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2.4 O superdimensionamento do consentimento

2.4.1 Livre

O consentimento livre é uma escolha real e significativa? A pessoa poderia consentir? A perspectiva de liberdade na sociedade de vigilância é propagada juntamente com a ideia de transparência e com ela se confunde. O ser humano é livre para viver em isolamento, mas, a partir do momento em que escolhe inserir-se no meio digital, inicia-se uma liberdade condicional. É livre, mas deve estar sempre comunicável por meio de aparelhos celulares. É livre, mas só pode submeter-se a certo serviço se aceitar os termos irretocáveis que ele carrega. A digitalização da vida é cada vez mais iminente, tanto que a Assembleia Geral das Nações Unidas já definiu a importância social da internet da seguinte forma:

De fato, a Internet se transformou em uma das principais formas por meio das quais os indivíduos podem exercitar seus direitos à liberdade de opinião e expressão, como garantido pelo artigo 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.170

A liberdade na rede mundial de computadores, contudo, fica restringida a partir do momento em que a principal forma de acesso a ela se dá por meio das detentoras dos reinados tecnológicos invisíveis. Ou seja, há o paradoxo da liberdade, até possuindo direito ao acesso à internet, mas este é invariavelmente interrompido por termos e políticas de privacidades dos principais provedores, navegadores e sites que os usuários médios utilizam. Este seria um paradoxo da liberdade.

Danilo Doneda aponta, ainda, o paradoxo da privacidade, em que aquele que consente apenas poderá obter alguma proteção após o consentimento ser realizado, implicando que primeiro a pessoa consente em dispor de seus dados para em seguida valer-se de tutela de proteção dos dados pessoais. Para o autor, portanto, o consentimento com tais características seria uma ficção. O consentimento não poderia ser utilizado para neutralizar a atuação dos 170 Tradução livre. “Indeed, the Internet has become a key means by which individuals can exercise their right to

freedom of opinion and expression, as guaranteed by article 19 of the Universal Declaration of Human Rights and the International Covenant on Civil and Political Rights”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of

opinion and expression. 2011. Disponível em:

<https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/17session/A.H RC.17.27_en.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2019.

direitos fundamentais, já que o perfil do consentimento na disciplina dos dados pessoais não se embasa na atuação da autonomia privada em mecanismos negociais tradicionais.

O aprofundamento da liberdade do homem na sociedade e os limites desta passa a questões filosóficas que transcendem os objetivos deste trabalho, mas desde já se ressalva que em relações que implicam em subordinação, como de trabalho ou consumeristas, o consentimento não seria verdadeiramente uma manifestação livre.171

No tocante à liberdade, a verificação desta é nebulosa quando se trata, ainda, dos hipervulneráveis. Entre estes se encontram os idosos e os absolutamente incapazes. Em verdade, qualquer questão de desenvolvimento neurológico incompleto ou defasado infere na liberdade da pessoa em proferir um consentimento.

A inserção de crianças e adolescentes no meio digital ocorre de forma cada vez mais precoce, não sendo incomum que bebês saibam utilizar uma touchscreen, ou que crianças de aproximadamente 5 anos já tenham seu próprio tablet com capinhas de borracha coloridas. Em verdade, os novos aparelhos são programados com uma interface tão intuitiva que facilita a manipulação em todas as idades. No entanto, é válida e necessária a ressalva de Pedro Hartung et al. em que: “[...] indivíduos de até 12 anos de idade incompletos e entre 12 e 18 anos de idade, respectivamente – foram reconhecidos como pessoas em um processo peculiar e inconcluso de desenvolvimento biológico, cognitivo e emocional [...]”.172

Para Laura Schertel, quanto aos hipervulneráveis, as normas aplicáveis aos negócios jurídicos para demonstração do consentimento podem ser aplicadas ao tratamento de dados pessoais com reserva. Para a autora, uma norma não aplicável para aferição do consentimento é o da capacidade civil, estabelecida nos arts. 3º e 4º do Código Civil.173 Neste

caso:

o caráter personalíssimo do consentimento para o processamento de dados pessoais: fundamental é identificar se a pessoa tem capacidade de discernimento (Einsichtsfähigkeit) para autorizar determinado tipo de coleta ou tratamento de dados, 171 O tratamento de dados de empregados é questão sensível, mas, tendo em vista a dificuldade do consentimento ser aplicável a esta modalidade, a base legal do inciso V, do art. 7º da LGPD, da possibilidade de tratamento para a execução de contrato, é a mais adequada às relações trabalhistas.

172 HARTUNG, Pedro Afonso Duarte; KARAGEORGIADIS, Ekaterine Valente. A Regulação da publicidade de alimentos e bebidas não alcoólicas para crianças no brasil. Revista de Direito Sanitário, [s.l.], v. 17, n. 3. p.160-184, 9 mar. 2017. Universidade de São Paulo Sistema Integrado de Bibliotecas - SIBiUSP. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v17i3p160-184. p. 162. Disponível em: <http://www.revistas.u sp.br/rdisan/article/view/127783>. Acesso em: 14 jun. 2019.

173 Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.

não sendo necessária a capacidade civil para tanto.174

A autora aduz, ainda, que a autoridade de proteção de dados alemã identifica que a partir de 14 (quatorze) anos a pessoa já poderia consentir com o tratamento de dados pessoais. Vale notar que o RGPD, em seu art. 8º, destaca a possibilidade de disposição da matéria pelos Estados membros, desde que a idade não seja inferior a 13 (treze) anos:

Artigo 8º

Condições aplicáveis ao consentimento de crianças em relação aos serviços da sociedade da informação

1. Quando for aplicável o artigo 6.o, n.o 1, alínea a), no que respeita à oferta direta de serviços da sociedade da informação às crianças, dos dados pessoais de crianças é lícito se elas tiverem pelo menos 16 anos. Caso a criança tenha menos de 16 anos, o tratamento só é lícito se e na medida em que o consentimento seja dado ou autorizado pelos titulares das responsabilidades parentais da criança.

Os Estados-Membros podem dispor no seu direito uma idade inferior para os efeitos referidos, desde que essa idade não seja inferior a 13 anos.

2. Nesses casos, o responsável pelo tratamento envida todos os esforços adequados para verificar que o consentimento foi dado ou autorizado pelo titular das responsabilidades parentais da criança, tendo em conta a tecnologia disponível. 3. O disposto no n.o 1 não afeta o direito contratual geral dos Estados-Membros, como as disposições que regulam a validade, a formação ou os efeitos de um contrato em relação a uma criança.175

A lei brasileira regulou a matéria concernente ao consentimento de absolutamente e relativamente incapazes para o tratamento de dados pessoais no sentido que o consentimento deverá ser específico e em destaque, dado por pelo menos um dos pais ou responsável legal (Art. 14, §1º). Ainda, “o controlador deve realizar todos os esforços razoáveis para verificar que o consentimento a que se refere o § 1º deste artigo foi dado pelo responsável pela criança, consideradas as tecnologias disponíveis”.176

Assim, em vez de regular a idade em que o consentimento poderia ser dado pelos hipervulneráveis, destacou-se que este deverá ser dado por, pelo menos, um dos pais. Não se sabe até quando isto seria factível, eis que a partir de certa idade, principalmente entre os adolescentes, a depender da forma que esse consentimento dos pais seja exigido, não passaria de uma ficção jurídica.

Como em muitos casos esse consentimento se confunde com a própria

174 MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: Linhas gerais de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 63.

175 PARLAMENTO EUROPEU, CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679 do

Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/pt/TXT/?uri=CELEX:32016R0679>

Acesso em: 15 jun. 2019. 176 Art. 14, § 5º, LGPD.

possibilidade de acessar determinados provedores, aplicativos e conteúdos, não se poderia impor que pré-adolescentes se tornem eremitas do acesso à rede, já que internet é aspecto central e indispensável da vida moderna e, inclusive, da própria formação do ser humano do século XXI.

Contudo, considerar o consentimento como válido de pessoa considerada na legislação civil absolutamente incapaz é ir contra toda a construção da capacidade civil nos negócios jurídicos que também devem ser aplicadas nos negócios on-line.

Portanto, a utilização da rede pelo absolutamente incapaz cabe ao tutor ou curador, devendo o consentimento ser por ele realizado. No caso de consentimento para dados pessoais dado por absolutamente incapaz, deve ser considerado nulo, nos termos do art. 166, inciso I do Código Civil.177

Também, mesmo que se impere um saudosismo sobre as brincadeiras na rua, sem crianças vidradas em televisões ou videogames, é fato que não se pode regredir na digitalização e virtualização de crianças e adolescentes, sob pena de causar uma evidente exclusão social no círculo de convivência destas.