• Nenhum resultado encontrado

3. A POÉTICA DE HILAL SAMI HILAL: ESCRITAS, PÁGINAS E

3.2 As páginas de papel, as de cobre e suas escritas:

3.3.1 A prática do lugar nas páginas de Hilal

O início do trabalho de Hilal Sami Hilal acontece sobre o plano. E a linha se constitui como o elemento primordial de sua obra (HERKENHOFF, 2008). Seus traços determinam um texto, um trajeto gráfico que cria uma espécie de topografia entre as formas cheias e vazadas, nos planos textuais. Os grafismos caligráficos em papel artesanal ou as tipografias em cobre formam as películas-escritas que são as páginas de seus livros. No ato de escrever Hilal cria a própria página.

Para pensar sobre o espaço das páginas de Hilal, trazemos o pensamento de Michel de Certeau (1925-1986). Em suas investigações sobre a construção do cotidiano, o filósofo afirma que pouco nos atentamos aos seus detalhes, de tão sutil e ordinário, tão parte de nós que é o nosso dia-a-dia. Certeau parte dos modos de experiências na cidade, para discutir as relações criadas cotidianamente na construção da espacialidade urbana. Para ele, o espaço é a instância onde o corpo social se enquadra; ou se submete ou resiste às regras estabelecidas nas ações políticas, existentes nas relações imediatas entre o sujeito, o mundo e o outro. Conforme o filósofo, foi a partir das pinturas renascentistas em perspectiva que se inventou a vista panorâmica da cidade (visão de cima e de fora). Trata-se de uma ilusão pictórica, hoje materializada pela arquitetura cujas construções criam leitores que modificam a leitura da complexidade urbana. No pensamento do autor, é de dentro do espaço urbano, onde estão os caminhantes e os pedestres, que cessa a visibilidade ilusória dos que a veem de cima. Pois são os corpos que percorrem a cidade, obedecendo aos seus cheios e vazios, que articulam os lugares.

Caminhando, tecem a espacialidade sem poder vê-la; escrevem a textualidade urbana sem poder lê-la - compõem a história que se faz em multiplicidades, sem autor nem espectador. Circulando pelas ruas os transeuntes tramam uma escritura que modifica diariamente a cidade (1998).

Certeau afirma ainda, que o ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação está para o sistema linguístico - colocando o outro diante do locutor no jogo de contrato entre locutores. Ele aproxima também esta relação do espaço urbano, ao ato de escrever e à própria escrita ou, como na pintura, à gestualidade do pincel sobre a tela ao criar formas e cores. Para o autor, esta organicidade móvel do ambiente tem como função garantir a comunicação. Assim, o sujeito caminhante traça uma escrita como relatos de percurso e atualiza o texto urbano. Segundo o filósofo “[...] todo relato é um relato de viagem – uma prática do espaço [...]” (1998, p. 200). Sejam reais ou ficcionais, os relatos dos caminhantes constroem a espacialidade, uma topografia que indica direções descrevendo tempos e lugares.

Neste sentido, a aproximação que o autor propõe entre as articulações do sistema urbano com as do sistema verbal, interessa às reflexões que fazemos sobre a ação de Hilal nas páginas dos livros que ele cria. Entendemos os grafismos e escrituras do artista como relatos de percursos, que induzem o leitor a traçar o próprio trajeto. Interessa-nos também a diferença que o filósofo traça entre os termos lugar e espaço. Ele argumenta que o primeiro indica uma posição de estabilidade, uma ordem que distribui os elementos nas relações de coexistência e que pressupõe uma demarcação mais estável e restrita, estabelecida na espacialidade. Fixo e sem admitir existência dupla, pois duas coisas não ocupam o mesmo lugar, este se apresenta inerte como um rochedo. Enquanto que o segundo, o espaço, é construção constante, que implica em movimento e possui “[...] vetores de direção, quantidade de velocidade e a variável tempo [...]” (1998, p.202). Desse modo, indica instabilidade, dependência do movimento e do cruzamento dos elementos móveis. Nessas movimentações, ao se deslocarem de um lugar a outro, se estabelecem as relações espaciais. O autor afirma que “[...] o espaço é um lugar praticado [...]” (1998, p.202), onde há intercâmbio entre posições de ‘lugares’, há construção de espaço.

Para melhor compreensão, aproximamos os conceitos de lugar e de espaço, segundo Certeau, às definições de dois dos elementos básicos da composição

gráfica, o ponto e a linha, por Wassily Kandinsky (1866-1944). Considerado o pai da pintura abstrata, o artista e teórico afirma que o ponto é fixo e sem mobilidade. Assim, entendemos que este elemento determina um lugar – uma situação fixa, imóvel que, a nosso ver, está de acordo com o conceito de lugar dado pelo filósofo. Para a definição da linha, Kandinsky diz que esta é a consequência do deslocamento do ponto, algo que se move de um lugar a outro, demarcando um trajeto:

A linha geométrica é um ser invisível. É o rasto do ponto em movimento, logo seu produto. Ela nasceu do movimento - e isso pela aniquilação da imobilidade suprema do ponto. Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico [...] (1987, p.49).

Considerando que algo ao se deslocar de um lugar a outro descreve um trajeto, esta dinâmica pode ser representada por uma linha. Assim, a título de exemplo, cada passo registrado no chão pode ser um ponto que determina um lugar próprio. A sequência dos passos, como uma linha pontilhada, descreve um percurso que define o modo de transpor marcado por pontos, compondo sobre o plano uma linha total e reversível (CERTEAU, 1998). A partir da prática do pedestre e do leitor o ‘cruzamento de móveis’ ocorre nos lugares, na rua (o urbano) e no texto (o escrito), transformando-os em espaços. Nosso deslocamento contínuo nas cidades como pedestres ou, como leitores (decodificadores dos sistemas de signos), produz espaço no mundo. Assim como um artista, que ao traçar uma linha sobre um plano com pincel ou grafite, descreve trajetos produzindo espaços. Neste sentido, ao desenhar sobre o plano usando a linha como elemento, Hilal “pratica o lugar”. Ao ativar a superfície plana inerte (o lugar), traçando percursos e construindo uma textualidade topográfica, o artista cria espaço. Com a gestualidade deste ato, ele próprio percorre os trajetos no momento de sua criação. E assim, constrói seus relatos em forma de escritura e os coloca ao dispor de seus leitores.

Roland Barthes afirma que o fato de um artista incorporar elementos gráficos à sua obra é o suficiente para evidenciar que o ato de escrever é mais que uma técnica, ”[...] é também uma prática corporal de prazer [...]” (2008, p. 144). Nas obras de grandes dimensões, Hilal trabalha com o plano na horizontal, no chão. Seu corpo, por vezes, se insere dentro da superfície trabalhada. Para este artista sensível às matérias com as quais lida, o corpo está totalmente presente no ato criativo. As mãos em contato com as texturas dos materiais, a força muscular no embate com a

resistência das substâncias e o olhar construindo percursos. A peculiaridade da obra de Hilal, a materialidade, assim como seus modos de operar aponta a prática corporal prazerosa do seu processo criativo.

Na imagem abaixo (Figura 52) percebe-se a gestualidade gráfica minuciosa do desenho de Hilal na construção de seus grandes planos. No ato de construir seu corpo inteiro está dentro da rede que ele tece, num gesto que indica proximidade. Esta ação remete ao pedestre que traça o percurso urbano percorrendo ‘seus cheios e vazios’. Neste momento a visão do artista está dentro, ‘onde cessa a visão ilusória’ da vista panorâmica, como diz Certeau. No ato de desenhar sobre o plano, os olhos do artista estão concentrados nos detalhes, impossibilitando-o de ver o panorama total do trabalho. Para visualizar a totalidade é necessário se levantar para ver de fora, “de cima para baixo”. A ação revelada na imagem mostra o artista praticando o lugar e criando espaço sobre o plano, ato de prazer corporal que ativa a página, preparando-a para o leitor/espectador.

Figura 52 – Hilal Sami Hilal (s/d) Fonte: Catálogo Seu Sami

Em seu postulado, Michel de Certeau também traça a diferença entre o que chama de relatos de mapas e relatos de percursos, a partir das narrativas orais - seja nos espaços geometricamente construídos (casas ou apartamentos), ou nos urbanos (as ruas). O filósofo explica que o modelo ‘mapa’ é mais descritivo e tende a posicionar as coisas de modo mais fixo, definindo os lugares como pontos estabelecidos, como por exemplo:

_ ‘No fim do corredor, ao lado dos quartos, fica o banheiro’.

Enquanto que o modelo ‘percurso’ é mais enunciativo, apontando direções, sugerindo movimentos para que se crie um caminho próprio. O modelo percurso mais sugere do que impõe. Como no exemplo abaixo:

_ ‘Pode entrar no portão azul e pegar o elevador, ou virar à direita e subir a escada’.

Para o filósofo, os dois tipos de relatos oscilam entre as alternativas: ver (da ordem do lugar) ou ir (da ordem do espaço). Ele afirma ainda, que os mapas modernos se afastaram das indicações de percursos e cita os antigos mapas medievais (Figura 53) e o asteca como exemplos de relatos de percurso. Típicos da época, esses mapas faziam alusão a relatos de lendas que corriam entre os navegadores. Neles era comum ter representações de monstros marinhos fantásticos que simbolizavam possíveis perigos nos mares desconhecidos.

Figura 53 – Mapa Medieval (1539).

Fonte: disponível em:<http://hypescience.com/a-evolucao-e-o-proposito-de-monstros- marinhos-em-mapas-medievais-e-renascentistas/>

A cartografia medieval era dominada por sugestões de percursos a serem feitos, como marcações de quantos passos adiante; as paradas com alojamentos e as distâncias marcadas em horas ou dias – como tempo de marcha. São modos de relatos de percurso gráficos que os mapas modernos deixaram de ter.

Nos trabalhos textuais de Hilal, além de letras, palavras e nomes próprios, o acervo de signos cartográficos é recorrente, como a rosa dos ventos e os símbolos dos pontos cardeais, principalmente o N (Norte). Observa-se que alguns de seus desenhos (Figura 54) se assemelham a mapas que, em suas intricadas tessituras, mais parecem sugerir trajetos do que impor. Os traços de Hilal como no exemplo abaixo, são como relatos de percurso que deixam ao leitor/espectador a escolha do caminho a ser percorrido por seu olhar. As páginas de Hilal, a nosso ver, não impõe um olhar fixo, os olhos seguem suas linhas percorrendo seus traçados entre os elementos cheios e vazios de sua obra.

Figura 54 – Desenho de Hilal Sami Hilal, s/d.

Fonte disponível em:<http://www.galeriamariliarazuk.com.br/#/br/home> Acesso em: 03 ago. 2014