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Lucas e os historiadores greco-romanos

2. O ambiente cultural de Lucas: a importância da cultura da Hélade

3.1 Lucas e os historiadores greco-romanos

Desde os primórdios da humanidade que o homem foi deixando registo de alguns dos feitos mais notáveis que vivenciou. O registo da História é uma preocupação que tem estado no horizonte dos homens de diferentes sociedades e épocas, desde que lhes conhecemos capacidade de registar. O Homem começa a despertar a curiosidade de questionar o passado, de viver o presente, de guardar memórias e de projectar o futuro317. No caso em apreço, é imprescindível perceber se Lucas comunga dos mesmos ideais dos historiadores do seu tempo. Será que Lucas tinha a intenção de escrever uma História das Origens Cristãs? Teria ele consciência do que trabalho que estava a iniciar? Analisar a historiografia subjacente aos Actos também pressupõe o estudo da História que os Gregos e Romanos produziram, porque, em bom rigor, Lucas segue os mesmos princípios da historiografia helenística.

Lucas, o alegado autor do livro dos Actos dos Apóstolos, manifesta a preocupação de querer comunicar o seu conhecimento sobre o modus operandi das comunidades cristãs primitivas. Além da estruturação da obra, Lucas também teve em conta outros vectores, como a determinação e a ordenação dos factos. Os prólogos do Evangelho (Lc. 1, 1-4) e dos Actos dos Apóstolos (Act. 1, 1-3) revelam a faceta de um autor que estava preocupado em transmitir uma verdade, a partir da investigação e da recolha de dados. Como vimos, as duas obras têm o objectivo de instruir Teófilo na doutrina cristã (Lc. 1, 4). Este aspecto da catequização de Teófilo está mais visível no Evangelho do que nos Actos. Para surpresa de quem analisa o prólogo dos dois textos, não deixa de ser estranho que no prólogo dos Actos o autor não apresente um resumo (um moderno abstract) do livro. Resta saber por que motivo não facultou a Teófilo um sumário do conteúdo da obra318. A preocupação com a verdade também está bem patente no Evangelho de João. Nos últimos versículos desse texto (Jo. 21, 24), o autor refere que ele é o «discípulo que dá testemunho destas coisas [acontecimentos da vida de Jesus] e que as escreveu». João valoriza a importância do seu testemunho e a autenticidade das suas palavras. A ideia é transmitir confiança ao leitor. Trata-se do mesmo compromisso com a verdade que também Heródoto tinha já procurado

317 Cf. MORLEY, Neville, Writing Ancient History, London, Duckworth, 1999, p. 16.

318 Sobre a definição do tema das obras na historiografia greco-romana, cf. ALEXANDER, Loveday,

«The preface to Acts and the historians» in WHITERINGTON, Ben III (ed.), ob.cit., pp. 92-95. Loveday Alexander aponta como exemplos os prefácios das Antiguidades Judaicas (AJ 1.1.1.) e da Guerra dos

147 evidenciar no prefácio das Histórias: «Para que os feitos dos homens não se desvaneçam com o tempo nem fiquem sem renome as empresas, realizadas quer pelos Helenos quer pelos Bárbaros»319.

A ideia de Heródoto, considerado o pai da História por Cícero, era lutar contra o esquecimento e perpetuar os acontecimentos vivenciados pelos protagonistas das suas Histórias. Etimologicamente a palavra «História» (ἱστορία) significa «investigação». A pessoa que procura fazer História, i.e., testemunhar alguma coisa ou emitir um juízo sobre um caso em análise, denomina-se de «historiador» (ἱστορ)320. Fazendo um paralelismo com a obra de Lucas, encontramos exactamente as mesmas ideias: preocupação com a prova (αὐτοψῐ́ᾱ), a conformidade dos factos (ἀκριβής) e a exclusão de elementos que não foram comprovados. No fundo, Heródoto vem alertar na sua obra para que a história seja rigorosa e criteriosa. A análise das fontes deve passar por um crivo bem apertado, pois só assim é que se pode garantir a qualidade do trabalho do historiador. Heródoto estava preocupado com a decadência da tradição oral e a disseminação de ideias que não correspondiam à verdade. Daí a necessidade de historiar, isto é, de conjecturar, de testemunhar e, sobretudo, de investigar. É uma luta contra o esquecimento, uma ars memoriae321. Para estes autores, é através da

argumentação e sua narração factualmente sustentada (διήγησις) que se diminui a credibilidade do mito. Os relatos mais credíveis decorrem da observação directa, mas isso nem sempre é possível. O historiador é influenciado pelas ideias do seu tempo. A sua personalidade é moldada a partir das experiências que vive, do que ouve e do que lê. Dada a impossibilidade de presenciar todos os acontecimentos, o historiador deve investigar, procurar documentação, pesar os dados e averiguar a sua pertinência para a investigação em curso322.

Do pioneirismo de Heródoto nas concepções de História e de como ela deve ser investigada e escrita, começam a nascer as noções de heurística e hermenêutica, ou seja, a descoberta das fontes e a crítica dos métodos, respectivamente. Com Heródoto, afirma-se o papel da escrita da História, da racionalidade e consequente cientificidade.

319 Cf. HDT. 1.1.1. Tradução de José Ribeiro Ferreira e Maria de Fátima Silva.

320 Paulo é o único autor do Novo Testamento a empregar aquele vocábulo. O apóstolo pretende

«inquirir» (ἱστορέω). Cf. Gal. 1, 18. Sobre este assunto, cf. BISSELL, Tom, ob.cit., p. 96 e o comentário de Frederico Lourenço. Cf. LOURENÇO, Frederico, Bíblia - Actos […], nota 1.18.

321 Cf. CATROGA, Fernando, História, Memória e Historiografia, Coimbra, Quarteto, 2001, pp. 37-40. 322 Cf. HARTOG, François, Le miroir d'Hérodote, Paris, Gallimard, 2001, pp. 396-411.

148 Para Fernando Catroga, as palavras de Heródoto nas Histórias constituem uma espécie de profissão de fé, de lema do ofício de historiador323.

Também Tucídides na História da Guerra do Peloponeso demonstrava a mesma preocupação com a verdade (ἀλήθεια)324 e o rigor históricos. Considera o historiador que são causas humanas que estão na origem da guerra. Uma das ideias do autor é também separar a História do Mito, ou seja, dar à História uma narrativa com cunho de cientificidade e de rigor, deixando de fora o senso-comum325. Tucídides defendia a importância de se fazer um levantamento dos dados, um inquérito. A ideia de Tucídides é que a História se aproxime mais do conhecimento (ἐπιστήμη) do que da opinião (δόξα). Segundo Tucídides, a História deve ser imparcial, o historiador não deve tomar partidos326. Tal como Heródoto, Tucídides defende uma investigação cuidada, visto que «a maior parte dos homens não se dá ao trabalho de investigar e de preferência se volta para aquilo que está mais à mão»327.

Heródoto e Tucídides têm uma finalidade em comum: escrever para sempre (ad aeternum)328. No entanto, como sublinhou Silvio Cataldi, Tucídides e Heródoto tinham técnicas de redacção e de investigação bastante distintas: Tucídides retirava da sua pesquisa os dados que careciam de comprovação, ao passo que Heródoto não anulava esses dados, pois entendia que podiam ser bastantes úteis à sua investigação. Para Cataldi, o que está em jogo no pensamento de Tucídides é a utilidade da verdade329.

323 Cf. CATROGA, Fernando, Os Passos do Homem como Restolho do Tempo - Memória e Fim do Fim

da História, Coimbra, Almedina, 2013, p. 62. Para uma síntese destas matérias, ver pp. 58-66.

324 Cf. CANFORA, Luciano, «Scrivere la storia in Grecia e a Roma» in UGLIONE, Renato (coord.),

Scrivere la storia nel mondo antico. Atti del convegno nazionale di studi, Torino, 3/4 maggio 2004,

Associazione Italiana di Cultura Clássica, Alessandria, Edizione dell' Orso, 2005, pp. 35-36.

325 Cf. SAÏD, Suzanne, «Myth and Historiography» in MARINCOLA, John (ed.) A companion to Greek

and Roman Historiography, vol. 1, Oxford, Blackwell, 2006, pp. 76-88.

326 Cf. THUC. 1.20.2. 327 Cf. THUC. 1.20.2-3.

328 Cf. HDT. 1.1.1: «Para que os feitos do homem não se desvaneçam com o tempo». Tradução de José

Ribeiro Ferreira e Maria de Fátima Silva. Cf. THUC. 1.22.4: «O que escrevi não foi concebido para ganhar prémios ao ser ouvido de momento, mas como um legado para sempre». Tradução de Raul Rosado Fernandes e Maria Gabriela P. Granwehr.

329 Cf. CATALIDI, Silvio, «L' utile verità. Tucidide e il metodo storico» in UGLIONE, Renato (coord.),

ob.cit., pp. 55-57 e 70-73. No entender de Cataldi, a verdade de Tucídides é uma «falsa verdade» porque

o autor tem em mente a narração dos acontecimentos de acordo com os seus critérios. Isto é, é uma História que está dependente de uma «agenda política» que impede o leitor de conhecer verdadeiramente o desfecho da história, p. 73. Segundo José Pedro Serra, Heródoto não estava preocupado com a conexão dos factos. Esta não era a sua primeira intenção. O objectivo de Heródoto, ao contrário de Tucídides, era engradecer e imortalizar os acontecimentos. Heródoto tem um «olhar marcadamente retrospectivo». Cf. SERRA, José Pedro, "Tempo e História na Grécia Antiga", Revista Portuguesa de Ciência das Religiões, n.º 1, ano 1, 2002, pp. 71-72. Posição bem diferente tem Emily Baragwanath acerca da retrospectividade

149 Para perpetuar o passado, é preciso convencer o leitor dos feitos dos homens e da sua exemplaridade. Do ponto de vista de Tucídides, a História assenta não só na importância dos exemplos dos protagonistas, mas também no convencimento. É fundamental que o público-alvo da obra acredite na narrativa.

Outro historiador do mundo clássico, que muito contribuiu para a valorização da História enquanto disciplina construtora do conhecimento e, por conseguinte, da ciência, foi Tito Lívio. O objecto central da obra de Tito Lívio é a História de Roma (Ab Vrbe Condita ou Desde a Fundação da Cidade). Para Tito Lívio, a História deve ser sobretudo pragmática e ética. Este historiador fala na restauração dos grandes valores romanos. A história que Tito Lívio pretende escrever é para exaltar o povo romano, as suas virtudes e qualidades, daí a necessidade de remontar às origens. Para Tito Lívio, a História de Roma tem de abarcar todos os aspectos da vida romana, não podendo ser uma mera descrição dos acontecimentos. É preciso ter uma visão global330.

Na sua essência, a cultura romana é pensada historicamente. Mais importante do que a referência ao tempo em que se consumaram os factos (in illo tempore), importa saber o que aconteceu historicamente. A cultura romana dá, portanto, muita importância à memória. A historiografia romana é por isso feita de exemplos (exempla) a seguir ou não. Na verdade, o mesmo sucede com a historiografia grega. Estes aspectos da exemplaridade dos protagonistas da História desaguarão no cristianismo, em que os autores neo-testamentários, à semelhança dos seus congéneres clássicos, destacarão os feitos dos protagonistas, a sua coragem e a sua valentia331.

Segundo Eve-Marie Becker, o cristianismo partilha alguns aspectos da praxis historiográfica romana, nomeadamente no papel desempenhado pela memória. Tal como os Romanos, os cristãos pretendem buscar a sua identidade nos antepassados judaicos. Outra semelhança entre a cultura romana e cristã é a valorização dos ritos e a

da historigrafia de Heródoto. Cf. BARAGWANATH, Emily, «Herodotus and the avoidance of hindsight»

in POWELL, Anton (ed.), Hindsight in Greek and Roman History, Swansea, The Classical Press of

Wales, 2013, pp. 25-48.

330 Cf. LIV. AUC, 3-13. No parágrafo 3, Tito Lívio realça a universalidade da história romana: Vtcumque

erit, iuuabit tamen rerum gestarum memoriae principis terrarum populi pro uirili parte et impsum consuluisse. Sobre este assunto, ver GARRAFFONI, Renata Senna, Historiografia: Salústio, Tito Lívio e Tácito, Campinas, UNICAMP, 2016, pp. 74-77.

331 Cf. CATROGA, Fernando, Os passos […], p. 65. Sobre a importância da memória na cultura romana,

cf. TIMPE, Dieter, «Memoria and Historiography in Rome» in MARINCOLA, John, Greek and Roman

Historiography, Oxford, Oxford University Press, 2011, pp. 150-175. Para a história grega, cf. SERRA,

José Pedro, "Pedagogia e Exemplo na Historiografia Grega, Euphrosyne, n.º XIV, 1986, pp. 53-76. Para o Cristianismo, ver MARGUERAT, Daniel, La première [...], pp. 28-29.

150 sua transmissão às gerações vindouras. Romanos e cristãos vêem a memória como um elemento unificador da sociedade. É a partir da lembrança dos feitos do passado que as culturas romana e judaico-cristã definem a sua concepção de História332. Em suma, a historiografia greco-romana caracterizava-se pela apresentação de um relato claro e convincente, pela introdução de elementos geográficos, pela procura da verdade e do rigor histórico e ainda pela importância conferida ao testemunho333. Será a partir deste arquétipo que Lucas redigirá o livro dos Actos dos Apóstolos.

3.2 Lucas e o nascimento da historiografia cristã. Lucas historiador, hagiógrafo ou