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4. UM CIRCUITO REGULADO: A ORGANIZAÇÃO DAS INSTÂNCIAS

4.1 A construção das formas de seleção dos livros escolares: entre autorizar,

4.1.2 Livros ensaiados nas salas de aula

Embora os regulamentos analisados fossem unânimes em proibir os professores de lecionarem com livros escolares não adotados pela Diretoria da Instrução Pública, em pelo menos dois deles (o de 1892 e o de 1901) existe a previsão de conceder aos docentes uma permissão para ensaiarem o uso de algumas obras didáticas que oficialmente não haviam sido adotadas. Depois de determinar que os professores não poderiam alterar a lista dos livros adotados e nem mudar de compêndio, o Regulamento Geral da Instrução Pública e especial do ensino primário

do Estado do Amazonas, de 1892, prevê que “É licito aos professores, sem prejuízo do ensino ou violação dos princípios acima e disposições regulamentares, ensaiar um livro ou compendio com o fim de inteirar-se da sua utilidade, obtendo para isso permissão do Director Geral.” (art.186).

O Regimento Interno das Escolas Primárias de 1901 vale-se de dois artigos para reafirmar essa concessão:

Art. 60 Nenhum professor poderá adoptar em sua escola livros ou material pedagógico differente dos approvados pelo poder competente, salvo a titulo de experiência e mediante licença do Diretor Geral.

Art. 70 O professor que tiver obtido a permissão de que trata o artigo anterior, deverá no fim do anno lectivo, dar o seu parecer por escripto á Directoria Geral sobre o resultado da sua experiência.

Mas, antes que essas leis entrassem em vigor, a prática de ensaiar livros escolares nas salas de aula já era adotada no ensino público amazonense. Em 15 de junho de 1880, o Dr. Pedro Regalado Epiphanio Baptista

,

exercendo o cargo de Diretor da Instrução Pública, encaminhou um ofício circular para alguns professores das escolas primárias da Capital com o seguinte teor: “Remetto a Vmce. para que distribua pelos alumnos de sua escola três exemplares do methodo

Hudson, devendo, depois de pol-o em practica, informar-me qual a vantagem que o referido methodo traz ao ensino publico primário.” (Correspondência da Presidência da Província jun.

1880 – 12).

O Pe. Francisco Pedro d´Oliveira, responsável pela Escola de ensino primário de Canuman, foi um dos professores que recebeu este ofício circular, juntamente com os três exemplares do

methodo Hudson56. Em correspondência de 15 de julho de 1880, Pe. Francisco acusou recebimento do ofício circular, e fez a seguinte ressalva: Cumpre me em resposta declarar á VSa.

que não obstante ser o numero de exemplares tão limitado para o crescido numero de alumnos matriculados na escola, vou dar o devido cumprimento como VSa. me determina.”

(Correspondência da Presidência da Província jul. 1880 – 09).

Não sabemos qual foi o resultado desse ensaio e nem como ele foi realizado. No entanto, a observação feita pelo professor Francisco d’Oliveira nos leva a especular sobre o modo como era realizado esse ensaio do livro escolar. Se o número de exemplares (três) enviados era insuficiente para atender aos alunos da escola de Canuman, como afirma o professor Francisco, é razoável pensarmos em uma situação de ensino marcada pela falta de uniformidade dos livros destinados ao ensino da leitura.

56 Trata-se do livro Método de Leitura, de Octaviano Hudson, publicado pela Tipografia Nacional em 1879 (Cf. Bittencourt,1993, p.82 e Tambara, 2002, p.49).

alumnos das outras turmas e cursos. Como, porém, a não ser por este meio, poderia em applicar o methodo do Sr. Carvalho, explicando as lições de modo a colher dellas proveito?

Lancei mão desse meio – na falta de melhor - ; mas somente como uma medida transitória, para esta experiência, e para poder cumprir as vossas determinações. Entendendo porém não ser conveniente prolongar este estado de cousas, pois é intuitivo o prejuízo que advém á escóla, da falta de uniformidade nos livros escolares, vendo-se o professor obrigado a recorrer ao velho e absurdo ensino individual, ou a dividir em duas ou mais turmas alumnos da mesma classe, perturbando assim a marcha regular do ensino. (Alves, 1900,

p.176).

Chama a atenção que, tanto no caso do Amazonas quanto no do Pará, a iniciativa de ensaiar os livros escolares partiu das autoridades do ensino e não dos próprios professores, denotando que se tratava de uma prática mais produtiva para as autoridades do ensino do que para os docentes. Talvez por estarem cientes das dificuldades de realizarem esses ensaios, os professores amazonenses tivessem abdicado dessa possibilidade que, em certos momentos, as leis de ensino lhes asseguravam.

A despeito dos possíveis transtornos que causavam nas rotinas de ensino dos professores das escolas primárias, essas práticas de ensaiar livros escolares parecem ter ajudado as autoridades do ensino a terem uma visão antecipada sobre os possíveis efeitos que alguns livros escolares provocariam no ensino de algumas disciplinas. No caso do livro de Octaviano Hudson, os documentos indicam que sua utilização ficou restrita às práticas de ensaiá-lo, pois não figura nas listas de livros adotados nos anos subseqüentes.

O circuito do livro escolar vai muito mais além desta etapa que aqui decidimos retratar. Mas, ao nos debruçarmos sobre os regulamentos de ensino, foi possível identificar as tentativas dos dirigentes políticos e da Instrução Pública para institucionalizar esse circuito do livro escolar, estabelecendo, dentre outras coisas, os sujeitos e as práticas que seriam acionados no momento de selecionar quais livros poderiam circular nas escolas primárias. Podemos perceber, também, o

modo como o aparato de escolha e controle dos livros escolares foi se sofisticando ao longo do tempo. Vemos que várias tentativas foram feitas, até que o modelo ancorado na figura de um

Conselho fosse criado e se estabelecesse, pelo menos nos vinte primeiros anos da República,

como a forma oficial de proceder à seleção e ao acompanhamento dos livros que circulavam nas escolas primárias do Amazonas.

Ao lado da institucionalização desse aparato de controle, os pareceres sobre os livros escolares deixam transparecer a emergência de critérios que gradualmente foram sendo instituídos como parâmetros de legitimação para adoção dos livros escolares. A partir desses critérios temos um esboço do que as autoridades de ensino imaginavam que uma obra escolar deveria ter (em termos de sua forma, de seu conteúdo, de sua materialidade e de seu custo) para que fosse declarada aprovada e adotada.

Além de definirem os dispositivos e instâncias em torno dos quais se realizaria a seleção das obras didáticas, as autoridades políticas e educacionais do Amazonas preocuparam-se em modelar outras dimensões do circuito do livro escolar: vários dispositivos que buscavam regulamentar outros aspectos associados a esse circuito puderam ser repertoriados através do levantamento que realizamos sobre as leis a publicação, aquisição, distribuição e emprego deste gênero de impresso (anexo B).

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