• Nenhum resultado encontrado

Um lugar para o questionamento e para a construção política: teoria e crítica

A renovação que o surgimento da categoria “gênero” proporcionou aos estudos feministas está relacionada principalmente à ênfase no caráter fundamentalmente social e relacional das diferenças entre aquilo que é considerado feminino e aquilo que é considerado masculino e, consequentemente, está ligada à refutação do determinismo biológico subjacente na utilização de termos como “sexo” e “diferença sexual”. Principalmente a partir da década de 1970, os estudos de gênero têm salientado a importância da rejeição de binarismos rígidos, hierárquicos e supostamente “naturais” como masculino e feminino, e a necessidade de promover a historicização desses termos, bem como dos estudos sobre essas temáticas.

Dentre as implicações que o termo “gênero” possui, Scott (2008) ressalta três principais. Para a autora, o “gênero” sugere, em primeiro lugar, que as relações entre os sexos configuram-se como um aspecto prioritário da organização social, em vez de derivarem de pressões econômicas ou demográficas, por exemplo; em segundo lugar, que os termos de identidade feminina e identidade masculina estão, amplamente, determinados culturalmente, não sendo, portanto, inteiramente produzidos de maneira individual ou coletiva; e, em terceiro lugar, que as diferenças entre os sexos constituem estruturas sociais hierárquicas e que, por sua vez, são constituídas por estas (SCOTT, 2008, p. 45-46).

Segundo Scott (2008), o conceito de gênero como um conhecimento histórico sobre a diferença sexual possibilita às feministas construir uma ferramenta de análise com dupla funcionalidade. Ao mesmo tempo em que pode contribuir para gerar novos conhecimentos

sobre as mulheres e sobre a diferença sexual, também pode desafiar de maneira crítica as concepções e políticas supostamente universais ou imutáveis – como no exemplo dos cânones literários tradicionais e na exclusão das mulheres na disciplina de história, foco do trabalho da autora. A respeito da exclusão latente nesse último caso, Scott (2008, p. 29) afirma que a construção de uma história a partir de uma perspectiva feminista pode se converter “no sólo en el intento de corregir o suplir el registro incompleto del pasado, sino en una forma de comprensión crítica de la manera en que opera la historia como espacio de producción del conocimiento sobre el género”.

Dessa forma, continua Scott (2008, p. 30) “el género ofrece una buena manera de pensar sobre la historia, sobre la forma en que se han constituido las jerarquías de la diferencia – inclusiones y exclusiones – y de teorizar la política (feminista)”. A aceitação de parcialidade de tal construção teórica não implica reconhecer o fracasso na busca de uma explicação universal, única ou verdadeira, mas, antes de tudo, sugere que a formulação de uma explicação universal não é, nem nunca foi, possível. Repensar o gênero, questionar o estabelecido, expor a falácia de explicações supostamente universais são importantes estratégias para produzir novos conhecimentos, promovendo discussões e transformações de ordem teórica, prática e política, conforme ressalta Scott (2008):

En círculos de historiadores y políticos se ha expresado la preocupación de que este tipo de posturas críticas acaban con la historia y con la política como las conocemos. Esto puede ser verdad, pero también concede a las prácticas establecidas una existencia permanente que antes nunca habían tenido. Es precisamente al exponer la ilusión de la permanencia o la verdad perdurable de cualquier conocimiento específico sobre la diferencia sexual que el feminismo historiza la historia y la política, abriendo así el camino para el cambio. Si vamos a repensar el género, si van a producirse nuevos conocimientos acerca de la diferencia sexual (un conocimiento que cuestione incluso la primacía de la oposición macho/hembra), entonces también debemos pensar de nuevo la historia de la política y la política de la historia (SCOTT, 2008, p. 30).

Com concepção semelhante, Dorlin (2009, p. 9-10, grifo da autora) acredita que as teorias feministas não se vinculam somente com a “delimitación teórica y práctica entre lo que sería ‘natural’ y ‘cultural’ o ‘social’ entre el sexo, el género y las sexualidades, sino con los principios, los postulados o las implicaciones, ideológicas, políticas, epistemológicas, de esta delimitación”. Além disso, ainda de acordo com a autora, as teorias feministas podem promover uma problematização na relação entre saber e poder, na medida em que podem ser compreendidas como “un saber indisociablemente ligado con un movimiento político que problematiza, sobre todo desde un punto de vista epistemológico inédito, la relación que todo

saber mantiene con una posición de poder, al que a cambio refuerza, invierte o modifica” (DORLIN, 2009, p. 10, grifo da autora).

A teoria e a crítica feminista empenham-se, dessa forma, na tentativa de explicar as valorações negativas atribuídas às mulheres, utilizando-se de sua categoria fundamental para refletir sobre essa questão – o gênero. Conforme salienta Vicentini (1989, p. 60), “o feminismo, enquanto modo particular de ver o mundo e os seres, soma-se ao pensamento sociológico que entende a realidade enquanto realidade construída”. A partir dessa concepção feminista, o sexo, considerado como um fato biológico, não deve ser determinante para a definição do gênero, entendido como uma construção social. Ou, como resume Vicentini (1989, p. 60), “masculino e feminino são identidades sociais configuradas ao longo de processos de significação”.

Segundo Hollanda (1994, p. 9, grifo da autora), a teoria e a crítica feminista possuem um compromisso, que pode ser compreendido como a “articulação da crítica da hegemonia do idêntico e da legitimidade dos sentidos absolutos e universais com os processos históricos de construção e representação da categoria ‘mulher’”. Simultaneamente ao processo de discussão, questionamento da legitimidade e revisão de preceitos reconhecidos como “universais” ou “hegemônicos”, esses estudos também articulam essas temáticas com questões referentes ao gênero feminino, além de visibilizarem produções literárias de grupos socialmente minoritários. De acordo com Hollanda (1994, p. 14, grifo da autora), é inegável que esses discursos, que partem das margens, “no momento em que desenvolvem suas ‘sensibilidades experimentais’ e definem espaços alternativos ou possíveis de expressão, tendem a produzir um contradiscurso, cujo potencial subversivo não é desprezível e merece ser explorado”58. Contudo, conforme salienta a autora, a simples identificação desse potencial subversivo não é em si suficiente, sendo necessário que os sistemas de interpretação feministas assumam como tarefa fundamental “a reflexão sobre a noção de identidade e

58

São dois os polos principais de produção teórica feminista: o feminismo anglo-americano e o feminismo francês. Segundo Hollanda (1994, p. 11), simplificadamente, o primeiro procura denunciar os aspectos arbitrários das representações da imagem feminina na tradição literária e “particularizar a escrita das mulheres como o lugar potencialmente privilegiado para a experiência social feminina”. Seus dois principais compromissos são: denunciar a ideologia patriarcal “que permeia a crítica tradicional e determina a constituição do cânone da série literária”; e resgatar os trabalhos das mulheres que foram silenciados e excluídos da história da literatura das mais diversas formas, engajando-se na recuperação de uma “identidade feminina”, que compreenda a diversidade de experiências das mulheres. Já o segundo polo de produção teórica feminista, o francês, está mais vinculado à psicanálise, trabalhando na identificação de uma possível “subjetividade feminina” e articulando conceitos de diferença, principalmente a partir de Derrida, e imaginário, a partir de autores como Lacan, em busca de uma definição para o processo de “escritura feminina” (HOLLANDA, 1994, P. 12). Nessas duas formas de pensar o feminino, anglo-americana e francesa, a preocupação central está relacionada à “procura da definição, em graus diversos de complexidade, de uma identidade feminina e do lugar da diferença” (HOLLANDA, 1994, p. 13, grifos da autora).

sujeito, levando necessariamente em consideração a multiplicidade de posições cabíveis que a noção de sujeito sugere e assumindo um claro compromisso com a perspectiva historicizante em suas análises” (HOLLANDA, 1994, p. 14, grifo da autora).

A crítica literária feminista, ao contrário de estudos que pretendem alcançar uma suposta objetividade ou neutralidade, reivindica para suas investigações justamente a importância fundamental da subjetividade nas leituras ou interpretações feministas. Para Elaine Showalter (1994, p. 25), “enquanto a crítica científica lutou para purificar-se do subjetivo, a crítica feminista reafirmou a autoridade da experiência”. Essas leituras buscam, a partir de uma mirada feminista, libertar significados novos, sem reivindicar suas análises como únicas ou definitivas, mas contribuir com uma perspectiva crítico-reflexiva: “toda a crítica feminista é de alguma forma revisionista, questionando a adequação de estruturas conceptuais aceitas” (SHOWALTER, 1994, p. 27). Showalter (1994, p. 31) comenta ainda que, conforme a tradição teórica e crítica desenvolvida no país, a ênfase da crítica feminista recai de forma diferenciada – assim, “a crítica feminista inglesa, essencialmente marxista, salienta a opressão; a francesa, essencialmente psicanalítica, salienta a repressão; a americana, essencialmente textual, salienta a expressão”. No entanto, é importante ressaltar que, independente da ênfase dada à crítica feminista, as diferentes correntes teóricas procuram atualmente centrar-se na mulher e “estão lutando para encontrar uma terminologia que possa resgatar o feminino das suas associações estereotipadas com a inferioridade” (SHOWALTER, 1994, p. 31).

Com posicionamento semelhante ao defendido por Showalter (1994) e por Eagleton (2006), Dorlin (2009) também sublinha o caráter político de toda crítica, ressaltando a impossibilidade de uma crítica neutra. Segundo Dorlin (2009, p. 20), os homens desenvolvem uma visão de mundo que “implica la producción de dicotomías jerárquicas (cultura / naturaleza, razón / cuerpo, abstracto / concreto, racional / intuitivo, objetivo / subjetivo, pensar / experimentar…), y la promoción de una postura de conocimiento desencarnada”. Essas oposições binárias estabelecem hierarquias de valor, nas quais, consequentemente, um dos campos é positivamente valorado, enquanto o outro o é negativamente, como é o caso do feminino em sociedades patriarcais. Dorlin (2009, p. 21), acrescenta ainda que o ideal de neutralidade defendido em muitos estudos científicos possui um caráter historicamente situado, sendo produto de uma determinada conjuntura história e social, ainda que não o afirme: “el saber científico, tal y como de hecho se efectúa, aparece igualmente situado y partidario que el saber feminista. La presunta neutralidad científica es una postura política”.

Para a teoria e a crítica feminista é fundamental questionar concepções tradicionais de ciência como um “reservatório de conhecimento não-metafórico, empírico, apolítico e universal” ou como um “conhecimento sem adornos, verdadeiro e objetivo” (STEPAN, 1994, p. 72). No âmbito da literatura e da crítica literária, assim como o processo de construção do texto não pode ser neutro, imparcial ou objetivo, também os processos de leitura e de interpretação são, necessariamente, políticos ou carregados ideologicamente. Conforme acentua Eliane Campello (1995), é necessário evidenciar o lugar de onde se escreve e o lugar de onde se lê o texto literário, potencializando esses processos como formas de reafirmar as ideologias implícitas tanto na construção quanto na leitura literária:

A perspectiva feminista impressa ao texto literário tanto pelo trabalho artístico em sua construção quanto pela decodificação do mesmo, no processo de leitura interpretativa, será tanto mais eficiente, como instrumento de desvelamento da ideologia vigente e consequente conquista de conhecimento, quanto mais evidenciar-se o lugar de onde se escreve e o lugar de onde se lê. A essa dimensão dada ao texto literário, associa-se o conceito e abrangência da arte na modernidade. A obra de arte instaura um universo próprio à investigação de forças sociais e culturais que medram a sociedade contemporânea, ali representadas. Se tal universo permite a manifestação do ato criador livre, em toda sua plenitude e verdade, seu espaço torna-se, logicamente, um espaço de fixação ou de subversão do status quo (CAMPELLO, 1995, p. 101).

A crítica e a teoria feminista têm se empenhado fortemente em demonstrar como os discursos estão relacionados ao contexto e às ideologias que o conformam, sendo necessário, portanto, compreendê-los a partir do conhecimento desses fatores. Conforme explica Lauretis (1992, p. 66), analisando especificamente representações da mulher no discurso e nas imagens cinematográficas, todo discurso está situado em uma determinada conjuntura histórica, social, política, cultural e econômica e deve ser interpretado “desde el contexto abarcador de las ideologías patriarcales, cuyos valores y efectos son sociales y subjetivos, estéticos y afectivos, e impregnan, evidentemente, toda la construcción social y, por ello, a todos los sujetos sociales, tanto mujeres como hombres”.

Corroborando o argumento de Lauretis, Moi (1988, p. 38), afirma que é necessário “analizar los contextos sociales y culturales para poder comprender auténticamente la obra literaria”. Tanto o contexto quanto as ideologias manifestam-se de diferentes maneiras nos discursos, literários ou não, e um dos princípios do feminismo e da crítica feminista refere-se justamente ao fato de que uma análise ou uma leitura crítica não podem nunca ser objetivas ou imparciais, devido à natureza política e ideológica de qualquer discurso crítico. Para Moi (1988, p. 10), a crítica feminista não pode almejar a neutralidade, que nem é possível, porque

um de seus principais objetivos também sempre esteve ligado a uma natureza política: “tratar de exponer las prácticas machistas para erradicarlas”.

A principal diferença entre a crítica feminista e a crítica não feminista não é “que la primera sea política y la segunda no, sino que la feminista declara abiertamente su política, mientras que la no feminista o bien no es consciente de sus convicciones políticas o trata de proclamarse universal por ser ‘apolítica’” (MOI, 1988, p. 93-94). Para a autora, nenhuma crítica pode ser imparcial, uma vez que os sujeitos constroem seus discursos a partir de uma determinada conjuntura, conformada por fatores históricos, sociais, políticos, culturais, pessoais, econômicos e ideológicos, e seria autoritário e manipulador apresentar esta perspectiva particular, parcial e limitada como “universal” ou como a “verdade”.

Uma das principais renovações possibilitadas pelos estudos feministas diz respeito à abertura para a politização teórico-crítica, particularmente na área dos estudos literários. Conforme ressalta Moi (1988), a teoria e a crítica feminista politizaram os métodos e as propostas críticas existentes:

El reciente impacto de la crítica feminista no se encuentra en el plano de la teoría ni de la metodología, sino en el plano de la política. Las feministas han politizado los métodos y planteamientos críticos existentes. Si la crítica feminista ha derrocado los juicios críticos establecidos, es precisamente por su énfasis en la política sexual. A raíz de su teoría política se ha convertido en una rama nueva de los estudios literarios. Las feministas se encuentran, pues, en una situación muy parecida a la de otros críticos radicales: hablando desde posiciones marginales en las afueras de las instituciones académicas consiguen hacer explícitas las implicaciones políticas de las obras supuestamente “neutrales” u “objetivas” de sus colegas, e igualmente desempeñan la labor de críticas culturales en el más amplio sentido de la palabra. Como en el caso de los socialistas, las feministas pueden permitirse, en cierto sentido, ser tolerantes y pluralistas a la hora de elegir métodos y teorías, precisamente porque cualquier enfoque que pueda servir adecuadamente a sus fines políticos debe ser bienvenido (MOI, 1988, p. 96, grifos da autora).

De acordo com Sandra Almeida (2002, p. 93), interpretações que atentem para discursos, literários ou não, em termos de questões de gênero colaboram para a constituição de uma “visão crítica, desestabilizadora e desconstrutora dos discursos contemporâneos”. A história literária é justamente um desses discursos contemporâneos que o feminismo critica e tenta desconstruir. Segundo Ria Lemaire (1994), o discurso da história literária está assentado em um sistema de relações de gênero e ligado às estruturas de poder da sociedade. Tanto a história literária quanto a genealogia de sociedades patriarcais apresentam seus discursos como uma “tradição única e ininterrupta e desqualificam, isolam ou excluem, como marginais ou inimigos, indivíduos que, por uma razão ou por outra (ideias, raça, sexo, nacionalidade) não se adequam ao sistema construído” (LEMAIRE, 1994, p. 59).

Conforme explica a autora, o maior problema desses discursos universalizantes está na construção da ilusão de uma única história, de uma única tradição, simultaneamente à exclusão e silenciamento das vozes dissonantes. Dessa forma, continua Lemaire (1994, p. 67), a origem de uma historiografia literária feminista parte da compreensão de que a “história literária é um dos discursos de uma sociedade que se baseia essencialmente na desigualdade entre os sexos. Isto resulta no fato de que mudanças nas estruturas sociais ou culturais terão consequências diversificadas para homens e mulheres”. Se a história literária está baseada fundamentalmente na desigualdade das relações entre os gêneros e ligada intrinsecamente às estruturas de poder da sociedade, Lemaire (1994, p. 67) propõe um processo de reescrita da história da literatura ocidental, a partir de três movimentos: primeiramente, desconstrução da história literária tradicional; após, reconstrução das diversas tradições da cultura feminina marginalizadas ou silenciadas; e, por último, construção de uma nova história literária, como produto das inter-relações de diversos sistemas socioculturais, marcados por relações de gênero59.

Para Lemaire (1994, p. 69), “repensar e reescrever a história literária numa perspectiva feminista, pressupõe, assim, em primeiro lugar, aprender a colocar novas questões que possibilitem a revisão de ideias estabelecidas, das interpretações acerca destas ideias e das teorias decorrentes destas interpretações”. Os estudos de literaturas de autoria feminina também procuram ressaltar a busca por uma historiografia literária feminista, a nível nacional e internacional, que ampare a pluralidade e a heterogeneidade de sujeitos, buscando incluir nesses espaços discursos daqueles e daquelas historicamente vistas como a alteridade, a voz dissonante e, portanto, não contempladas nos discursos tidos como universais ou canônicos.

Esses discursos são construídos a partir de um conjunto de valores relacionados a ideologias hegemônicas e com caráter uniformizador e, simultaneamente, resultantes de um processo de silenciamento de vozes representativas da divergência. Os estudos de literatura de autoria feminina procuram questionar a legitimidade desses discursos, além de evidenciar o caráter de construção da identidade e da história nacional e problematizá-las por seu caráter uniformizador. Conforme explica Schmidt (2000, p. 89), a literatura constituiu-se como um “signo de valor e repositório de identidade de uma cultura que buscava se legitimar como tal, através de uma imagem de autonomia, coesão e unidade”, emergindo as determinações que

59

Os princípios da desconstrução dos discursos da história literária construídos por Lemaire (1994) estão baseados nas formulações de Foucault (1970): principe de discontinuité, principe de renversement, principe de

produziriam o cânone literário de cada nação. Para a autora, o poder do corpus literário oficial está diretamente relacionado ao “esquecimento” dos sujeitos situados às margens da nação:

Seu poder de conferir representatividade à narrativa nacional foi forjado e mantido pelo esquecimento de memórias subterrâneas, recalcadas pela submissão à abstração das diferenças em nome do “caráter uniformizador e destrutivo da memória coletiva nacional”, agenciada pelo aparato do estado, incluindo-se aqui a instituição literária e suas agendas político-ideológicas. Se a memória nacional é a forma mais acabada da memória coletiva, segundo Maurice Halbwachs, e se o cânone literário é a narrativa autorizada dessa memória, pode-se dizer que o resgate da autoria feminina do século XIX traz à tona, de forma explosiva, aquilo que a memória recalcou, ou seja, outras narrativas do nacional que não só deixam visíveis as fronteiras internas da comunidade imaginada como refiguram a questão identitária nos interstícios das diferenças sociais de gênero, classe e raça, reconceptualizando, assim, a nação como espaço heterogêneo, mais concreto e real, atravessado por tensões e diferenças (SCHMIDT, 2000, p. 89).

Segundo a autora, uma ótica feminina contribui para promover um questionamento da matriz ideológica universalista. Assim, o silenciamento e a exclusão da literatura escrita por mulheres ao longo do século XIX poderiam ser explicados justamente por isso: essa produção procurava mostrar a nação a partir de outra ótica – não universalizante – e, simultaneamente a esse novo viés, contribuía para problematizar as ideologias masculinas que sustentavam a imagem supostamente homogênea do país (SCHMIDT, 2000). A literatura de autoria feminina também apresenta enorme potencialidade para a constituição de um espaço, não somente de expressão, mas, também, de educação para a alteridade. Sobre essa questão, Schmidt (2008, p. 59) escreve que a literatura é um território inquietante que “expressa em suas formas os matizes dos conflitos, das tensões e das diferenças que nos constituem como a comunidade imaginada da nação. Por isso, a literatura constitui, por excelência, um lugar de educação para a alteridade”.