• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO: TOMADA DE UMA POSIÇÃO-

2.1. PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO E CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA

2.1.6. LOUCO: QUE IDENTIDADE É ESSA?

E você ainda me pergunta aonde é que eu quero chegar, se há tantos caminhos na vida e pouquíssima esperança no ar? (Caminhos – Raul Seixas, In: Raul Seixas 1 – Coletânea )

Pensando nos processos de objetivação e subjetivação, propostos por Foucault (1995), e nos processos de constituição identitária, analisaremos mais um fragmento recortado do corpus de estudo. Trata-se de um enunciado que emerge de uma conversa entre Austry e Rogério, no interior do manicômio, onde foi internado pela primeira vez.

(F8):

- Você tá sonhando. O meu caso pra eles é o mesmo que o seu, somos os dois viciados! Ninguém escuta você, você é um viciado e está enlouquecendo por falta de drogas. Isso é o que representa sua figura para eles e a sua família. Você tá doente, ficando louco e... a louco, ninguém dá ouvidos! Nós não temos nem esse direito. Se você se matar para que o ouçam, irão dizer que se matou porque tava louco [...] (CARRANO, op. cit., p. 72)

Esse fragmento recortado do corpus é uma enunciação de Rogério, em que contrapõe-se a afirmativa de Austry acerca das diferenças entre os dois sujeitos – "Mas o seu caso é outro, você é realmente viciado” (CARRANO, op. cit., p. 72) – marcando simbolicamente um processo de identificação com a loucura, o qual é constitutivo da identidade do sujeito naquela determinada posição. Percebe-se que essa marcação simbólica é um meio pelo qual se atribuem sentidos às práticas e relações sociais, responsáveis por determinar a inserção ou exclusão de um sujeito em uma dada “ordem do discurso”. Nesse sentido, o louco é excluído das práticas sociais, não tem direito a voz, não é ouvido, é interditado, impedido de se inserir nas práticas discursivas dos sujeitos-normais.

“Você tá sonhando. O meu caso pra eles é o mesmo que o seu [...].” (CARRANO, op. cit., p. 72). Há, nesse enunciado, a representação de um sistema simbólico, a partir do qual a identidade é construída de maneira relacional, uma vez que depende de algo exterior a ele, ou seja, depende de aspectos sociais e de outras identidades, que, embora diferenciadas, oferecem condições para o sujeito ocupar uma posição-sujeito que estabelece seus próprios processos de identificação na enunciação.

As identidades são fabricadas por meio de marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença – a simbólica e a social – são estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatórios. Um sistema classificatório aplica um principio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos – nós/ eles; eu/ outro. (WOODWARD, 2007 p. 40)

Essa diferença é sustentada pelos processos de exclusão, pois o sujeito, no hospício, não pode ser normal, é louco e “a louco, ninguém dá ouvidos”. O sujeito- louco tem sua identidade marcada simbolicamente e constituída por meio da exclusão/ interdição de seus discursos.

Conforme Foucault (2006a), é a interdição que revela a ligação do discurso com o desejo e o poder, pois não se tem o direito de dizer tudo, não se pode falar de tudo e em qualquer circunstância e, também, não se pode dizer qualquer coisa. Nesse sentido, o discurso do louco é interditado – “Nós não temos nem esse direito...” (CARRANO, op. cit., p. 72) –, pois sua voz não é ouvida, seus gritos e murmúrios são silenciados, apagados, destituídos de valor. Então, a interdição revela a ligação do discurso com o desejo e o poder. Além disso, deve-se ressaltar que a interdição está sempre presente nos discursos que, as interdições que o atingem desvelam o lugar que cada sujeito tem o “direito” de ocupar.

No recorte em análise, podemos evidenciar que o louco é aquele cujo discurso é impedido de circular: suas palavras são consideradas nulas, seus desejos são menosprezados. Há, então, uma prática de subjetivação que se revela a partir de um domínio de memória. Conforme Foucault (2004a), domínio de memória

trata-se dos enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos, que não definem mais, conseqüentemente, nem um corpo de verdades nem um domínio de validade, mas em relação ao qual se estabelecem laços de filiação, gênese, formação, continuidade e descontinuidade histórica. (FOUCAULT, 2004a, p. 64)

Tal prática de subjetivação está estreitamente ligada ao domínio de memória e pode ser evidenciada no seguinte trecho do corpus, no qual o pai e o irmão falam, a partir do domínio de memória que têm sobre quem e, principalmente, sobre um lugar socialmente autorizado – estamos pensando aqui no modo como a verdade se constrói, pois o médico, falando historicamente, tem o direito de determinar quem é louco ou não, quem é viciado ou não etc. – , acerca do médico que vem “tratando” Austry:

(F9):

_ O Dr. Alaor Guimont é um dos melhores psiquiatras do Paraná. Se não me engano, ele tem até livros publicados. Tudo que ele fizer é para teu bem, Austry! Disse meu irmão, com mais de dez anos de diferença da minha idade, conselheiro da família.

(...)

_ Esse médico tem mais de quarenta anos de profissão. Com o que falamos pra ele de você, já sabe o tipo de tratamento que vai aplicar. Ele é muito experiente e competente. (CARRANO, op. cit., p.102)

Observando F9, podemos constatar que aquele que tem direito a voz, ou melhor, que entra na ordem da autoridade discursiva, tem seus discursos tomados como

verdades absolutas e inquestionáveis, mesmo quando suas reais atitudes são incoerentes com a teoria que pregam.

Bem, voltemos ao F8. Em seu discurso, Rogério revela saberes sociais acerca do sujeito-louco, retomando uma memória social, constituindo um efeito-sujeito que, a partir de suas experiências no interior do hospital psiquiátrico e das experiências anteriores a esse espaço, constitui sua subjetividade.

Podemos mencionar, também, um dispositivo de poder, que está no interior de um campo de historicidade, que insere o sujeito em uma dada posição – no caso em questão, na posição do louco. Ao ser interditado, o sujeito-louco é destituído de poder, seus saberes sobre si mesmo não são considerados, subtraem dele as relações de força que se estabelecem enquanto saberes; há uma exclusão de seus dizeres e de seus corpos, que são amontoados em manicômios, livrando, assim, a sociedade “normal” do mau estar de seu convívio.

Os procedimentos de exclusão são historicamente constituídos e carregados de poder, dispositivo que separa o que é verdadeiro do que é falso. Essa separação se dá a partir de uma posição-sujeito. Portanto, a verdade é relativa a uma posição-sujeito e aquele discurso que fere o princípio norteador dessa verdade é excluído, por isso o louco não tem espaço no social, pois seus discursos ferem os princípios que determinam a “verdade”. Os enunciados de um sujeito, inscrito em um dado lugar social, são responsáveis por essa separação e, no estudo em questão, tomamos como autorizados pela imposição de uma dada verdade – a de que um sujeito é ou não louco – a família e a instituição manicomial.

Observando F8 e F9 pudemos constatar a instauração de duas verdades distintas acerca do médico responsável pelo tratamento naquele manicômio. Essas verdades emergem devido a ocupação de duas posições-sujeito também distintas. Para Rogério, que ocupava a posição-sujeito interno, a verdade sobre o médico e o tratamento se construía a partir das práticas instauradas sobre seu próprio corpo e discursos. Para a família, que acreditava estar fazendo o melhor para o seu ente, a verdade se construía por meio de discursos socialmente convencionais, que levavam em consideração os títulos, as publicações e os discursos que circulavam, colocando o discurso médico em um lugar autorizado para tratar o paciente, da maneira que fosse necessário. Nesse ínterim, percebemos uma vez mais a relatividade da “verdade” em função da posição que o sujeito ocupa.