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Localidades com denúncias de prostituição na Comarca de Vila Rica, século XVIII

Cativeiro, mineração e a espacialidade do “torpe lucro”

Mapa 3. Localidades com denúncias de prostituição na Comarca de Vila Rica, século XVIII

Fonte: Mappa da Comarca de Villa Rica. José Joaquim da Rocha, 1779. Acervo da Biblioteca Nacional.

358 ROCHA, José Joaquim da. Mappa da Comarca de Villa Rica. 1779. 1 mapa ms., desenho a naquim, col., 41 x 80cm em f. 54 x 84cm. Disponível em:

<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart1090219.htm>. Acesso em 23/06/2017. Esta representação cartográfica faz parte de um conjunto de mapas feitos pelo engenheiro militar José Joaquim da Rocha, português que esteve no Brasil durante a segunda metade do século XVIII. Júnia Furtado destaca que sua produção procura “apresentar uma perfeita correspondência com a região apresentada. Todas as cidades, vilas, estradas, registros, rios e limites da capitania estão razoavelmente dispostos em suas posições no território, e as escalas apresentam uma adequada proporção com o espaço real”. FURTADO, J. F. “Um cartógrafo nas Minas”. Revista do Arquivo Público

O mapa acima sinaliza alguns dos locais de denúncias de prostituição na comarca de Vila Rica. Os lugares foram identificados a partir das acusações das visitas pastorais, tendo sido alvo de queixas de meretrício, casas de alcouce, consentimento e alcovitice. A representação mostra como o fenômeno da prostituição era disperso ao longo da comarca, com maior número de queixas de comércio venal no período. Apesar de disseminado ao longo dessas localidades, isso não significa que o fenômeno se manifestava de maneira periférica nesses arraiais; ao contrário, estava integrado aos principais pontos e conectado a espacialidade das localidades.

A região aurífera que mais tarde se tornaria a cidade de Mariana também apresentou altos índices de proliferação desse comportamento. Em 1723 os alferes Domingos da Silva e Joseph Botelho, moradores de Mata Cavalos, na Vila de Ribeirão do Carmo, foram denunciados por serem consentidores de suas escravas. Na mesma Vila, João Álvares, morador do arraial da Passagem, era consentidor de que sua escrava fosse à casa de “vários homens”. À residência de

Maria, localizada na rua do Piolho, iam várias pessoas. Em testemunho de março de 1723, o padre Francisco Xavier afirmou ser essa uma casa de alcouce.359 O prostíbulo estava localizado

numa das principais vias de morada da vila e nos primeiros anos de formação dos seus núcleos de habitação, já era “‘das mais povoadas’ e habitada por ‘pessoas notáveis’, talvez por se tratar

de uma continuação da rua Direita”, ressalta Cláudia Damasceno.360

Vila do Carmo foi o primeiro arraial mineiro elevado à condição de “vila”, em 1711.

Próximo dali, em 1705, também foram criadas as paróquias de São Caetano, Furquim, São Sebastião e Sumidouro. A criação de arraiais tão próximos era um reflexo do crescimento demográfico na região, ligado à exploração de minérios.361 As referidas localidades apresentavam índices rentáveis de arrecadação de ouro e tinham economia baseada nessa

359 AEAM – Devassas 1722-1723, fls. 50v-51.

360 FONSECA, Cláudia Damasceno. Espaço urbano de Mariana. Op. Cit., p. 32.

361 FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo

atividade. Entre os anos de 1721 e 1733, por exemplo, estes distritos somavam juntos quase o dobro de arrecadação dos quintos régios, um indicador da riqueza da região neste período.362

A proliferação da prostituição nas zonas das áreas de mineração, populosas e com grande de circulação de gente e riqueza, refletiu-se nas denúncias de meretrício nesses lugares. Em abril de 1742, na freguesia do Furquim, a cativa Maria Tavares foi admoestada a “cessar escândalo” de ser meretriz. No mesmo ano, José de Oliveira foi repreendido por “consentir” que sua escrava Isabel, vendeira, “seja mal procedida”. Heitor Mendes, morador da freguesia do Sumidouro, foi admoestado a “cessar o escândalo” que dava a “várias mulatas que tem na sua casa e sítio”. Anos antes, em 1737, na mesma localidade, a preta forra Inácia Gonçalves,

casada, foi censurada por dar casa de alcouce. Em 1742, no arraial de São Sebastião, José da

Silva, ourives, também foi admoestado pelo mesmo delito. Ali a forra Quitéria, vendeira, supostamente consentia em “sua casa negros e negras”.363 Enquanto a preta forra, Lourença,

dava “casa de alcouce”, em junho 1730. Neste mesmo ano, na freguesia de São Caetano, a

também preta forra Luzia dava entrada de homens “de noite e dia” em sua casa.364 Seria possível

dar inúmeros exemplos de denúncia, mas fica evidente como as zonas de meretrício estavam integradas aos principais centros de exploração aurífera de Minas durante este período.

Em 1753, quando a vila já tinha o título de cidade e era sede do primeiro Bispado da Capitania de Minas365, as denúncias e pronúncias foram inúmeras. Nesse ano, Bernarda, a Pisca,

362 Segundo Simone Faria, São Caetano, Furquim, São Sebastiao, Passagem, Vila do Carmo somavam juntos 41%

de arrecadação dos Quintos Reais entre os anos de 1721 e 1733. Inficionado e Catas Altas também apresentavam índices importantes com 7% e 11% respectivamente. FARIA, Simone Cristina de. Os “homens do ouro”: perfil,

atuação e redes dos cobradores dos quintos reais em Mariana setecentista. Dissertação e mestrado em História

Social. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010, p. 44.

363 AEAM – Devassas 1742-1743 [Termo de culpa], fls. 39;40;49;95v;50v;52v. 364 AEAM – Devassas 1730-31 [Livro 1], fls. 8;28.

365 No ano de 1745, “o papa havia concedido ao rei Dom João V permissão para instituir não apenas uma diocese

em Minas Gerais, incluía também três outros centros de poder eclesiástico: o bispado de São Paulo e as “prelazias de Cuiabá (Mato Grosso) e de Goiás”. Segundo Cláudia Damasceno, “o objetivo dessas instituições não era somente melhorar a administração eclesiástica da colônia”, mas tinha “também interesses de natureza geopolítica”. FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Op. Cit., p. 119.

era moradora da rua Nova, e ali também viviam Narciza e outras meretrizes conhecidas como as Primas, já citadas. Na rua de São Gonçalo moravam quatro mulheres suspeitas de meretrizes. E o número de queixas se espalhava pela cidade naquele ano. Ana, a Sopinha, já mencionada, a crioula forra Mônica e a carijó Maria da Silva habitavam essa via e foram denunciadas por “públicas meretrizes”. Jerônimo do Vale testemunhou ainda que em frente a ele moravam duas mulatas “muito depravadas no seu procedimento”, mas não sabia os seus nomes. Inácia, a

Enforcada, Maria Lopes da Silva e a parda forra Maria da Costa eram moradoras da travessa da rua Nova e Constância Damiana da calçada de Santa Ana, todas acusadas de envolvimento com a prostituição. No mesmo ano e visita, a preta forra Quitéria, a cabra Tereza e Izabel Nogueira, moradoras na rua da Olaria, foram delatadas por Estevão Leite. Joana, parda forra, conhecida como a Cumprimento, também foi denunciada como “mulher pública” pelo cuidador de

cavalos.366 A rua da Olaria, onde elas moravam, ficava no “caminho de fora” que levava até

Itaverava. Lugar de circulação de pessoas, sobretudo dos oleiros que trabalhavam com o barro ou argila, profissão que dá nome à via.367

Os relatos acima permitem entender como a prática do meretrício estava integrada aos principais espaços da cidade de Mariana. As queixas descrevem várias mulheres com alcunhas, indicando certa antiguidade na atividade e o conhecimento da identidade dessas mulheres no universo das relações sociais. Além disso, demonstra como a prostituição estava conectada aos principais pontos da vida urbana e da dinâmica comunitária.

366 AEAM – Devassas 1753, fl. 138;139;142v;143v145v;148.

Mapa 4. Ruas com denúncias de prostituição na cidade de Mariana em 1753.

Fonte: Plãta da Cidade de Mariana. Original do Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. Segunda metade do século XVIII.

No mapa acima, as setas representam as ruas exatas das denúncias do ano de 1753, descritas anteriormente. A planta apresenta algumas soluções propostas para a cidade de Mariana, próprias dos técnicos militares e apresenta um modelo ideal de urbanização para um contexto específico.368 As queixas não apresentam número significativo que permita afirmar que essas vias fossem locais tradicionais da prostituição em Mariana. Entretanto, demonstram a dispersão do fenômeno na via urbana, bem como a sua integração com os principais espaços da cidade.

368 Cláudia Damasceno discute como esse mapa esteve vinculado aos padrões adotados em criações iluministas

com “lotes simétricos” e blocos uniformes”. Estes e outros mapas trabalhados pela autora são vistos como “primeiros esboços das novas atitudes que seriam incorporadas ao repertório dos engenheiros ligados ao urbanismo pombalino”. FONSECA, Cláudia Damasceno. Espaço urbano de Mariana. Op. Cit., p. 48-49.

Em 1760, Maria Francisca, moradora da rua da Cachaça em São João del Rei, foi denunciada por prostituição. Manoel Gomes delatou outras três mulheres no mesmo testemunho, mas não informou a moradia das mesmas. Como o próprio nome da via sugere, era um local onde se comercializava aguardente na vila. Trata-se de um ambiente propício para disseminação do estereótipo da marginalidade, através do consumo de bebidas, danças e divertimentos. São características comuns que marcaram as denúncias de prostituição nas Minas, sobretudo em denúncias de casas de alcouce.369 A rua do Curral, situada na mesma

localidade, também aparece nas queixas. Ali moravam Luzia, mulher branca, e Josefa Caetana, acusadas de “públicas meretrizes” por José Henriques de Souza. Enquanto Maria de Souza,

residia “para a parte do cemitério” da vila de São João del Rei, sendo conhecida como “mulher mundana” juntamente com sua filha.370

A mulata Francisca, moradora na rua do Rosário Pequeno, situada no Tejuco, consentia que suas escravas tivessem “tratos ilícitos com homens em sua casa”, relatou João

Batista de Oliveira, em 1733.371 A parda forra Rosa Pereira e o Coronel Francisco Pinto foram

denunciados por darem casa de alcouce na mesma localidade, em 1734. Não muito longe dali, a também preta forra Luzia Cardosa, moradora do arraial de Rio Manso, freguesia de Vila do Príncipe, foi acusada de alcoviteira,372 enquanto a parda forra Domingas e sua irmã Inácia foram

denunciadas por “mulheres meretrizes expostas” a quem as procurava, em 1756.373 Na mesma

369 Luciano Figueiredo aponta como o consumo de aguardente era usado como recurso para a desqualificação nas

revoltas do período colonial. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. “A linguagem da embriaguez: cachaça e álcool no vocabulário político das rebeliões na América portuguesa”. Revista de História [online], n.176, São Paulo, 2017.

370 AEAM - Devassa 1759, fl. 136;137;142. Sheila de Castro Faria apresenta uma figura feminina que morava

nessa rua, oferecendo uma descrição sobre alguns habitantes da via. Florência Oliveira, preta, de nação mina, tinha uma casa na rua da Cachaça, em 1774, “que parte por bem de um lado com casas de Joaquim Lopes do Vale e do ouro com casas de Francisco José de Araújo, e dois negros por nome Pedro e Antônio ambos de nação angola, e duas negras de nomes Tereza de nação mina e Rosa de nação Moçambique”. Cf. Sheila de Castro Faria em “Mulheres forras: riqueza e estigma social”. Tempo, v. 5, n. 9, Niterói, pp. 65-92, jul. 2000.

371 AEAM - Devassas 1733, fl. 84v. 372 AEAM - Devassas 1734, fl. 101. 373 AEAM - Devassas 1756-1757, fl. 47.

comarca, a preta forra Suzana da Silva, moradora da Vila do Príncipe, foi acusada de “consentir” que sua filha usasse “mal de si”, em 1734.374

O mapa abaixo, da demarcação de Diamantina, destaca alguns arraiais citados nas denúncias descritas no texto, demonstrando um fragmento da espacialidade da prostituição na Comarca. Foram usados os mesmos critérios dos mapas anteriores, e as denúncias não estão distinguidas por tipologia ou qualificação das queixas. O centro da demarcação era o Arraial do Tejuco, atual cidade de Diamantina.