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3 ENCRUZILHADAS: PRÁTICAS DE CURA, FESTA E RELIGIOSIDADE

3.6 O lugar dos curadores: encruzilhada

O terreiro de Santa Bárbara, fundado por Zé Pretinho, tornou-se uma referência para os povoados vizinhos, não apenas pelas práticas de cura operadas pela cabocla Arajó. Os ritos da pajelança estavam ligados à realização de festividades católicas que eram ocasião de encontro de pessoas que vinham de diferentes regiões. Os curadores ocupavam um lugar de encruzilhada no cotidiano das comunidades rurais, na medida em que oficiavam ritos que se 248 Ivone de Jesus Soares Rubim. Entrevista de 30 minutos concedida ao autor em 12/05/2013. Pinheiro-MA. 249 REIS, Waldemiro E. dos. Espiritismo e mediunismo no Maranhão. São Luís: [s.e.], década de 1950, p. 106.

aproximavam simultaneamente da religiosidade católica, das práticas de cura e das opções de lazer e diversão.

Algumas das comemorações públicas previamente definidas no calendário ritual desse barracão eram a festa de Santa Bárbara e a Festa do Divino Espírito Santo, devoções historicamente presentes na vida religiosa brasileira, cuja realização evidencia a interligação entre as festas de terreiro e as características de longa duração da experiência religiosa em nível nacional.

É importante destacar aqui a análise feita por Sérgio Figueiredo Ferretti acerca da Festa do Divino no contexto dos terreiros de mina no Maranhão, para enfatizar novamente o alcance social da pajelança no município de Pinheiro. Segundo esse autor, esse ritual é importante, entre muitas razões, por que reúne pessoas de fora do terreiro, constituindo uma abertura para a participação de simpatizantes e, possivelmente, futuros fiéis. Sua liturgia é direcionada para o incentivo à presença das crianças250. É possível inferir que a continuidade

das comunidades de terreiro era alimentada por essa abertura para outros segmentos sociais e para as novas gerações, em virtude de que essas festas proporcionavam o contato com os principais agentes desse culto e constituíam circunstâncias especiais onde a fama do pajé poderia circular, através do compartilhamento de experiências.

Entre os vídeos produzidos por membros do terreiro de Zé Pretinho no contexto do adoecimento que o levaria a deixar de praticar a pajelança está o registro de uma Festa do Divino, que auxilia na análise de como se dava essa festividade. A necessidade da filmagem desse festejo – algo que não era usual no cotidiano do terreiro – se configura pelo sentimento de saudosismo que então contagiava as lideranças emergentes da comunidade: era preciso registrar a última festa pública presidida por esse pajé. Segundo alguns, ele pressentia que seria a última por ele liderada. Era necessário realizar a festa uma vez mais, com todos os detalhes impressos na memória dos presentes. O vídeo mostra o cortejo dos impérios num chão de terra batida, acompanhado do toque de caixas, em contraste com a representação de luxo das crianças que assumiram naquela ocasião os papéis do imperador e sua corte251.

Outros testemunhos nos dão elementos para pensar a importância das festividades católicas promovidas por esse terreiro não apenas para o povoado onde se situava, mas para todo o conjunto da Chapada. João Raimundo Silva conviveu muitos anos com Zé de Nazaré, 250 FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Querebentã de Zomadonu. Etnografia da Casa das Minas. 3ª edição. Rio de Janeiro: Pallas, 2009, p. 182.

251 Império é o grupo de crianças que representa o imperador e a imperatriz e seus mordomos. Ao final de cada festa, esses cargos são simbolicamente entregues a outro grupo, que representará essas papeis no ano seguinte.

Caixas são os tambores utilizados na celebração do Divino Espírito Santo. FESTA de Santa Bárbara. Mato dos Brito, 2010. 1 hora e 13 minutos. Autoria desconhecida.

trabalhando como bandeireiro do Divino Espírito Santo, responsável por recolher oferendas dos devotos para realização do festejo.

[Quando] conheci ele tava novo, não sei nem com quantos anos, aí fui ser bandeireiro uns dez anos tirando joia. Bandeira-grande e caixeiras rodando no mundo. Aí nós saía tirava, andava um mês [...]. Cada uma mulher com uma caixa, três bandeiras mulher nova cada uma com uma bandeirinha e uma pra segurar o santo. Aí ia tirando joia, batendo caixa nas casas, aí saía rodava um mês no mundão, então chegava e fazia essa festa. No outro ano ia de novo [...] Saía aqui, rodava aqui Cerro, era Trenémba, Bacabal, Serraria, Pericumã dos Queirós, aí saía pra Paraíso, Taboqueiro, Santana dos Pretos, São Roque, eu tô lhe dizendo homem [...] do outro ano Passabem, Bem-posta, Mata, torava saía pra São Pedro, Chapadinha, São Joaquim, Abaixadinho, era sim senhor252.

A realização da festa de Santa Bárbara e da Festa do Divino representavam um momento ritual importante para todo o território da Chapada. Diante da ausência dos padres no cotidiano dos povoados, o terreiro de Zé Pretinho assumia o papel de promotor e reprodutor da religiosidade católica. De fato, todos os frequentadores de terreiro entrevistados se auto definiram como católicos, corroborando uma história de sincretização e reapropriação criativa presente desde o período colonial253.

A literatura a respeito dessa relação entre o catolicismo e os cultos mediúnicos afro- brasileiros é extensa. Segundo Nina Rodrigues, tratava-se da “ilusão da catequese”, ou seja, da justaposição de crenças católicas e africanas como uma tática acionada para garantir a manutenção de cultos costumeiros, ocultados pela invocação dos santos católicos. Ainda segundo Nina Rodrigues, esse externalismo era mais intenso no caso dos negros africanos, os quais não estariam em condições de compreender o monoteísmo do culto cristão, segundo a visão evolucionista da qual comungava. Os crioulos e mestiços, culturalmente mais próximos do Brasil do que da África, viviam essa imbricação de maneira diferenciada, como uma degeneração de crenças e práticas, como a perda da pureza religiosa que tomava então a forma de um catolicismo heterodoxo254.

Luiz Mott, em artigo sobre a perseguição inquisitorial à dança de Tunda, realizada por escravos na região de Minas Gerais, durante o século XVIII, resumiu a análise antropológica em dois eixos, já presentes na formulação de Nina Rodrigues apontada acima.

252 João Raimundo Silva, entrevista citada.

253 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. Op. cit.

254 RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935, p. 13. Cf. também MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: Entre a capela e o calundu. IN: NOVAIS, Fernando A.; SOUZA, Laura de Mello e. História da vida privada no Brasil (volume 1): Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 155-220.

O chamado “sincretismo religioso afro-brasileiro” tem sido um dos temas mais candentes na sociologia da religião, e sua explicação antropológica pode ser sumariamente resumida em dois níveis: 1) ao cultuar os santos católicos, os africanos estavam apenas iludindo os donos do poder e os catequistas, pois sua devoção dirigia-se não a Nossa Senhora ou a Santo Antônio, mas às divindades de seus ancestrais camuflados atrás das imagens dos brancos; 2) Os santos católicos foram incorporados ao panteão de origem, aumentando e intensificando a magia africana255.

Na perspectiva de Mott, a análise da dualidade das práticas afro religiosas oscila da perspectiva da resistência aos poderes instituídos, entre os quais figurava o catolicismo, até a ideia de uma incorporação dos dogmas cristãos, para potencializar os poderes místicos dos agentes que lideravam os cultos afro-religiosos.

As etnografias publicadas sobre a religiosidade afro-maranhense sugerem alguns matizes a essa bipolaridade, sobretudo quando tratam do perfil dos encantados presentes aos terreiros. Estes seres sobrenaturais são católicos fervorosos, participando de alguns rituais cristãos com mostras de grande devoção. Apesar do fato de que a adoção dessa fé foi utilizada como anteparo pelos escravizados para a manutenção de seus próprios cultos, a performance das entidades nos sugere algo mais do que um catolicismo instrumental. Não se trata de uma camada acessória, retirada assim que os olhares repressores estão ausentes, como se pode notar na descrição dos voduns da Casa das Minas, durante cerimônia católica.

Vi os voduns Alogue, Jotin, Lepon, Averequete, Abê e Ajogoroboçu, incorporados em suas velhas vodúnsis, cantando na língua deles, o jeje arcaico e intraduzível, ladainhas junto ao presépio e depois diante do altar dos santos católicos, [...], o que me autoriza dizer que eles se mostravam compenetrados e comovidos como um católico fervoroso em comunhão com os santos256.

Para Reginaldo Prandi, essa performance dos encantados no Maranhão distingue os cultos afro ali realizados dos de outras regiões do Brasil, e é sobretudo um indicativo da fé professada pelos dançantes dos terreiros.

As vodúnsis são católicas, como todo o povo da Mina do Maranhão e de estados vizinhos. Já não diria o mesmo de seguidores do tambor de mina de terreiros derivados das casas maranhenses, mas localizados em São Paulo ou em outras regiões onde um intenso processo de mudança cultural reorganiza os cultos afro- brasileiros, liberando-os de amarras que vêm de outras épocas e dotando-os de outras identidades, que retrabalham tradições e lhes emprestam novos sentidos257.

255 MOTT, L. Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro. In: MOTT, L. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988, p. 110.

256 FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: Edusp; Arché Editora, 2013, p. II. 257 Idem.

Essa íntima relação dos terreiros com as práticas devocionais do catolicismo popular, observada no Maranhão, foi enfatizada por diferentes autores258. A autodesignação como católicos foi de fato uma estratégia historicamente acionada pelos integrantes dessas práticas para obter um mínimo de aprovação da sociedade abrangente.

É uma inter-relação historicamente constituída, e não mera simulação. É certo que seu acionamento tem relação direta com a busca por aceitação social, mas a vivência dessa prática não pode ser dissociada do catolicismo. Por isso, o passado afro-religioso não existe para os frequentadores dos terreiros de pajelança, no sentido de que eles não o concebem dessa maneira. Perguntar sobre sua filiação religiosa chega mesmo a ser despropositado. Diz D. Nini, pajoa do bairro da Matriz: “Sou católica, o meu barracão é cheio de santos”. Seu Luís Pajé se posiciona da mesma forma e vai além: “Sou católico, fui [até] presidente da minha comunidade”, reforçando os laços, ainda que pretéritos, que o interligaram à própria organização em que se apoiam os padres e religiosos. Cecília Caridade, por sua vez, enfatizou essa filiação ao entremear o tempo inteiro seu relato com pequenas locuções devocionais: “Deus é pai, Nossa Senhora é mãe”. Não há, do ponto de vista deles, incongruência entre os cultos que praticam e a doutrina católica.

Essa íntima relação entre a pajelança e o catolicismo é produto de uma história que remete ao período colonial e que foi acentuada pela relativa ausência da Igreja Católica nos territórios rurais na primeira metade do século XX. Conforme vimos anteriormente, a grande extensão do território da prelazia e o número reduzido de religiosos colocava dificuldades para o aprofundamento da relação entre os eclesiásticos e os fiéis. Sobretudo na zona rural, a presença dos padres no cotidiano das comunidades era ocasional259. A maioria não se recorda daqueles que costumavam fazer as desobrigas anuais nesses territórios.

Penso que a possibilidade de reprodução das práticas de pajelança se beneficiava desse regime de indefinição. Seus ritos se entrecruzavam com aqueles do catolicismo popular e, na ausência de sacerdotes, os pajés oficiavam rituais que desempenhavam um papel importante na sociabilidade local, porque somavam à dimensão do sagrado a oportunidade de vivências lúdicas. A festa, na pajelança, não se dissociava da fé. A festa era vivida como componente da

258 FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Querebentã de Zomadonu. Op. cit.; LEAL, João. A festa maior dos

terreiros: Divino e Mina em São Luís. Revista Pós de Ciências Sociais. V. 11, n. 21, jan/jun. 2014, p. 105-126;

FERRETTI, M. Desceu na Guma. Op. cit.

259 Catarina Narni Pinheiro Martins, 73 anos, aposentada, ex-moradora da zona rural do município de Pinheiro. Entrevista concedida ao autor em 31/03/2013. Pinheiro-MA; Ignácia Vicência Sousa, 94 anos, entrevista de 1:30 minutos concedida ao autor em 02/06/2011. Pinheiro-MA; João de Deus Soares, entrevista citada.

própria religiosidade: “A pajelança era uma festa. O pessoal dizia ‘Vai ter uma pajelança’, e todo mundo ia”260

.

Esse regime de entrecruzamento ia de encontro ao projeto romanizador para o qual a própria instalação da prelazia viria a contribuir. O início da consolidação do catolicismo romano, com a instalação desse organismo eclesiástico a partir de 1946 possibilitaria a criação de uma nova legibilidade social para esse conjunto de práticas, particularmente àquelas designadas como pajelança. Considero que esse movimento era também o embrião de uma cristalização ou separação desses ritos, de sua categorização em separado do catolicismo.

260 Graça Leite, entrevista citada.

4 ESCONJUROS: HISTÓRIA DAS REPRESENTAÇÕES DA PAJELANÇA NA