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3. A POÉTICA DE HILAL SAMI HILAL: ESCRITAS, PÁGINAS E

4.1 Um livro sem começo e sem fim:

O mundo, portanto, é finito; o vazio, infinito [...] Diógenes Laércio

A crítica de arte, Anne Cauquelin, afirma que nós frequentamos os incorporais. Afirmativa instigante que conduz aos questionamentos: como um corpo frequenta os incorporais? Quando muito, não seriam os incorporais a frequentar um corpo? Interessada no invisível ou imaterial, a autora investigou o pensamento dos estóicos, antigos filósofos helênicos do século III a.C., para tecer suas reflexões com aproximações à Arte Contemporânea.

Cauquelin afirma que são quatro os incorporais: o tempo, o lugar, o vazio e o exprimível. Segundo a autora, o vazio evoca a concepção global do mundo, ou seja, do universo “[...] com o que é e o que não pode ser [...]” - com o finito e o infinito. Compreende-se por universo, tanto o corpo limitado, como o ilimitado (um espaço sem alto nem baixo, sem limites e orientação). Portanto, abarca o existente (o mundo) e o não-existente (o vazio). A autora afirma que “[...] um incorporal, o vazio,

é o lado de fora do mundo [...]” (2008, p. 29-30), espaço que não contém corpo, mas que pode conter. Argumenta ainda, sobre a necessidade de se compreender o que é um incorporal para desvendar o paradoxo: como o vazio pode ser chamado de incorporal se ele abriga o corpo do mundo?

Cauquelin aproxima suas reflexões à física que trata dos elementos da natureza - matéria, peso, tensão/pulsão e os fluxos gasosos. Explica, primeiramente, que o sopro, ou ar, ou alma (pneuma) é o fluxo que mantém o mundo coeso. Que esse sopro (ou alma) é corporal, pois ao mesmo tempo é humano e também se abre à nossa percepção. Integramos o ‘sopro cálido’ do universo, fluxo ao qual se inclui oito elementos: os cinco sentidos, o poder gerador e as capacidades da fala e do raciocínio. E esta alma que anima todos os viventes do mundo movimenta-se nele e ao mesmo tempo, o move. Sobre o ritmo desse sopro gerador de vida, o mundo pode se expandir e contrair. Esse movimento de expansão e de contração do universo para acontecer necessita de um espaço sem corpo – um incorporal. Ou seja, o vazio que não oferece resistência, nele não há obstáculos à respiração do universo e nem direcionamento para o alto ou para baixo. Espaço sem outra característica além da de ser apto para conter corpos (2008, p. 34):

Porque há realmente um papel a ser desempenhado pelo vazio, que tem a ver com a vida do universo, dando-lhe o espaço suficiente para que, ora se contraindo, ora se dilatando, ele possa viver até a conflagração final, ou seja, até o fim do ciclo de anos que o universo deve cumprir antes de recomeçar outro (CAUQUELIN, 2008, p. 37). Neste sentido, o vazio tem papel fundamental para a respiração do universo. Sendo livre de corpos e contendo o corpo do mundo, o incorporal é vital para o movimento criador. Ele torna possível a contração/dilatação. E além do vazio incorporal do universo, Cauquelin afirma que no interior do mundo, também há intercâmbio permanente entre o vazio e o cheio. Que tal pulsação externa se repete internamente – o mundo cheio se expande e se contrai. A autora afirma que para os estóicos o mundo é “[...] uma totalidade animada pelo sopro que atravessa todas as coisas, nenhuma parte pode ser separada dela sem perder imediatamente seu sentido [...]” (2008, p. 23). Diante destas reflexões, entendemos que o espaço (sem alto nem baixo, sem limites e orientação) é a inter-relação entre a presença e a ausência de corpos, abarcando o existente (o mundo) e o não-existente (o vazio). Neste sentido, o incorporal carrega em si a potência de conter corpos. Tal como o

espaço vazio que circunda e, ao mesmo tempo, contém o mundo permitindo a sua contração e expansão.

Refletindo sobre o vazio incorporal, a partir dos argumentos de Cauquelin, traçamos uma aproximação ao discurso plástico de Hilal Sami Hilal. Como por exemplo, a dialética que o artista estabelece entre os elementos cheios e vazados, gerando forças recíprocas que cria um ao outro. Esta relação intercambiável entre presença e ausência permeia toda a obra de Hilal, inclusive no aspecto material, com a fusão das substâncias e a eliminação do suporte. Passa também pela composição de sua escritura que se estrutura na relação de presença e ausência.

Estendemos estas reflexões ao Livro Redondo, de Hilal Sami Hilal, que selecionamos para as análises e aproximações finais desta pesquisa. Conduzindo o olhar para a instância da materialidade deste livro-globo, observamos a aparência áspera e rugosa de sua superfície. Aspecto emaranhado que remete à imagem do ninho e às reflexões de Bachelard (1978). O filósofo relaciona forma, espaço e literatura para discutir as imagens de intimidade que nos habitam. Ele afirma que o mundo é um ninho habitado pelo homem e que existe um grande poder que guarda os seres nesse ninho. Ao abordar a construção da moradia dos pássaros, feita para e pelo corpo, cuja forma é modelada pelo interior, o filósofo suscita a morada dos homens. A imagem da casa habitada também habita os devaneios de seus moradores como metáfora de aconchego, segurança, hospitalidade e afeto. Espaço de estar e de retorno:

A casa-ninho nunca é nova. [...] A ela se volta, ou se sonha voltar, como o pássaro volta ao ninho [...]. Este signo do retorno marca infinitos devaneios, pois os retornos humanos se fazem sobre o grande ritmo da vida humana, ritmo que atravessa os anos, que luta contra todas as ausências através do sonho. Sobre as imagens aproximadas do ninho e da casa repercute um componente de íntima fidelidade (BACHELARD, 1978, p.261-2)

Hilal Sami Hilal concebeu seu Livro Redondo à imagem do mundo, um grande ninho no qual habitam os homens. Seu globo foi construído com e para os que o habitam – aqueles que ele nomeou. Para a construção deste livro-objeto Hilal grafou em cobre o nome de familiares e amigos. Porém, a coleção de nomes usados por ele também pertence ao coletivo. São nomes de presentes e ausentes que fazem a todos, sem exceção, habitantes de seu globo.

Paulo Pires do Vale também se exprime através da imagem poética do livro como casa, ao se referir ao ingresso do leitor na obra. Para este autor “[...] A entrada no livro implica uma saída do mundo – forma de fuga? -, mas que só se completa com a reentrada no mundo. [...]” (2012, p.100). Para o autor, a entrada no livro oferece um espaço de acolhimento e hospitalidade, como uma morada, por vezes estranha, com seus cômodos ou quartos diferentes. A casa-ninho-mundo metafórica, com suas entradas e saídas, começos e recomeços, se mostra também como símbolo do ciclo da vida. Seu tempo de nascer e renascer a cada leitura - um mundo redondo - sem começo, sem meio e sem fim.

4.2 O tempo poético no Livro redondo: