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“A Chegada”: do início de um espetáculo ao começo de uma história

2.4 Rosa Douat é a mulher-que-sofre

A mulher-que-sofre nasceu do trabalho desenvolvido no Teatro dos Quatro (1979), do qual Rosa Douat177 participou com Amir Haddad. Como já mencionado, Haddad ministrou um curso nesse espaço, onde conheceu alguns dos atores que posteriormente integraram o Tá na Rua.

176 Entrevista concedida a mim por Ana Carneiro em setembro de 2009.

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No curso eram realizadas dramatizações de músicas. Na encenação de Lama (Paulo Marques e Aylce Chaves), a atriz rolava no chão, representando o sofrimento cantado. A interpretação exagerada do sofrimento se tornou uma marca de Rosa Douat e fez nascer a

máscara da mulher-que-sofre.

O sofrimento interpretado pela atriz permitia ao apresentador/narrador, Amir Haddad, explorar várias questões, principalmente as relacionadas às mazelas sociais das comunidades visitadas, de uma maneira performática, ou seja, caricatural. Do artigo de Helena Carone sobre o Tá na Rua, que descreve a encenação dessa máscara, podemos extrair as perspectivas de teatro do próprio Haddad:

Rosa é a mulher-que-sofre. Amir repete a proposta de sugestão de temas e eles vêm: custo de vida, o INPS e por aí adiante. [...], todos sofrem junto com Rosa pelos motivos já ditos. Mas Amir grita, “Rosa morre todos os dias, mas Rosa renasce todos os dias;” e um popular, ao pé do ouvido da atriz, pede que ela “não morra, que seu trabalho é muito importante, que o brasileiro tem educação e que juntos todos podemos fazer alguma coisa”. 178

As críticas sociais colocam no centro do debate uma mulher, e não é por acaso. A escolha por uma mulher para representar o sofrimento agrega uma conotação de luta pela sobrevivência; mostra uma pessoa que sai do problema como fênix, renascida; desvela um contorno que ultrapassa a singularidade de uma mulher, elucidando uma luta que é de muitas mulheres.

Nesse ponto vejo a inserção de um debate de gênero, de uma luta pela equiparação de direitos entre homens e mulheres. Essa questão traz a necessidade de historicizar e perceber uma discussão que tem uma temporalidade. Vale lembrar que a década de 1970 foi impactada pelo movimento de contracultura, no sentido de quebra de paradigmas comportamentais, de defesa da liberdade para pensar e criar — uma luta que, segundo a historiadora Patrícia Marcondes de Barros, pode ser

exemplificada através de uma série de experiências, tais como: produção e difusão independente da informação escrita (livros, jornais, revistas e panfletos), de espetáculos musicais, teatrais, filmes, histórias em quadrinhos, como alternativa ao asfixiamento imposto pelo esquema burguês e empresarial e principalmente pelo regime militar. 179

178 CARONE, Helena. Tá na Rua. Revista Careta. Rio de Janeiro, p. 44-48, set. 1981.

179 BARROS, Patrícia Marcondes. A imprensa alternativa da contracultura no Brasil (1968-1974): alcances e

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A contracultura, identificada pela autora como um movimento que procura romper com os padrões de conduta até então estabelecidos na sociedade brasileira, instigou o que compreendo por lutas segmentadas, de setores específicos da sociedade, como é o caso do feminismo. A militante feminista e pesquisadora Vera Soares aponta que a noção de feminismo em debate na década de 1970

parte do princípio de que o feminismo é a ação política das mulheres. Engloba teoria, prática, ética e toma as mulheres como sujeitos históricos da transformação de sua própria condição social. Propõe que as mulheres partam para transformar a si mesmas e ao mundo. O feminismo se expressa em ações coletivas, individuais e existenciais, na arte, na teoria, na política.180

A máscara/personagem de Rosa Douat permite enxergar a ação da mulher e traz para a cena as críticas sociais nas quais estão embutidas reflexões sobre a luta de gêneros e sobre a participação da mulher na sociedade — temas discutidos desde o Niterói e que se tornaram novo ponto de pauta também no Tá na Rua. Apesar de essa máscara/personagem ter sido desempenhada por uma atriz que não fazia parte do Niterói, em grande medida, as questões trabalhadas neste grupo foram impulsionadoras de debates e elaborações cênicas do Tá na Rua durante os primeiros anos.

Outra questão que merece atenção é o encaminhamento da máscara/personagem que segue para um fim trágico, mas revive, assim como o mito da fênix, que renasce das cinzas. O renascer dá margem a uma ideia de teatro transformador. Essa análise remete novamente ao teatro de Brecht, que faz da cena um espaço de debate com perspectivas de mudança, e converge para uma visão teatral mergulhada em aspectos caricaturais, que procura incutir no público um riso consciente.

No livro produzido em 1983 pelo Tá na Rua é perceptível a ênfase dada a essa

máscara/personagem. Na seção que aborda os números do espetáculo as Brincadeiras, a

segunda máscara representada é a da mulher-que-sofre, com uma imagem que ocupa a metade da página 21 (figura 06) e comentários sobre ela.

180 SOARES, Vera. Muitas faces do feminismo no Brasil. Disponível em:

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Figura 06 – Imagem da máscara/personagem a mulher-que-sofre Fonte: Tá na Rua (1983, p. 21)

A importância analítica, tanto para o debate político de luta de gênero como para a representação de uma concepção teatral renovadora, da máscara da mulher-que-sofre — assim como das outras máscaras/personagens anteriormente analisadas — consiste no fato de ela configurar uma percepção de realidade que supera as características específicas pessoais. Rosa Douat, diferentemente de Artur Faria e Ana Carneiro, que participaram do Grupo Niterói, integrou-se ao Tá na Rua ainda na categoria de aprendiz, da mesma forma que os demais alunos de Amir Haddad, mas teve uma participação de destaque com a

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