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Lugar e lembrança como caminhos compositivos

2. SUPERFÍCIE: O DANÇARINO IMPLICADO NO CORPOMAPA

2.3 Lugar e lembrança como caminhos compositivos

Dos modos de funcionamentos da memória, constam, como já foi dito, a possibilidade de acionar planejamentos futuros e armazenamento de informações passadas. Sobre as informações passadas, há no campo da afetividade um segmento específico, capaz de configurar estados do corpo no presente a partir de episódios e situações que uma determinada pessoa vivenciou. Esse segmento chama-se lembrança. A lembrança pode ser reconstruída e recriada, na medida em que se presentificam fatos passados numa determinada narração, ou acessa-se a memória por algum motivo que remeteu a tal situação. A utilização dessas lembranças para fins criativos acessa uma camada autobiográfica do sujeito artista implicado em sua criação, já que a lembrança é singular àquele corpo que experienciou as situações lembradas. Sugerimos que essa lembrança pode ser, em alguns momentos, desencadeada diante da relação corpo-lugar numa situação criativa e, enquanto escolha compositiva, pode ser encaminhada como material compositivo a partir da percepção de partes de lugares que chamaremos de recortes30. Neste trecho da pesquisa, são utilizadas informações sobre a imagem mental perceptiva – os mapas mentais que o autor Damásio (2002) nos explica. É importante ressaltar que, nessa abordagem, a imagem se distingue daquilo que entendemos

por imagem visual fílmica ou fotográfica31.Esse autor quando se refere a imagens mentais está se referindo aos mapas criados na mente a partir das informações conjuntas advindas dos sentidos, com as portadas sensoriais (visão, audição, tato, olfato e paladar) que se conectam a informações internas, para criar estados corporais. Tais imagens não são apenas visuais e criam uma memória de experiências sensitivas que se constituem no aprendizado ao longo da vida de uma determinada pessoa.

Segundo Damásio (2002), a memória funciona no cruzamento de dois espaços – o espaço da imagem e o espaço dispositivo: o primeiro refere-se às informações sensoriais imediatas (que formam imagens mentais daquilo que está externo ao corpo) e o segundo às recordações como dispositivos de informações da experiência de um determinado sujeito. A memória é o que permite um sujeito planejar, já que localiza os fatos no tempo e direciona o futuro. A lembrança, ainda segundo Damásio (2002), é uma das operações da mente ligadas ao self de um indivíduo, e pode ser acionada através da memória autobiográfica. Dessa forma, sugere-se que a lembrança enquanto processo cognitivo pode agenciar desdobramentos criativos para o dançarino que compõe a partir de recortes de lugares distintos como caminho compositivo, segundo o que se entende enquanto corpomapa.

No entanto, nem sempre a informação de um lugar evoca uma lembrança em alguém. Se o lugar apresenta-se como algo muito incomum daquilo que já fora vivenciado por um sujeito, isso torna-se mais difícil. No entanto, quando isso ocorre, o corpo parece ser tomado por um estado específico que, para além da criação de movimentos dançados, cria sentidos compositivos que perpassam a mera forma de mover livremente. O corpo do dançarino parece ser capaz de criar modos de estar que são frutos dessa lembrança – como, por exemplo, um estado de euforia, ou de solidão, ou de infantilidade, ou de reflexão que toma uma forma de estar. É uma forma de leitura desses recortes do espaço conectada às próprias lembranças.

A sensação de ver uma grande janela e lembrar da janela da casa da minha avó, da qual eu sempre pulava para fugir quando era criança, é algo que faz sentido ao pensar nessas informações sobre lembrança e lugar. Eu leio essa janela grande a partir de uma lembrança. Portanto, é possível conectar as minhas experiências anteriores, sem perder de vista o que

31 A palavra imagem utilizada também como imagem corporal enquanto conceito do autor Shaun Gallagher (2005) se distingue dessa denominação aqui utilizada por Damásio. Para Damásio (2010) são imagens mentais que se configuram no cérebro a partir das experiências corporais em seus processos de mapeamentos sensório-motores; para Gallagher (2005), trata-se da imagem de si mesmo enquanto uma noção abstrata e intelectual de como perceber a si mesmo de modo consciente, a cada instante.

acontece com essa janela grande no presente. Porém, para Damásio (2002), não há exatamente uma fórmula consciente de acessar todos os aspectos da memória. A direção da lembrança pode ocorrer ou não diante de um determinado espaço. Segundo o autor,

Não estamos conscientes de quais memórias armazenamos e quais não armazenamos, de como armazenamos memórias, como as classificamos e organizamos, como interrelacionamos memórias de tipos sensoriais variados, de diferentes assuntos e de diferente importância emocional. Em geral, temos pouco controle direto sobre a força das memórias ou sobre a facilidade ou dificuldade com que elas serão recuperadas na evocação. Obviamente, temos todo tipo de intuições interessantes sobre o valor emocional, a robustez e a profundidade das memórias, mas não o conhecimento direto dos seus mecanismos. Dispomos de um sólido conjunto de pesquisas sobre os fatores que governam o aprendizado e a recuperação de memórias, assim como sobre os sistemas neurais necessários para sustentar e recuperar memórias. Mas o conhecimento direto, consciente, nós não temos. (DAMÁSIO, 2002, p. 290).

Assim, há uma sugestão de direcionamento da atenção sobre as lembranças para uma atividade artística e poética: a margem de precisão do que é lembrado é uma atividade também criativa, já que, para existir, a realidade passada precisa ser recriada junto ao contexto presente. O modo de conectar-se ao recorte espacial é uma ideia complexa, pois a atenção em nossas sensações de corpo é algo sempre dinâmico, como já vimos na ideia de atenção como orquestra. Assim também o espaço, em suas organizações no cotidiano, apresenta-se como uma sucessão de acontecimentos.

Ao realizar composições a partir e em recortes de espaços diferentes que possuem sentidos comuns (janelas diferentes, ladeiras diferentes, esquinas diferentes), parece que uma ideia sobre um determinado recorte instaura-se num tipo de armazenamento de informações no corpo que criam traços poéticos – e que podem vir a se repetir no momento em que o corpo esteja novamente em tal recorte.

Tomemos como exemplo a memória de um martelo. Não existe um lugar único em nosso cérebro onde encontraríamos um verbete intitulado martelo com uma clara definição dicionarizada dessa ferramenta. Em vez disso, os dados atuais indicam que existem vários registros em nosso cérebro que correspondem a diferentes aspectos de nossa interação passada com martelos: sua forma, o movimento típico que fazemos ao usá-los, a configuração e o movimento da mão necessários para manipular um martelo, o resultado da ação, a palavra que o designa em qualquer uma das muitas linguagens que conhecemos. Esses registros encontram-se dormentes, são dispositivos e implícitos, e se fundamentam em sítios neurais separados, localizados em córtices de ordem superior separados. Essa separação é imposta pela estrutura do cérebro e pela natureza física do nosso meio. Apreciar visualmente a forma de um martelo é diferente de apreciá-lo pelo tato; o padrão que empregamos para mover o martelo não pode ser armazenado no mesmo córtex que

armazena o padrão de seu movimento conforme o vemos; os fonemas com os quais produzimos a palavra martelo também não podem ser armazenados no mesmo lugar. (DAMÁSIO, 2002, p. 282).

Se tomarmos a explicação de Damásio (2002) sobre o martelo e substituirmos pela ideia de uma esquina, por exemplo, todas as esquinas já apresentarão uma ideia de esquina que conhecemos. Sabemos que o corpo realiza movimentos e modos de se relacionar com essa esquina, bem como os modos de acesso perceptivos daquela, durante a própria ação em percepção. O que propomos é observar com mais cuidado, mais de perto uma esquina, para ver que há especificidades em cada uma delas. O que essa esquina evoca enquanto lembrança aproxima-se das razões e afetos mais íntimos de cada pessoa e sua história de vida. Essa relação pode produzir poética em ações dançadas, onde provavelmente não se vê mais do que uma passagem corriqueira. O recorte da esquina para alguém que passa pode ser um modo de resignificar a mesma esquina de modo poético, num corpo que dança sem avisar que vai dançar, ao som da rua, ao ritmo do uso, ao calor do cotidiano das pessoas que ali passam. A escolha do recorte pode-se dar enquanto aquilo que se torna mais significativo para cada pessoa, ou seja, que esteja mais fácil de se aproximar de uma lembrança. Eu, enquanto soteropolitana, tenho ladeiras, janelas e escadarias em minhas recordações que são específicas da minha lembrança.

Pode fazer sentido quando, em uma dada situação, percebemos que alguns lugares afetam tanto nossas lembranças que parece que voltamos no tempo; ou mesmo, se lembramos de um lugar com seus detalhes, parece que esse lugar ainda existe, que é possível voltar lá algum dia, dada é a força como o construímos em nossa mente. Há um modo de remeter a lembranças e a mudanças de estados que elas podem suscitar, dada a força de suas experiências vividas por cada pessoa, constituindo suas memórias pessoais. As lembranças nos fazem redigir sobre acontecimentos, criar sobre o que já fora feito – lembrar é também criar, atualizar as experiências. Discutimos que as lembranças podem ser ignições compositivas para um dançarino diante de um lugar. Isso ocorre no ato da ação/percepção: a lembrança, por se tratar de algo autobiográfico, pode se configurar como parte de outras imagens de si mesmo nas quais estivemos em determinadas situações semelhantes.

Neste capítulo, o ponto de vista do corpo e seus processos perceptivos foram aprofundados para esclarecer uma das perspectivas do que se propõe enquanto corpomapa. Vimos o corpo na perspectiva das ciências cognitivas e, a partir dessa perspectiva,

descrevemos os processos perceptivos da atenção focalizada, da percepção/ação no ato da dança e a evidência das propriedades perceptivas durante a composição situada. Entendemos a imagem e o esquema corporal como a noção de si mesmo e a importância da propriocepção para a situação do dançarino compositor de si mesmo. Vimos, também, a lembrança como parte autobiográfica que pode operar nos processos de memória e fazer poético do dançarino. É um modo de pensar corpomapa pelo viés do corpo e sua cognição. Relembramos que o corpo opera em processos sociais que estão em conjunto com o indivíduo como um todo enquanto dança.

A lembrança pode ter uma função de expandir a noção de si mesmo, ao que nos remete Lepecki para o plano de composição do fantasma. Estaria, aqui, ligada ao plano da Superfície por se configurar em aspectos sensórios do dançarino, mas também nos conecta com uma história do dançarino que também carrega lembranças de sua experiência de vida. Seria então uma boa forma de ligação entre o plano de relação da Superfície e o plano de relação da Dimensão (que veremos a seguir), pois a lembrança é um seguimento que nos define também de forma circunstancial, é também plástica, ajuda na construção do entendimento de si mesmo do dançarino. No plano da Dimensão, o dançarino imbrica-se nas questões do lugar, expandindo a noção de si mesmo numa instância coletiva.

No próximo capítulo, analisaremos o corpomapa a partir dos estudos sobre os aspectos sociais para discutir os lugares escolhidos para dançar. Tais aspectos estão relacionados ao plano da Dimensão, pois implicam o dançarino como uma espécie de pertencimento temporário a um determinado contexto. Isso significa que o dançarino passa a lidar com relações humanas, hábitos, organizações que regem um determinado lugar. Nesse tipo de camada relacional, ele lida também com dimensões nas quais o seu corpo e a sua pessoa no mundo passam a criar relações humanas ao redor do seu fazer compositivo. O lugar apresenta- se enquanto suas demandas de questões sociais, sua grandeza paisagística, seu significado coletivo e político. O dançarino lida com especificidades que se inserem num contexto maior que apenas a sua corporalidade.

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