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2. O ambiente cultural de Lucas: a importância da cultura da Hélade

2.2 Lucas e a Septuaginta

Lucas conhece relativamente bem a tradução grega da Bíblia. O autor dos Actos e do terceiro evangelho domina com alguma destreza os textos veterotestamentários. A Septuaginta constitui, em nosso entender, uma das empresas mais revolucionárias que a Antiguidade conheceu. Não se trata de uma tradução ipsis uerbis dos textos do Antigo Testamento, mas sim de uma hermenêutica das escrituras hebreo-aramaicas e, portanto, de uma reinterpretação. Ou seja, houve uma releitura a partir da óptica e do pensamento grego. Com a tradução dos LXX, as Escrituras passam a ser interpretadas com outra terminologia e através de conceitos tipicamente gregos. Graças ao contacto com a cultura grega, os trabalhos de exegese dos autores começam a denotar uma certa presença de elementos da retórica e filosofia helenísticas274. O texto tornava-se mais

claro no novo enquadramento sócio-político promovido pelo helenismo e a audiência compreendia melhor o conteúdo.

O trabalho de tradução foi elaborado durante o reinado de Ptolemeu II Filadelfo, rei da cidade de Alexandria, cerca de 265 a.C. Do ponto de vista cultural, a cidade de Alexandria era um pólo vital para o florescimento do helenismo. Era aqui que residia a mais expressiva comunidade judaica, cujo idioma principal era o grego. A comunidade não só falava grego, como adoptou um estilo de vida que em muito se assemelhava aos dos Gregos. Segundo uma das tradições conhecidas, com o intuito de não perderem o contacto com os textos sagrados, visto que muitos deles já tinham perdido o contacto com a língua materna, o rei do Egipto terá ordenado a um conjunto de 70 homens que fizessem a tradução integral dos textos veterotestamentários. Por tudo aquilo que referimos, já se pode ter uma ideia da dimensão do projecto e da forma como foi acolhido nas comunidades judaicas, nomeadamente em Alexandria e em Antioquia da Síria275. Estas comunidades helenizaram-se culturalmente, mas continuaram a adorar o

274 Cf. NEVES, Joaquim Carreira das, O que é […], pp. 44-45.

275 Cf. RODRIGUES, Nuno Simões, «Poética» […], pp. 104-106 e COHEN, Nathalie, Une étrange

rencontre: juifs, grecs et romains, Paris, Cerf, 2017, pp. 36-43. Sobre a importância da tradução da LXX

para os judeus da diáspora nas comunidades de Antioquia e Alexandria, cf. PERROT, Charles, «La lecture de la Bible dans la diaspora hellénistique» in KUNTZMANN, R. e SCHOLOSSER, J. (eds.),

Études sur le judaïsme hellénistique, Paris, Éditions du Cerf, 1984, pp. 109-132 e JAEGER, Werner, Cristianismo […], p. 19. Na opinião de Delfim Leão, a questão da tradução dos LXX precisa de ser

revista. Cf. LEÃO, Delfim F., A globalização no mundo antigo: do polites ao kosmopolites, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, pp. 123-124.

133 seu Deus. Para Nathalie Cohen, o grego acabou por se transformar na língua sagrada dos Judeus e a tradução dos LXX acabou não por ser uma simples versão, mas sim uma «traição», visto que, de acordo com a autora, o texto traduzido perdeu o seu sabor semita original276. No entender da autora, é como se o texto tivesse perdido todo o seu encanto, porque com o impacte do helenismo, os leitores judeus encontrariam outro tipo de conceitos e de terminologia, como adiante veremos.

No texto dos Actos, Lucas cita diversos autores do Antigo Testamento através da versão dos LXX. Em termos de critério de citação, Lucas nem sempre transcreve o passo correctamente e na maior parte dos casos parece que se trata de apenas uma mera alusão e não de uma transcrição integral. Lucas adapta a citação dos textos conforme as circunstâncias. Por exemplo, em Act. 2, 25-28, Lucas faz uma citação integral do Salmo 15 (Sl. 15, 8-11), mas em Act. 3, 22-23, a citação do passo que aí lemos do livro do Deuteronómio (Dt. 18, 15.19) parece mais ser uma alusão. Em termos gerais, as citações dos LXX verificam-se nos discursos dos protagonistas, nomeadamente nos de Pedro. Convém também não esquecer que a primeira parte do livro dos Actos (Act. 1-8) é redigida sob influência das ideias semitas. É na linguagem que se notam mais os traços semitizantes, nomeadamente na citação de textos do Antigo Testamento e na utilização de vocábulos que não têm qualquer correspondência no grego277. Há

concordâncias relativas entre os Actos e o texto dos LXX, mas é importante não perder de vista algumas partes em que o autor acaba por se desviar um pouco do sentido original. Segundo Perrot, mais de 90% das citações do Antigo Testamento que encontramos nos Actos dos Apóstolos provêm da Septuaginta278. Com a tradução para o grego, alguns termos e expressões do Antigo Testamento ganham uma nova roupagem: Elohim (םי ִּׁהל ֱא) tem o seu correspondente grego na palavra Theós (Θεός); Almah (ה ָמ ְל ַע) corresponde ao vocábulo grego Parthénos (Παρθένος)279. Estas alterações semânticas

vão originar alguma crispação na interpretação dos textos bíblicos280.

276 Cf. COHEN, Nathalie, ob.cit., pp. 49-63.

277 Segundo Max Wilcox, a última parte do livro dos Actos também apresenta alguns aspectos semitas. Cf.

WILCOX, M., «Semitisms in the New Testament» in TEMPORINI, Hildegard e HASSE, Wolfgang (eds.), Aufstieg un Niedergang der Römischen Welt, II-25.2 […], p. 983.

278 Cf. PERROT, Charles, «Los Hechos» […], pp. 478-480.

279 Para uma reflexão sobre estas matérias, cf. RAMOS, José Augusto, «Transmissão da cultura bíblica»

[…], pp. 200-205, especialmente pp. 202-203 e Idem, "A Bíblia Grega em Português", Cadmo, n.º 25, 2016, pp. 101-113.

280 Cf. DALMAIS, Irénée-Henri, «La Bible dans les premiers controverses entre juifs et chrétiens» in

134 A mesma opinião é partilhada por Claude Tresmontant, que apresenta o seguinte esquema para a tradução dos LXX:

① - A uma palavra hebraica corresponde uma palavra grega; ② - A uma palavra hebraica correspondem várias palavras gregas;

③ - A várias palavras hebraicas só se verifica correspondência numa palavra grega;

④ - Uma palavra hebraica não tem qualquer correspondência com outro vocábulo em grego.

Para Tresmontant, o grego dos LXX é um língua ritual, que foi adaptada ao contexto religioso dos Judeus. Parafraseando Richard Simon, o grego dos LXX é o grego da sinagoga, daí o esforço dos tradutores em conseguir encontrar palavras ou expressões familiares aos Judeus que, na sua maioria, já tinham perdido contacto com o hebraico e o aramaico281.

Além das citações de textos, há um episódio nos Actos que mostra a importância do grego e da tradução dos LXX. Referimo-nos à história do encontro entre Filipe e o eunuco da Etiópia (Act. 8, 26-40). Filipe recebeu instruções do Anjo do Senhor para tomar a estrada que descia de Jerusalém para Gaza. Será nesse troço que encontrará o eunuco etíope, que regressava de Jerusalém, depois de ter cumprido a sua peregrinação. Filipe toma assento na carruagem em que o eunuco etíope viaja e repara que ele segue a leitura de um trecho do livro de Isaías. Lucas refere, com precisão, qual era o passo da Escritura que o etíope estava a ler e cita-o integralmente (Is. 53, 7-8). Os versículos de Isaías aludem à profecia de Jesus como «servo sofredor» de Javé, mas o eunuco não é capaz de entender a densidade profética do que lê, precisando de alguém que explique o passo (Act. 8, 30-31). O que há de mais interessante neste texto não é tanto a mensagem subjacente ao passo de Isaías, mas sim o facto de, alegadamente, o eunuco estar a ler o texto na versão dos LXX, i.e. em grego. Isto significa que estamos perante uma personagem que domina o grego e intelectualmente formada no judaísmo. Mas o episódio também evidencia a importância dos LXX e a forma como o texto circularia no mundo antigo sob influência da Hélade282.

281 Cf. TRESMONTANT, Claude, Les Évangiles - Jean, Matthieu, Marc, Luc, Paris, François-Xavier de

Guibert, 2007, pp. 9-17, especialmente pp. 10-12.

282 Cf. HAMILTON, James R., "The Center of Biblical Theology in Acts: Deliverance and Damnation

135 De uma forma geral, podemos admitir que os LXX contribuíram para que os judeus da Diáspora não perdessem o contacto com o texto hebraico, permitindo-lhes continuar a ler as Escrituras, mas então num idioma que lhes era familiar: o grego283.