• Nenhum resultado encontrado

Lucy Mafra é a mulher-que-grita-rodopia-e-ca

“A Chegada”: do início de um espetáculo ao começo de uma história

2.6 Lucy Mafra é a mulher-que-grita-rodopia-e-ca

No curso ministrado por Amir Haddad em 1979 no Teatro dos Quatro, Lucy Mafra184 dramatizava a amada da música Coração materno, de Vicente Celestino. Nessa teatralização, a atriz gritava, rodopiava e se jogava no chão. Assim foi concebida a máscara/personagem a

mulher-que-grita-rodopia-e-cai. Da mesma forma que as outras máscaras, nas apresentações

de rua essa caracterização ganhava novos significados no contexto dos debates de caráter social. Enquanto Lucy Mafra realizava a dramatização, Amir Haddad contava ao público os possíveis motivos que levariam uma mulher a gritar, rodopiar e cair.

É importante lembrar que os temas abordados por Haddad com as

máscaras/personagens se modificavam de acordo com o ambiente. Como o público-alvo do

grupo era composto pelas classes menos favorecidas — segundo Lucy Mafra, o Tá na Rua

183 GOÉS, Lauro, op. cit., p. 37. 184

Desde 1976 Lucy Mafra realizava trabalhos paralelos com pequenas participações em programa televisivos. Manteve as participações em televisão e os trabalhos com o grupo até 2005, quando foi desligada da Rede Globo por causa de acusações de roubo. O caso não foi objetivamente esclarecido. A atriz se defendeu por meio de jornais, revistas e até em uma apresentação no Programa do Ratinho do SBT em 15 de novembro do mesmo ano. No outro dia o SBT fez uma proposta de trabalho para Lucy Mafra, que passou a trabalha nesta emissora.

89

transitava “sempre mais do centro para periferia”185, indo raramente à zona sul —, os temas geralmente estavam associados a problemas sociais enfrentados pela população que habitava bairros pobres. Mafra comentou, em entrevista a Lauro Góes, que “depende muito da classe, as coisas que eles colocam no número”186. Já a respeito da composição e apresentação dos quadros, a atriz enfatizou:

Aprendemos a ter cuidado em colocar qualquer dado, saber o que é um dado coletivo, o que é um dado individual, no sentido de como atua uma interferência tua como ator. Saber como é que você trabalha junto, como é que você interfere. Muitas vezes o que fazia a gente não trabalhar enquanto o outro trabalhava, era ter medo de interferir. Porque a gente não tinha o que somar. Quando entrava dava diferença.187

Nesse trecho a atriz procurou explicar a concepção de um processo de criação coletiva do grupo, utilizando um discurso reafirmado em várias entrevistas e publicações produzidas pelo Tá na Rua. Ao analisarmos o processo de construção e apresentação dos espetáculos da rua, observamos claramente que os debates eram encaminhados pelo interesse de alcançar um público-alvo, que era o objetivo de trabalho do grupo. Isso pressupõe uma delimitação de assuntos. Mas no momento em que os números, tanto os coletivos como os individuais — como o da mulher-que-grita-rodopia-e-cai — eram dramatizados e direcionados pela fala do narrador/apresentador, eles ganhavam outros contornos, transcendiam limites e criavam outros efeitos de sentido.

Ademais, devemos lembrar que, como as encenações eram narradas, a personagem não tinha possibilidade de “fala”; então, o ator estava condicionado a dramatizar da forma como era orientado por Amir Haddad. E mesmo as interferências do público no momento das apresentações aconteciam a partir do tema e das colocações sobre aquele assunto sugestionadas pelo apresentador/narrador.

A atriz se posicionava em consonância com a imagem de “teatro inovador”, que rompe com a estrutura do que o grupo considerava como “teatrão”. Lucy Mafra, que foi aluna de Haddad em 1979, participou do primeiro time do Tá na Rua, pautando-se nas concepções de

185 GOÉS, Lauro, op. cit., p. 37. 186 Idem, ibidem, p. 37.

90

teatro de seu professor. É importante esclarecer que não estou tentando qualificar a participação da atriz; a intenção aqui é analisar criticamente o discurso do grupo.

Na tentativa de fixar um marco de diferenciação, o grupo estabeleceu que tudo seria desenvolvido no calor das apresentações, mas isso não se efetivou na prática, mesmo porque, se assim fosse, o restante do grupo não teria nenhuma “voz” — no sentido de opinião — dentro do espetáculo, na medida em que apenas representava o debate direcionado por Haddad com o público. Portanto, é importante esclarecer que havia todo um trabalho de pré- preparação que se desdobrava em duas frentes: um levantamento sobre o local e a comunidade que seria visitada e os debates entre o grupo para selecionar os números e os temas que seriam abordados.

O trabalho do grupo não se iniciava e nem se encerrava no espetáculo em si. Incluía preparação anterior, apresentação do espetáculo e uma reflexão sobre as atividades desenvolvidas para subsidiar trabalhos futuros. Mas nesse processo não percebo o grupo com um trabalho que se insere no conceito de processo colaborativo, da forma como vê o teatrólogo Antônio Araújo:

Tal dinâmica, se fôssemos defini-la sucintamente, constitui-se numa metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, trabalhando sem hierarquias — ou com hierarquias móveis, a depender do momento do processo — e produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos.188

Com base nessa definição, verifico que, apesar do discurso de uma colaboração igualitária, na prática do Tá na Rua cada ator tinha sua participação, mas esta se consolidava em níveis diferentes de importância. É indiscutível que Amir Haddad tinha uma colocação central. A ocorrência dessa configuração interna de relações de poder não se revelava de forma autoritária, e nem sempre era consciente, sendo mais fruto da maior ou menor disponibilidade para ações práticas no grupo, com níveis diferentes de intensidade na colaboração para criação/elaboração cênica.

Nesse sentido, a participação de Lucy Mafra, como a de alguns outros que vieram do curso Teatro dos Quatro, esbarrava no rótulo de aluna. Não que isso impedisse o envolvimento da atriz; apenas estabelecia uma relação de respeito — talvez inconsciente —

188 ARAÚJO, Antônio. O processo colaborativo no Teatro da Vertigem. Disponível em:

91

ao conhecimento do professor Haddad e daqueles remanescentes e estudiosos do Grupo Niterói.