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4 ESCONJUROS: HISTÓRIA DAS REPRESENTAÇÕES DA PAJELANÇA

4.4 Os anos 1980: exclusão simbólica da pajelança

No ano de 1988, foi publicado pela Secretaria de Estado da Educação em parceria com a prefeitura municipal o livro Pinheiro, princesa da Baixada321. O objetivo era fornecer a professores e estudantes os elementos básicos da história dessa cidade. Entre esses elementos estavam as características físico-geográficas, a história político-administrativa e um panorama da vida cultural.

O livro em questão se aproximava sobremaneira da perspectiva construída por Jerônimo de Viveiros décadas atrás, com a diferença de que avançava na compilação dos nomes dos administradores municipais até o período atual. A história do fenômeno religioso também era uma reprise dos Quadros. Há trechos bastante sugestivos de qual imagem oficial se buscava projetar: a imagem de uma cidade católica, sobre a qual são registrados detalhes acerca dos padres que por ali passaram, das datas oficiais de fundação da prelazia e do bispado, além de outros elementos diretamente ligados à história institucional da Igreja na região.

Nessa mesma publicação, faz-se referência de poucas linhas aos pajés e à pajelança, sob o tópico “aspectos curiosos”, menção tão pequena quanto reveladora de uma identidade que se quer negar, mas que, talvez por isso mesmo, seria impróprio não mencionar. Sobre os pajés, cito o seguinte trecho:

321 MARANHÃO, Secretaria de Educação & PINHEIRO, Secretaria Municipal de Educação. Pinheiro, Princesa

da Baixada. São Luís, 1988.

Dizem que currupira Iara é Mãe D’Água, aparece nos poços e fontes, quando cisma com alguém atira a flecha. Para retirá-la só o pajé, cruzando a pessoa que foi atingida pela mesma deixando o corpo fechado. Esse ritual é feito com defumadores para evitar a mãe d’água atirar a flecha novamente na pessoa322.

O ritual a que se refere o trecho acima, o encruzo, aparece deslocado da centralidade a ele atribuída pelos adeptos desse conjunto de crenças, conforme vimos anteriormente. A pajelança, da forma como é produzida por esse livro, resume-se a uma curiosidade, a um traço exótico do povo pinheirense.

Mas não é suficiente dizer que esse legado cultural é resumido em apenas poucas linhas. É preciso refletir sobre o estatuto que lhe é conferido, alocado na categoria de “aspectos curiosos”. Segundo Sérgio Ferretti, as crenças e práticas afro-maranhenses “são comumente consideradas crendices e superstições vulgares e atrasadas323”. Vistas dessa forma, elas só poderiam ocupar, na imagem criada sobre a cidade, um papel exótico e decorativo. O pajé é, nesse sentido, uma referência superficial a costumes arcaicos. Excetuando-se pequenas notas acerca do folclore e das lendas, ao falar sobre a religião e a religiosidade, é sempre à Igreja Católica que se faz referência. Essa construção da pajelança como crendice reafirma a proposição de que ela não comporia parte significativa da história da cidade, e, ao mesmo tempo, estabelece um controle simbólico, através de sua produção no terreno da superstição popular.

Quero designar essa perspectiva de produção da pajelança de inclusão excludente324. Acredito que ela se configuraria com mais clareza em obra publicada apenas um ano após o livro acima citado. Em 1989, em Bem-te-vi, bem te conto, Graça Leite reuniu uma grande diversidade de crônicas sobre a história de Pinheiro. Natural desse município, ela graduou-se em pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão. Foi professora primária, diretora, colaboradora frequente do periódico Cidade de Pinheiro, e atualmente integra a Academia Pinheirense de Letras, Artes e Ciências (APLAC). A pauta explorada bem como o tom de sua escrita foram diferentes do que até então fora produzido. A autora utilizou narrativa menos formal, recorrendo a tiradas cômicas, para retratar alguns temas consagrados e, principalmente, costumes e pessoas que teriam particularizado aquela cidade.

322 Idem, p. 65.

323 FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Querebentã de Zomadonu. Op. cit., p. 11.

324 Esta expressão é utilizada por Roberto Malighetti para refletir sobre as ações em defesa da titulação dos

territórios quilombolas no Maranhão. MALIGHETTI, Roberto. O quilombo de Frechal: identidade e trabalho de campo em uma comunidade brasileira de remanescentes de escravos. Brasília: Edições do Senado Federal, 2007.

A pajelança aparece inicialmente na crônica “Farmácias e remédios”, em que a autora apresenta fragmentos da biografia dos farmacêuticos que atuaram na cidade desde o início do século XX. Como já sabemos, o primeiro deles foi Zé Alvim, contemporâneo do pajé Hermógenes. Antes de falar sobre o “médico-pajé”, entretanto, Graça Leite descreveu os pajés Mogênio e Cecílio, considerados por ela como os de maior fama naquele período. Ao retratar Hermógenes, Graça Leite o construiu como um curandeiro rústico, cuja ação se baseava numa empiricidade cega. Segundo ela, Mogênio produzia uma ‘infusão polivalente’, aplicada indistintamente a qualquer mal.

Dizem que o Mogeno preparava uma só infusão e a distribuía, fosse qual fosse o mal. Enchia um panelão de barro com ervas e raízes, acrescentava vinho, ovo, canela, noz-moscada, e estava pronta a infusão polivalente que curava qualquer doença, comprovando assim, para a medicina, mais uma vez, a influência do psíquico sobre o orgânico325.

Para Graça Leite, as capacidades curativas de Hermógenes derivavam do valor medicinal de certos preparados tradicionalmente receitados, mas sobretudo da crença que era atribuída a ele pelos doentes. A eficácia do curador é apresentada como uma produção do tempo, daquilo em que era possível crer naquele momento.

Em outra crônica, em que discute “superstições e crendices”, a autora apresenta diversas prescrições e práticas curativas tradicionais e dá a esse conjunto de crenças um claro sentido temporal, relacionando seu desaparecimento à atuação educativa da prelazia.

Hoje, graças ao trabalho educativo desenvolvido pioneiramente pelos padres missionários do Sagrado Coração, através do Colégio Pinheirense e, posteriormente, por outros estabelecimentos de ensino, a mentalidade mais evoluída vai deixando para trás esse código de crendices, no qual se amparava a ingenuidade do pinheirense para curar doenças, evitar desgraças e atrair felicidades326.

Reencontramos aqui a centralidade da prelazia como ponto central na definição da história cultural da cidade, semelhante ao que observamos em outras obras. Para essa autora, a ação dos religiosos teria varrido da história crenças e práticas antes tradicionalmente aceitas, num longínquo passado ingênuo e inferior, menos ‘evoluído’. Note-se que, à diferença da década de 1950, a pajelança é descrita diretamente, é entronizada na cidadela da memória

325 LEITE, Graça. Bem-te-vi, bem te conto: crônicas pinheirenses. 2ª edição. São Luís: Estação Gráfica, 2007, p.

79.

326

LEITE, Graça. Bem-te-vi, bem te conto. Op. cit., especialmente p. 33.

municipal. Mas os termos dessa inclusão são bem específicos: ela é incluída como ingenuidade, primitividade, deslocando essas crenças e práticas para o terreno do passado. Um texto posterior dessa mesma escritora deixará esse posicionamento mais evidente.