetiba, publicado pelo Jornal do Brasil entre o fim de 1894 e início de 1895; e O morto (memórias de um fuzilado), de Coelho Netto, publicado em capítulos no jornal Gazeta de Notícias em 1895.

As obras acima tratam da arbitrariedade do governo Floriano Peixoto, bem como da pena de prisão a que foram submetidos alguns de seus autores. Ao fazer a propaganda de alguns dos livros, o Jornal do Brasil, em 1895,100 referiu-se a eles como Literatura de revanche, provavelmente fazendo referência ao fato de que a censura a opiniões, frequente durante o governo Floriano, já não mais vigorava e que, naquele momento, os ex-presos políticos poderiam expressar suas críticas ao antigo governante e narrar as violações de que foram vítimas (Floriano deixara de ser presidente em novembro de 1894).

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Carta de Clímaco Ananias Barbosa a Rui Barbosa. São Paulo, 16 de novembro de 1884, Fundação Casa de Rui Barbosa. Sobre as relações de parentesco entre Rui Barbosa, Clímaco Ananias Barbosa e Lício Clímaco Barbosa ver: MAGALHÃES, Rejane Mendes Moreira de Almeida. Rui Barbosa na Vila Maria Augusta. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2013.

98

Carta de Clímaco Ananias Barbosa a Rui Barbosa. Bordo do Aquidabã, 10 de outubro de 1893, Fundação

Casa de Rui Barbosa.

99

Revolta: informações e pormenores. O Paiz, 13 de outubro de 1893. A matéria afirma – baseando-se em relatório do delegado Cesário de Mello – que Lício Clímaco era filho de “Telêmaco Barbosa”, informação que não está em conformidade com as fontes disponíveis na Fundação Casa de Rui Barbosa.

100

97 Lício Barbosa, Honorato Caldas, Alfredo de Barros, Atanagildo Barata Ribeiro e Inocêncio Serzedello Corrêa foram companheiros de cárcere na Casa de Correção e há indícios de que mantiveram relações sociais no período pós-cárcere. Lício Barbosa e Serzedello Corrêa frequentaram os mesmos eventos em algumas ocasiões como, por exemplo, o jantar oferecido ao aviador Santos Dumont em 1901. No baquete estavam presentes mais dois perseguidos políticos do governo Floriano Peixoto – José do Patrocínio e Luiz Bartolomeu –, acompanhados por Alcindo Guanabara, Arthur Guaraná, Jovino Ayres, Henrique Chaves, Henrique Cancio, Leopoldo de Freitas, Salvador Santos, J. Barreto, Álvaro Paes, Nilo Peçanha e Ernesto Senna, importantes expoentes da imprensa e da política brasileira no início do século XX. 101 Lício Clímaco Barbosa foi, ainda, testemunha de Honorato Caldas na queixa que este impetrou contra Aureliano Pedro de Farias, diretor da Casa de Correção no período em que estiveram detidos.102 Athanagildo Barata Ribeiro e Inocêncio Serzedello Corrêa correspondiam-se, por meio da imprensa, com seus antigos companheiros de cárcere.103

As obras acima citadas não estão relacionadas no inventário da biblioteca de Lima Barreto,104 mas não podemos excluir a possibilidade de que o escritor tenha tomado conhecimento delas, conforme tentaremos mostrar mais adiante. Por outro lado, em uma das pastas de recortes de jornais que Lima Barreto colecionava, sob guarda da Fundação Biblioteca Nacional, existe a primeira parte do relato de Hilário de Gouveia sobre sua detenção durante o regime Floriano Peixoto, o que mostra que narrativas memorialísticas de ex-presos políticos da Revolta da Armada não eram inteiramente desconhecidas de Lima Barreto.105

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