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CAPÍTULO II – PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO: TOMADA DE UMA POSIÇÃO-

2.2. RELATO AUTOBIOGRÁFICO E FUNÇÃO AUTOR

Escrevo só com a mão, Mas o pé quer sem cessar escrever também. Sólido, livre e corajoso quer fazer isso, Ora através dos campos, ora sobre o papel.

(Nietzsche (1976), In: A gaia da ciência))

Tomaremos como referencial teórico acerca da autobiografia os postulados de Pierre Bourdieu (2000), que coadunam com as formulações teóricas de Foucault (1979) no que concerne à função autor. Conforme Bourdieu (2000),

o relato, seja ele biográfico ou autobiográfico, como o do investigado que “se entrega” a um investigador, propõe acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em sua estrita sucessão cronológica, tendem ou pretendem organizar-se em seqüências ordenadas segundo relações inteligíveis. O sujeito e o objeto da biografia têm de certa forma o mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existência narrada. (BOURDIEU, 2000, p. 184) (grifos do autor)

O relato autobiográfico tem por princípio norteador uma tentativa de dar sentido, de estabelecer uma lógica, ao mesmo tempo em que produzem um efeito de retrospectiva e prospectiva, uma constância, estabelecendo relações entre os estados sucessivos, assim formulados como etapas de um desenvolvimento necessário. Para Bourdieu, há um esforço para selecionar acontecimentos significativos, produzindo entre eles certa coerência, levando a uma criação de sentido, numa exaustiva busca da ‘verdade’ dos fatos ocorridos: “Produzir uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência (...). (BOURDIEU , 2000,p. 185)

Faz-se necessário ressaltar que, conforme Bourdieu, a realidade é descontínua, não pode ser totalmente apreendida a partir da escrita, contudo, embora se trate de uma realidade fragmentada, o sujeito, ao escrever sobre si, constitui-se identitária e subjetivamente a partir de seus enunciados. Nesse sentido, o sujeito discursivo é incapaz de justapor elementos discursivos de acordo com sua vontade e razão, incapaz, também, de apreender acontecimentos factuais; pois, na emergência dos enunciados há o imprevisto, o desproposital, o aleatório e, assim, a

identidade prática somente se entrega à intuição na inesgotável série de suas manifestações sucessivas, de modo que a única maneira de apreendê-la como tal consiste talvez em tentar recuperá-la na unidade de um relato totalizante (como autorizam a fazê-lo as diferentes formas, mais ou menos institucionalizadas, do “falar de si”, confidência, etc.). (BOURDIEU , 2000, p. 186) (grifos do autor)

Nessa perspectiva, podemos pensar que, nos grupos sociais, há uma tentativa de identificar como ‘normal’ uma identidade entendida como constante em si mesma, então, o sujeito seria um ser previsível, pontual, com uma história bem construída a partir de uma linearidade, o que possibilitaria uma totalização e uma unificação do seu eu.

Paremos para pensar por alguns momentos: é possível uma unificação do eu? O sujeito é sempre previsível? As ações são simetricamente calculadas? O sujeito tem controle sobre seus escritos, sobre seus dizeres? Há uma maneira de tornar a história de um sujeito um acontecimento factual e retomá-lo por meio dos discursos?

Conforme Foucault (1986), sabe-se que não se trata de colocar tudo num mesmo plano, não se trata de pontuar um acontecimento factual tomando-o como verdade,

mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos de acontecimentos diferentes que não têm o mesmo alcance, a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos. O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. (FOUCAULT, 1986, p. 5)

É necessário, portanto, se livrar do sujeito fundante e alcançar uma análise que aponte “a constituição do sujeito na trama histórica” (FOUCAULT, op. cit., p. 7). Deve-se considerar, então, uma “história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história”. (FOUCAULT, op. cit., p. 7).

Nesse sentido, deve-se pensar em uma destituição de designadores rígidos, que, conforme aponta Bourdieu (2000), no meio social, levam o sujeito à ilusão de totalização do eu. Dentre os designadores rígidos, o nome próprio é o de maior impacto, pois “é a forma por excelência da imposição arbitrária que operam os ritos de instituição: a nominação e classificação introduzem divisões nítidas, absolutas, indiferentes às particularidades circunstanciais e aos acidentes individuais, no fluxo das realidades biológicas e sociais” (BOURDIEU , 2000, p. 184). Contudo, o nome próprio não pode veicular nenhuma

informação e nem tão pouco descrever nenhuma característica sobre aquilo que nomeia, uma vez que o que ele designa são conjuntos de propriedades biológicas e sociais, em constantes movências. Assim, o nome próprio apenas designaria a identidade de um sujeito, como individualidade socialmente constituída, por meio de uma abstração desfundada. Nessa perspectiva, “o nome próprio é o suporte daquilo que chamamos de estado civil, isto é, desse conjunto de propriedades ligadas à pessoa às quais a lei civil associa efeitos jurídicos e que instituem, sob a aparência de constatá-las, as certidões de estado civil” (BOURDIEU , op. cit., p. 188).

Pensando ainda na impossibilidade de se tratar o nome próprio como um designador identitário rígido, deter-nos-emos, nesse momento, especificamente no que se refere à produção escrita. Segundo Foucault (1992), embora o nome do autor de um dado texto seja um nome próprio, não está atrelado propriamente a um indivíduo (sujeito empírico), do qual o discurso emergiu, mas a um discurso com estatuto específico, numa dada cultura e história, que o torna provido de uma atribuição de autoria. Portanto, a noção de autoria é uma função discursiva, característica da rede histórica e social de emergência dos enunciados.

Se por um lado, a função-autor não é o resultado da atribuição de um discurso a um indivíduo, mas de uma operação complexa que tem por efeito um ser constituído a partir de regras determinadas, por outro lado, o autor, não é apenas o efeito de uma construção, mas é, também, definido pelos próprios textos que apontam para uma pluralidade, ou seja, para várias posições-sujeito. Pensar na função-autor, portanto, leva a uma observação apurada acerca do sujeito e de sua constituição, considerando a função-autor como uma particularização da função sujeito.

Pensando nessa discussão sobre autobiografia e função autor, precisamos reiterar que pretendemos considerar o corpus de análise não como uma escrita autobiográfica, uma vez que os escritos de Bourdieu (2000) permitem-nos pensar em algo distinto do que se costuma tratar como autobiografia, pois aborda o ato de escrever como uma tentativa de retomar ou de reconstruir acontecimentos vividos. Assim, nos deslocaremos do que se costuma chamar de autobiografia e trataremos o corpus como uma escrita de si (conforme Foucault, 1983) – teoria essa que será discutida no próximo tópico.