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Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Apesar de as Diretrizes e a Base Nacional relacionarem a aprendizagem primordialmente à alfabetização, entendemos que o que se produz no chão das EMEIEFs é um currículo que se amplia em multiplicidades infinitas e não é apenas recognição. As crianças com suas professoras cindem as bases duras e fogem

segundo outros traços, fazendo “Um trabalho de ruptura, tão contínuo quanto a vida” (CORRÊA, 2009, p. 32).

O fragmento abaixo nos mostra que o cotidiano escapa dos planejamentos previstos e do jogo da regulação, por isso é uma educação menor. Vemos que uma contação de histórias agencia os alunos na criação de novas experiências, sem mesmo saírem do lugar. Num esforço micropolítico de produção cotidiana, Walter, sem nunca ter ido a um cinema, imagina o que é estar lá e, agindo fora do padrão, quer fazer da sua sala de aula aquele lugar que ele deseja experienciar, já experienciando.

São essas fugas criativas e perigosas que potencializam esta pesquisa, que intensificam o sentir, forçando-nos a pensar diferente. Currículo constituído na imanência, na transversalidade, na infância, em qualquer lugar, em qualquer tempo,

Na turma do 1º ano C, a professora Sônia inicia a sua tarde com

uma contação de história. Ela se ajeita, faz propaganda do livro e

anuncia:

- A história de hoje é a da Pequena Sereia!

Walter solicita, antes da professora proferir qualquer outra palavra:

- Tia, apaga a luz para ficar mais maneiro igual cinema!

Imediatamente, o pedido é atendido.

Quando a história acaba, me aproximo de Walter e pergunto:

- Você gosta de ir cinema?

Sua resposta foi certeira:

- Gosto, mas nunca fui lá não.

cotidianamente. Aspiramos ver validados os conhecimentos que são tecidos em uma escala menor e que se propagam de forma assustadora, porque eles são simplesmente agenciamentos que não fixam lugares e que só podem ser apreciados no minúsculo. A despeito de uma BNCC que deseja equalizar o que não pode ser equalizado – como os currículos de comunidades tão diversas de norte a sul do país e a potência das redes de saberesfazeres –, valorizamos o potencial de resistência daqueles que criam linhas de fuga para escapar do jogo da maioridade.

Por falarmos de um “Pequeno Reino”, localizado em uma periferia, percebemos que, assim como Walter, muitos da sua escola nunca ou quase nunca tiveram a oportunidade do acesso a um cinema ou a outros espaços de lazer e cultura como teatro, museu, etc. Muitas vezes, quem possibilita esses tipos de eventos é a própria escola que promove atividades para esses fins, justamente pela falta de oportunidade dos alunos. Nos quadros a seguir, apresentamos dados26 divulgados a partir dos

questionários contextuais respondidos pelos alunos dos 5º anos dessa escola na Prova Brasil de 2015, no item que se refere ao lazer:

26Os dados utilizados sobre a Prova Brasil foram extraídos da Plataforma QEdu, podendo ser conferidos

em: <http://www.qedu.org.br/cidade/2687-guarapari/pessoas/aluno5ano>. O nosso acesso ocorreu em 01 maio de 2018.

Notamos, por meio de dados como estes, o quanto os currículos oficiais estão distantes das realidades cotidianas, não abarcando estas complexidades. O determinismo da BNCC, que desconsidera as tantas possibilidades dos currículos menores, nos remete às maneiras monolíticas de pensar as aprendizagens e a educação disseminadas pelos discursos hegemônicos modernos. Essa relação pode ser verificada nos tempos de aprendizagens trazidos pela BNCC (BRASIL, 2017, p. 58) em relação ao período exato para a alfabetização quando estabelece que:

Nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental, a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização, a fim de garantir amplas oportunidades para que os alunos se apropriem do sistema de escrita alfabética de modo articulado ao desenvolvimento de outras habilidades de leitura e de escrita e ao seu envolvimento em práticas diversificadas de letramentos.

São exemplos como esses que mostram os determinismos dentro dos sistemas educacionais advindos de legado da regulação ainda moderna. A BNCC fala em

garantir amplas oportunidades, mas, como conceder essa garantia sentenciando e

regulando o tempo para uma criança ler, escrever e aprender? E as singularidades? Onde fica o respeito ao tempo de cada aluno? E as crianças com necessidades educativas especiais? E os que aprendem a ler e a escrever ainda na educação infantil? E as culturas locais? E tudo mais?

Isso nos indica a fragilidade da BNCC que é reflexo da sequência de equívocos que vivenciamos na sua construção, sendo um deles o fato de estar tão distante dos

praticantes da educação, aqueles que estão na escola. Com suas pseudo-verdades, a Base afirma que “[...] foi preparada por especialistas de cada área do conhecimento, com a valiosa participação crítica e propositiva de profissionais de ensino e da sociedade civil” (BRASIL, 2017, p. 5). Sabemos que essa é uma falácia, pertencente ao mito de direito à participação e ao embuste de empoderamento do professor, visto que os efetivos colaboradores da BNCC não foram os docentes.

Nessa normatização-base, em que se privilegia os especialistas e subalterniza-se o diálogo com as comunidades, percebemos a transferência da responsabilidade do Estado para o professor, que se torna o responsável pelo fracasso dos alunos, comprovado pelas avaliações externas. Diante de tanta autoridade imposta, esta pesquisa deseja revelar as reduções advindas com a Base e pretende impedir que se diminua o entendimento dos conceitos “currículo” e “aprendizagem” ao que propõe a BNCC, no entrelugar pré-escola-anos iniciais.

Não tememos as imposições dos currículos oficiais, sabemos viver no meio disso, pois nunca escapamos completamente das regras. O que procuramos é desmistificar as verdades absolutas e dizer que, em meio à educação dogmática e sua obsessiva necessidade de estruturar, existem as aprendizagens cambiantes que fissuram uma programação autoritária na qual:

[...] o ensinar se restringe ao cumprimento de uma espécie de padrão normativo; nessa perspectiva, o ensino está ligado a uma conformidade em relação a um modelo e, consequentemente, a uma espécie de ideia prescritiva de ensinar. Essa maneira de ensinar, não apenas em ciências, representa o controle de uma máquina abstrata de segmentaridade que nos institui e nos forma por todos os lados e em todas as direções. Não queremos afirmar que isso não seja necessário em alguns momentos, mas que é preciso questionar o uso dessa prática o tempo todo (BRITO; RAMOS, 2014, p. 33).

Se estamos diante dos devires infantis, mesmo que as crianças estejam expostas a essa aprendizagem de caráter normativo, podemos ir além desse tipo de abordagem. Nos esforçamos para acompanhar os fluxos de uma aprendizagem que sai estritamente do campo do saber para compor um curso imprevisível, trazendo possibilidades do novo, a partir dos atos de criação e de formulação de problemas. Um dos nossos objetivos, portanto, é mostrar a aprendizagem como problematização

e não somente como defendido pelas ciências que descobrem verdades e despejam na educação. É o que aponta Kastrup (2001, p. 208), ao defender a aprendizagem inventiva e não esse “aprender” que tem sido tratado pela psicologia, por exemplo, com um enfoque predominantemente a partir dos moldes da ciência moderna:

A consequência disso é que a tônica tem recaído sobre a busca de leis da aprendizagem. Essa maneira de colocar o problema revela um caráter limitado desses estudos. Pois, se por um lado, a aprendizagem é reconhecida como um processo de transformação, seja do comportamento, seja da cognição, o que aponta para sua dimensão temporal, por outro, a empresa científica busca as leis e princípios invariantes que regulam esse processo de transformação temporal. Ora, se o processo de aprender encontra-se submetido a leis científicas, seus resultados são passíveis de previsão. [...] Neste campo, a aprendizagem encontra-se dissociada da invenção.

Trata-se de uma aprendizagem que não deseja verdades, mas propõe exercícios de pensamento. Aprendizagem que gosta de uma educação manifestada em um conjunto de acontecimentos e que, a todo momento, sacodem nossas velhas concepções, desterritorializam o que imaginávamos ser ideal e nos retorritorializam em um lugar inesperado.

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