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Os portais sensitivos em estado de dança

2. SUPERFÍCIE: O DANÇARINO IMPLICADO NO CORPOMAPA

2.2 O olhar sobre si mesmo em composição

2.2.1 Os portais sensitivos em estado de dança

O sentido de mapeamento que está sendo discutido aqui, como já foi dito, é a ação em identificar o que se percebe de si mesmo e do entorno em tempo presente. Essa condição de mapeamento consolida o entendimento de corpomapa, uma vez que são modos de lidar com a percepção e o lugar num contexto maior, num tipo de composição em que se utiliza o próprio corpo em questão para se “ouvir” a relação corpo-lugar. Dessa forma, o que ocorre no corpo do dançarino são maneiras de se criar mapas que se entrecruzam nos sentidos cognitivos, sociais e compositivos. Damásio (2010) esclarece sobre a condição do cérebro de criar mapas:

O cérebro humano é um imitador de primeira água. Tudo o que se encontra no interior do cérebro – o corpo em si, claro está desde a pele às entranhas, bem como o mundo em seu redor, homem, mulher e criança, cães, gatos e lugares, calor e frio, texturas macias e ásperas, sons altos e baixos, o doce mel e o salgado peixe – é imitado no interior das redes cerebrais. Por outras palavras, o cérebro tem a capacidade de representar aspectos da estrutura de coisas e acontecimentos não- cerebrais, onde se incluem as ações levadas a cabo pelo nosso organismo e pelos seus componentes, tais como membros, órgãos do aparelho fonador, e assim por diante. (DAMÁSIO, 2010, p. 90 e 91).

Podemos pensar, então, que lugares diferentes dos quais costumamos estar apresentam novos dados de mapeamento, novas associações cerebrais. Refiro-me à uma especificidade de mapeamento na qual o corpo na dança se recoloca inclusive em relação ao que está mapeando – o que tem a ver com processos proprioceptivos específicos da atividade de dançar (seja com uma ênfase no movimento ou numa ação criativa correspondente a distintos estados corporais, etc.). Mais adiante, o mesmo autor trata da complexidade de como esse mapeamento ocorre:

Os mapas cerebrais não são estáticos como os da cartografia clássica. São voláteis, mudando constantemente de forma a refletir as alterações que têm lugar nos neurônios que os alimentam, os quais por sua vez refletem as mudanças no interior do nosso corpo e no mundo que nos rodeia. As alterações nos mapas cerebrais também refletem o fato de nós próprios nos encontrarmos em movimento constante. Aproximamo-nos ou afastamo-nos dos objetos; podemos tocar num e depois noutro; podemos saborear um vinho mas depois o sabor desaparece; escutamos uma música mas depois ela acaba; o nosso próprio corpo altera-se com emoções diferentes, a que se seguem diversos sentimentos. Todo o espetáculo posto à disposição do cérebro se modifica constantemente, de forma espontânea ou sob o controle das nossas

atividades. Os correspondentes mapas cerebrais mudam em consonância. (DAMÁSIO, 2010, p. 93).

Essas características do mapeamento do corpo são inerentes à condição de estar vivo e fazem muito sentido para quem lida com o corpo em situações de movimento como um todo. Artistas ou outros profissionais (dançarinos, atores, modelos, atletas, etc.) que lidam com seu próprio corpo enquanto foco de atenção parecem perceber com maior evidência que os humores, as disposições, as lembranças se configuram voláteis o tempo todo. O mapeamento ocorre através dos sentidos que Damásio (2010) denomina portadas sensoriais.

As portadas sensoriais, tão ignoradas, desempenham um papel essencial na definição da perspectiva em relação ao resto do mundo. Refiro-me a um efeito que todos sentimos na mente: ter um ponto de vista quanto ao que está a acontecer no exterior da mente. Não se trata de um mero ponto de visão, embora para a maioria dos seres humanos com visão ela de fato domine o funcionamento da mente. No entanto, dispomos também de um ponto de vista em relação aos objetos que tocamos, e até mesmo um ponto de vista para os objetos que sentimos no nosso próprio corpo – mais uma vez, o cotovelo e a sua dor, ou os nossos pés ao caminharmos na areia. (DAMÁSIO, 2010, p. 248).

Considera-se, então, que cada lugar possui uma configuração distinta no que concerne aos sons que ali circulam, à luminosidade que transita no espaço, aos cheiros possíveis, que num recorte do ambiente configuram um determinado potencial de lugar com suas características próprias. Faz-se interessante entender um pouco mais os processos específicos de cada portada no que se refere a uma percepção específica do lugar, um tipo de percepção ampliada que direciona a atenção a partir de um determinado sentido e aos aspectos do lugar que afetam esse sentido.

Assim, para a reflexão sobre a dança em locais escolhidos, interessa discutir que o conjunto dessas portadas sensoriais recebe informações que são processadas e direcionadas para uma composição, a qual consideramos situada no lugar. Interessa que essas informações sejam compartilháveis: quando o sino da Igreja da Vitória tocava no início do solo Ladeira de

Chuva, ao cair da tarde, havia uma inquietação do corpo que se associava a esse som. Quando

Anne Le Batard, da cia Ex-Nihilo (França), durante o filme da apresentação do trabalho

Trajets de Ville, trajets de vie (2005), apresentado na rua, faz uma pausa com braços para

cima exatamente no momento no qual o ônibus passa na sua frente, quem assiste a sua composição vê o ônibus em movimento juntamente com a sua pausa. É importante entender que quem dança altera também o lugar, que não há apenas uma passividade desse corpo em

ouvir, olhar, sem alterar aquilo que percebe. Tomemos como exemplo a obra da cia IDcore

Danseurs de surfaces (2006), em Paris, em que todos vestem uma roupa de limpeza (garis) na

rua e passam a realizar gestos dessa mesma limpeza na rua, com alguns desvios da ação. As pessoas que assistem ao trabalho, que são os transeuntes da rua, à primeira vista, não entendem muito bem o que está acontecendo, mas a percepção dessas pessoas é alterada diante da presença dos artistas em ação.

A pesquisadora em música Fátima Carneiro dos Santos, em seu livro Por uma escuta

nômade: a música dos sons da rua (2002), apresenta uma ideia de percepção auditiva na qual

chama a atenção sobre como o ato de perceber é ativo:

Mesmo com a decodificação de informações espaciais do ambiente, ouvir ainda é considerado um ato passivo. A acústica tradicional entende audição como um “modelo de transferência de energia”, lidando com o comportamento acústico como uma série de energia transferida da fonte para o receptor, tratando o som e, conseqüentemente, a acústica ambiental, como entidades físicas que podem ser estudadas, medidas e analisadas independentemente do ouvinte. (SANTOS, 2002, p. 33).

Consideremos que o entendimento de não passividade dos sentidos pode ser estendido para todos os outros, de modo que possamos considerar que os sentidos atuam em coatuação com o ambiente. Digamos que pelas portadas sensoriais compreendemos tacitamente como de forma dinâmica acentuando um sentido ou outro a depender da situação, a percepção é uma negociação continuada. É, de fato, nessas superfícies de trocas sensórias onde são operados em parte os mapeamentos cognitivos, é onde ocorre a tradução ação/percepção sujeito-mundo.

Essas informações são parte da especificidade da cognição entendida como corporificada, que transforma o ambiente através de suas ações, a um processo de codependência da mente com os aspectos do ambiente. Numa situação de composição no qual estejamos considerando as reflexões aqui desenvolvidas enquanto corpomapa, essa codependência é também o caminho pelo qual se fazem as leituras para a própria composição, ou seja, as informações do ambiente são “lidas” pelo dançarino enquanto informações sensitivas específicas. Mesmo que saibamos que elas atuam em conjunto, no ato de tomar nota das mesmas, listamos uma por vez ou evidenciamos, escolhemos prestar mais atenção mais em umas informações sensitivas que em outras. Essas escolhas também guiam, em certo sentido, a composição. Sabemos que as informações se dão ao mesmo tempo, mas o recorte de ações ou de se deixar guiar por uma informação ou outra é inerente ao corpo, por criar uma

auto conduta diante de tantas informações no mundo. Essa auto conduta diante de uma composição é algo estendido para a realidade da própria composição, que lida com as informações que operam em tempo presente nesse corpo que se relaciona com o lugar.

À primiera vista, num determinado lugar, o dançarino é bombardeado de informações distintas, como já discutimos sobre a orquestra da atenção. Podemos pensar que essa atenção é atravessada pelas informações das portadas sensoriais. Se, por exemplo, entro numa casa e pela portada sensorial olfativa mapeio um cheiro de sopa, são ativadas pela memória, ou mesmo pela identificação de que ali existe algo que modifica o estado de corpo para criação de uma ação ou um gesto. Digamos que, nessa mesma casa, a construção arquitetônica me faz identificar uma característica de altura, no qual o meu olhar alcança numa hiperextensão da cabeça, focando a atenção do olhar num movimento que demonstra essa altura interna da construção. Se a pessoa que mora nessa casa costuma deixar rastros no chão ou se move de forma rápida pela casa, ou fica mais no quarto que na sala, isso mapearia também na percepção dessa outra pessoa na sua temperatura ou no seu ritmo ao meu redor. Mas aqui são exemplos estanques, pois os sentidos não operam isolados, a atenção do corpo pode ser direcionada para uma determinada direção e fazer dar a ver, criar segmentos a partir do que se vê, ou o que se ouve ou o que se cheira, mas não opera internamente de modo isolado.

O entendimento do que Damásio (2010) denomina portadas sensoriais se faz importante, então, porque é o ponto de comunicação do corpo com o mundo externo, é onde se dá (por especificidades distintas) o processo de tradução corpo e lugar, onde se compartilha informações do plano da Superfície no corpomapa. Nos planos de Dimensão e Recorte, essas informações continuam ocorrendo, mas há um modo de pensar sobre os outros planos direcionados para uma outra natureza que são, respectivamente: social – que necessariamente envolve uma medida e um proceder de atitude entre o dançarino e os outros; e compositiva – que envolve os processos criativos da composição.

Destacamos que, quando o corpo se move na dança e propõe novos modos de equilíbrio (em menor ou maior grau), o modo de tradução das portadas sensoriais parece se modificar. Em primeira instância, o sistema vestibular, que se situa no labirinto (ouvido) e é responsável pela orientação espacial de uma pessoa no espaço, identifica uma mudança na configuração do equilíbrio do corpo no ato de como esse corpo se posiciona. Os movimentos da cabeça determinam constantes negociações internas dessa orientação no espaço e do equilíbrio de um indivíduo.

No meu caso, tenho um ouvido quase completamente surdo. Isso implica entender que a minha forma de equilíbrio no espaço cria outras adaptações em relação a um corpo que tenha os dois ouvidos funcionando. O espaço se torna, então, um apoio: pode ser que seja um modo de compensação para o conjunto de portadas sensoriais do meu corpo.

Segundo Damásio (2002), a memória proporciona a capacidade de um indivíduo planejar, pois trata-se de uma articulação de imagens do presente e do passado (específicas e gerais) para que se possa pensar adiante num determinado planejamento. Se a memória é evocada como possibilidade de armazenamento de informações de um dançarino diante de um espaço, o aguçamento dessa memória/planejamento pode, talvez, potencializar a composição que constitui dessa relação entre corpo e lugar. O dançarino estaria lidando com imagens que aquele lugar suscita, na sua sensação de estar, numa espécie de agenciamento de imagens passadas/presentes a cada encontro com um lugar diferente. Por exemplo, estar diante de uma ladeira me remete a uma série de lembranças sobre outras ladeiras em que já experienciei estar. Esses possíveis modos de “estar” do corpo nesses lugares podem agenciar assuntos sobre comportamentos e estados corporais possíveis quando se evidencia informações relacionadas ao lugar para a composição da dança.

As portadas sensoriais são as “portas” da extereocepção do corpo que dança. Os sentidos e o modo como temos a imagem mental (enquanto mapas cerebrais) de um gosto, um cheiro, ou algo que se configurou naquele instante pode contribuir para a imagem corporal (enquanto noção de si mesmo) no ato da composição. Os estados de corpo são frutos do mapeamento sensitivo que se dá na relação com o lugar do corpomapa. A dimensão da autopercepção pelo que se apresenta pelas portadas sensoriais de um mundo ao redor, interfere nos processamentos internos do corpo, na intereocepção e configuram todos juntos a propriocepção e a noção de si mesmo em corpomapa.

Até aqui, neste capítulo, esclarecemos as questões que envolvem o funcionamento sensório-motor do dançarino da composição situada, no que tange o processamento das informações do lugar. A atenção focalizada tende a permear a maioria da discussão, já que aparece como um fator que ajuda a convergir todos os outros processos numa mesma ação, que é a compositiva. Durante a ação/percepção, o dançarino tem uma imagem corporal de si mesmo em composição, e a atenção focalizada no corpo que está atravessado pelo lugar está imbuída pelo acontecimento no tempo presente. Esse atravessamento é o encontro compositivo, mas que precisa a todo tempo lidar com as mudanças entre ambos os focos – si

mesmo e lugar convergindo num mesmo “fio” de atenção. Durante esses processos do presente e da circunstância, ocorrem aspectos que são autobiográficos do dançarino e que também fazem parte dos seus traços poéticos que se configuram.

A relação entre quem dança e o lugar no qual dança pode também instigar a um desencadeamento de lembranças anteriores. Assim como num mapeamento cognitivo, há um processo de associações daquilo que desconhecemos à primeira vista, o lugar em seus aspectos sensórios pode desencadear a associação de lembranças. Veremos sobre a lembrança na próxima seção.

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