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Resistência de mulheres: subversões femininas e feministas

3.3 Perspectivas de mulheres sobre a repressão pós-1964: uma leitura de Tropical

3.3.2 Resistência de mulheres: subversões femininas e feministas

Em seu artigo “A história da literatura tem gênero? Notas do tempo (in)acabado de um projeto”, Schmidt (2014) disserta sobre a história da literatura e sobre o momento de formação das literaturas nacionais e sua relação com a construção de identidades nacionais – processo relacionado diretamente à tentativa de homogeneização e unificação do país, com a intenção de universalizar as diferenças e de projetar uma ideia de pertencimento coletivo e de identidade nacional. No contexto latino-americano, o desafio que se apresenta no âmbito da pesquisa literária historiográfica é ainda mais complexo, uma vez que a América Latina é marcada justamente pela pluralidade, pela heterogeneidade e pela superposição de fatores, de condições e de características específicas. Schmidt explica que a história da literatura de maneira geral tem reescrito e reafirmado binarismos de gênero como uma forma de controle. Dessa maneira, a diferença masculino/feminino é vista como opositiva e assimétrica, procurando legitimar uma tradição literária baseada em valores masculinos, brancos, heterossexuais e burgueses. Reforça-se, assim, poderes hegemônicos nos campos sociais, culturais e políticos. Simultaneamente, conforme explica a autora, transforma-se o que é considerado feminino em valores negativos ou em um tropo de exclusão ou de falta em relação ao sujeito masculino.

O binarismo de gênero, presente desde a gênese do pensamento ocidental (baseado na exclusão da mulher do logos filosófico, da razão e do discurso), está diretamente relacionado ao não reconhecimento da mulher como sujeito, seja da história, da cultura ou da política. Para Schmidt, a instituição literária, como instituição social e política, desempenha um papel fundamental na constituição desse aparato discursivo e ideológico que legitima poderes hegemônicos e marginaliza o que é considerado diferente. O pertencimento de gênero ainda configura-se como um princípio de valor determinante no processo de construção da história literária ocidental e tem resultado, ao longo dos séculos, na exclusão da literatura de autoria feminina das histórias literárias. De acordo com a autora, assim como a sexualidade e os papeis de gênero são historicamente construídos, também a história literária e a história de maneira mais ampla são sexualmente construídas. Schmidt (2014, p. 83) afirma que é

impossível negar que “a cultura literária masculina, a partir da qual se construiu modelos de história literária que ainda tem vigência entre nós, segue a linha de uma história política dominada quase que exclusivamente por homens, daí a razão pela qual pode ser qualificada como uma história patriarcal”. Dessa forma, estudar literatura de autoria feminina e, simultaneamente, investigar a visão e a atuação das personagens mulheres em um contexto histórico específico, como no caso da ditadura civil-militar brasileira no romance de Machado, pode contribuir para o reconhecimento da mulher como um sujeito da história, da cultura e da política.

Assim como os discursos construídos no período de formação da identidade nacional no século XIX73, procurando sustentar uma determinada coerência e unidade política da nação, também os discursos oficiais sobre a ditadura civil-militar tinham esse propósito. Para tanto, procurou-se calar a voz da alteridade, deslegitimando, silenciando ou excluindo qualquer visão contestadora ou de oposição ao regime ditatorial. Esses discursos, construídos histórica e ideologicamente, procuravam sublimar as diferenças e os conflitos internos, criando mecanismos institucionalizados de exclusão e repressão do que era considerado diferente. No contexto de formação da identidade nacional no século XIX, esses discursos passaram a ser fortemente questionados a partir do resgate de obras de autoria feminina. Conforme explica Schmidt (2000), visibilizar e fazer circular essas obras afeta a construção da história literária e cultural, provocando questionamentos e críticas em relação ao cânone. Além disso, possibilita interrogações sobre as representações dominantes de um suposto sujeito nacional não marcado pela diferença, o que resultou na marginalização e exclusão de vozes, não somente da perspectiva de gênero, como também de raça e de classe social.

Na conjuntura ditatorial brasileira da segunda metade do século XX, onde esses mecanismos discursivos também foram mobilizados com a intenção de sustentar uma determinada ideologia e unidade política interna, estudar obras de autoria feminina e a participação das mulheres na resistência à ditadura também se configura como uma forma de problematizar a construção desses discursos. Mais do que criticar a tentativa de uniformização

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No artigo intitulado “Mulheres reescrevendo a nação”, Schmidt (2000) escreve a respeito do processo de exclusão de autoras femininas no contexto brasileiro e sua relação intrínseca com o exercício de poder na sociedade. Para explicar seu raciocínio, a autora foca, particularmente, na exclusão da representação da autoria feminina no século XIX, período de formação da identidade nacional. Nesse período, a literatura se institucionaliza como um instrumento pedagógico na tentativa de sustentar discursos de coerência e de unidade política da nação – baseada na concepção romântica de nação como o “todos em um”. De acordo com a autora, no século XIX uma elite estava empenhada na construção de uma narrativa que traduzisse a independência política e a singularidade cultural da nação. Esse processo de construção de uma identidade nacional está ligado ao movimento literário romântico, como colocou Antonio Candido. Atualmente, essa construção romântica é questionada, por seu discurso fortemente ufanista e cristalizado em uma “ideologia estética e política que se rendeu à concepção idílica e unívoca de nacionalidade” (SCHMIDT, 2000, p. 85).

da história oficial e o silenciamento da alteridade, esse processo pode contribuir, principalmente, para a emersão de outras perspectivas, de outras experiências e de outras histórias a respeito desse passado nacional, representativas da heterogeneidade de sujeitos e de visões sobre o período. Tanto a história nacional quanto a história literária “foram historicamente e discursivamente construídas de modo a convergir num todo coerente e estável” (SCHMIDT, 2000, p. 87) e um dos papeis da crítica e da teoria feminista é justamente questionar e desconstruir discursos considerados universais ou únicos.

Ao discorrer a respeito da exclusão das mulheres ao longo dos séculos, em “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”74

, Scott (1995) reforça a necessidade de reinscrevê-las na história. Esse processo implicaria em uma redefinição do que é importante historicamente, incluindo as experiências pessoais e subjetivas e as atividades públicas e políticas. No estudo, a autora questiona-se como o gênero dá sentido à organização e à percepção do conhecimento histórico, afirmando que as respostas estão relacionadas à compreensão do gênero como categoria analítica. Para Scott (1995, p. 72), o termo gênero, ao mesmo tempo em que indica uma rejeição do determinismo biológico implícito na utilização de termos como “sexo” ou “diferença sexual”, enfatiza o “caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo”. Para Scott (1995), o gênero pode ser compreendido a partir de diferentes formas – como uma categoria social imposta sobre corpos sexuados, como uma maneira de indicar “construções culturais”, como um substituto para o termo mulheres, como uma forma de designar as relações sociais entre os sexos, rejeitando explicações biológicas para as diversas formas de subordinação feminina. Na concepção da autora, o núcleo da definição de gênero está ligado a uma conexão integral entre duas proposições: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86). Nesse sentido, a história do pensamento feminista está relacionada à história da recusa de

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Na obra, Scott também faz uma breve diferenciação de termos como estudos feministas, estudos de mulheres e estudos de gênero. Enquanto o primeiro campo de estudos (feministas) apresentaria uma forte relação com os movimentos políticos e com a militância, caracterizando-se pelo comprometimento com a mudança social, o segundo (estudos de mulheres) estaria mais relacionado ao trabalho realizado no campo da crítica literária, por exemplo, demonstrando maior preocupação com as mulheres que produzem literatura, com suas obras e com seu público. Já o terceiro (estudos de gênero), surge como um desdobramento, a partir de um processo de amadurecimento dos estudos de mulheres, ou seja, preocupados também em pensar teoricamente as mudanças políticas e sociais. Nesse terceiro momento, de acordo com a autora, existe uma consciência de que não somente as mulheres estão engendradas. Embora estejam associados ao humano universal e neutro, os homens também estão inseridos em uma sociedade baseada em relações de gênero. Passa-se, dessa forma, a introduzir uma noção relacional no vocabulário analítico feminista, deixando de lado os estudos que se centravam apenas nas mulheres, de uma maneira apartada do contexto político e social. Com a utilização do termo “gênero”, também desponta a compreensão de que “as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e não se poderia compreender qualquer um dos sexos por meio de um estudo inteiramente separado” (SCOTT, 1995, p. 72).

construções hierárquicas entre o que é considerado masculino e o que é considerado feminino, além de uma recorrente rejeição do caráter fixo e permanente desse binarismo de gênero75.

A autora alerta ainda para a necessidade de problematizar as relações de gênero e de poder, compreendendo-as como contextualmente definidas e repetidamente construídas. No contexto dos estudos de gênero, é importante questionar constantemente o que está em jogo em situações em que o gênero é invocado para explicar ou para justificar determinadas posições ou relações, consideradas “naturais”. A pesquisadora questiona, por exemplo, qual a relação entre o poder do Estado e as leis que versam sobre a vida e os direitos das mulheres; ou por quais razões – e desde quando – as mulheres foram invisibilizadas como sujeitos históricos, sendo que se sabe que tiveram participação em pequenos e em grandes eventos ao longo da história; ou, ainda, se em algum momento da história realmente existiram conceitos de gênero verdadeiramente igualitários, a partir dos quais fossem projetados sistemas políticos. São questões como essas, segundo a autora, que possibilitarão a emergência de uma “história que oferecerá perspectivas sobre velhas questões [...], redefinirá velhas questões em novos termos [...], tornará as mulheres visíveis como participantes ativas e criará uma distância analítica entre a linguagem aparentemente fixa do passado e nossa própria terminologia” (SCOTT, 1995, p. 93).

Nesse estudo, em consonância com as considerações acima, busca-se investigar as diversas formas de participação das mulheres na resistência à ditadura civil-militar brasileira presentes na obra de Machado, com o intuito de fazer emergir suas histórias naquele contexto duplamente opressivo – tanto por suas ideologias políticas, quanto por seu gênero. Ao mesmo tempo, procura-se reinscrever essas mulheres, invisibilizadas historicamente, como sujeitos históricos e políticos, evocando, por meio da literatura de autoria feminina, algumas de suas experiências e vivências de enfrentamento, de subversão e de resistência naquele contexto.

Em Tropical sol da liberdade, é possível encontrar diversas histórias de resistências e de enfrentamento à ditadura civil-militar, algumas mais explícitas, outras mais clandestinas – todas demonstrando a discordância política, ideológica e moral em relação à repressão e às arbitrariedades cometidas pelos militares no poder. Ao longo do romance, seguindo o fluxo de memórias de Amália e de Lena – que, além de suas próprias histórias, recordam vivências de

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A autora aponta que os grandes desafios da nova pesquisa histórica nesse contexto são: historicizar as relações de gênero, desconstruir conceitos e lugares pré-determinados para homens e mulheres e fazer explodir a noção de fixidez e de permanência atemporal dos binarismos de gênero: “temos necessidade de uma rejeição do caráter fixo e permanente da oposição binária, de uma historicização e de uma desconstrução genuínas dos termos da diferença sexual” (SCOTT, 1995, p. 84). Para a evolução desse processo, faz-se necessário construir uma autoconsciência e encontrar maneiras de colocar as categorias de análise criadas, assim como as análises, à apreciação crítica e, tão importante quanto, à autocrítica.

outras mulheres que conheceram –, são evocadas experiências vividas por sujeitos femininos invisibilizados nos discursos oficiais. Um dos primeiros episódios sobre essa questão relatados no romance de Machado refere-se à invasão da Reitoria da UFRJ, local de realização de uma assembleia geral. Apesar de demonstrar apoio e concordância com as ideias e comportamentos de seus filhos e filhas, todos envolvidos direta ou indiretamente com alguma forma de oposição à ditadura, foi no dia do cerco à Reitoria que Amália sentiu o que pode ser interpretado como uma espécie de despertar político da personagem. Na impotência da espera pela chegada dos filhos e marido, participantes da reunião, Amália começa a questionar-se sobre as arbitrariedades cometidas pela polícia militar: “que direito aqueles brutamontes tinham de empurrar e ameaçar todas aquelas moças e rapazes, prometendo surras e espancamentos?” (p. 73). E ainda: “a gente carrega um filho durante nove meses, põe no mundo, amamenta, alimenta, ajuda a crescer, prepara para a vida e então vem um oficial prepotente e dá ordem para uns facínoras e eles começam a surrar essas crianças que a gente adora e que não fizeram mal a ninguém?” (p. 74). Nessa ocasião, Amália, de caráter sempre tranquilo e sereno, revolta-se a tal ponto com o governo ditatorial, responsável pelas ordens dadas aos policiais, que sente que seria capaz até de matar. Esse episódio marca o início de suas pequenas ações de enfrentamento e de resistência à ditadura civil-militar: “Amália descobria que seria capaz até de matar. Ia ter que fazer alguma coisa, não sabia o quê, ela que sempre fora tão mansa e tranquila...” (p. 74).

No decorrer da narrativa, em conversas com a filha, Amália relembra algumas de suas experiências durante a ditadura brasileira, como a participação na Passeata dos Cem Mil. Naquele dia, Amália não avisara a nenhum dos filhos que também compareceria ao protesto, mas não pode deixar de ir, pois sentia que ali – juntando sua voz à voz de outras milhares de pessoas, na rua repleta de manifestantes denunciando e enfrentando os governo ditatorial – era o seu lugar: “eu não podia ficar em casa fazendo crochê” (p. 93). Além disso, a personagem sabia que pelo menos cinco de seus filhos e filhas estariam presentes no ato – Marcelo, Fernando, Lena, Teresa e Cristina – e sentia que devia estar por perto para protegê-los ou ajudá-los se necessário:

– Mas no dia da passeata eu também estava assustada, morrendo de medo, com pânico de que alguém desse um tiro nele, tão bonito, falando tão bem, no alto daquela sacada ou escadaria, sei lá... Morria de medo. Por ele, por vocês. Por mim, não, engraçado. Eu sentia que o meu lugar era ali; que, se todas as mães fosse, e ficassem junto dos filhos, a polícia não ia poder atirar neles para não pegar na gente. E, se resolvessem atirar, era melhor eu estar perto. Quem sabe se não podia ajudar? (MACHADO, 1988, p. 94).

No excerto, é possível observar que Amália não sente medo por si, mas pelos filhos. A personagem enfrenta seus temores e seu pânico de que aconteça algo com os seus e faz questão de participar da passeata, em uma resistência silenciosa, semi-oculta, semi-visível: sempre cuidando, vigiando e zelando de perto por eles, mas raramente vista. No diálogo com Lena, Amália narra também outras lembranças sobre aquele dia, até então desconhecidas pela filha, como a organização da mãe e das amigas conforme as instruções contidas em um folheto do protesto:

– Mas nós fomos direitinho como dizia no panfleto. Grupo de cinco. E levamos lenço molhado dentro da bolsa, e comprimido de vitamina C efervescente, para o caso de bomba de gás...

– Isso eu nunca soube, mãe.

– Eu não disse que não precisavam se preocupar comigo? Fiz muita coisa que nunca disse a ninguém, vocês iam ficar com medo de que me acontecesse alguma coisa, era melhor não saber (MACHADO, 1988, p. 93).

Além da participação em movimentos de protesto, Amália revela que também colaborou com a resistência à ditadura fazendo finanças – memórias nunca reveladas a nenhum dos familiares e trazidas à tona em um diálogo franco com a filha, depois de quase duas décadas:

- A gente fez finanças, por exemplo.

Belas surpresas a esta altura, pensava Lena. Só repetiu: - Finanças? A gente?

- É... Eu e minhas amigas. A gente fazia conservas, geleia, crochê, tricô, sapatinho de bebê, casaquinho, camisinha de pagão bordada, essas coisas. E artesanato, cobrir cabide com cadarcinho, umas coisas assim. Depois fazia bazar e vendia.

- E a quem vocês entregavam o dinheiro? - A um padre, que dava para o pessoal. - E suas amigas nem desconfiavam?

- Como não desconfiavam? Todas elas sabiam, é claro. Não enganávamos ninguém. Nós fazíamos por convicção, por escolha política, o que é que você está pensando? A gente queria ajudar e não sabia como. Se saíssemos para pichar muro ou distribuir panfleto, não ia dar certo. Então a gente fazia isso. E comício nas filas, como já te contei. Mas as famílias da gente é que não sabiam, vocês ficam sempre achando que mãe não tem nada que se meter. Foi bom, porque a gente foi treinando a coragem, a presença de espírito (MACHADO, 1988, p. 93-94).

Diante da revelação de que sua mãe e as amigas fizeram conservas e geléia, crochê e tricô, sapatinhos e roupinhas de bebê bordadas, além de diversos tipos de artesanato, vendendo em bazares e doando todo o dinheiro arrecadado para ajudar os militantes, Lena fica completamente surpresa. Pelo inesperado da situação, tanto tempo ignorada no interior da família, uma de suas primeiras reações foi questionar se as amigas de Amália sabiam o destino das finanças coletadas com seus trabalhos. A resposta da mãe ao questionamento da

filha não deixa margens a dúvidas sobre suas intenções e convicções políticas, além de seu envolvimento ideológico com um projeto de resistência à ditadura civil-militar. Essas mulheres, sentindo-se inábeis para a distribuição de panfletos ou para a pichação de muros com mensagens de protesto e denúncia, encontram em suas habilidades domésticas e artesanais – como cozinhar, costurar, bordar, fazer crochê e tricô – uma forma de resistir e de colaborar com a luta contra o governo ditatorial. Essas habilidades, consideradas tradicionalmente femininas ou reservadas ao âmbito doméstico, configuram-se como uma dupla subversão no enredo de Tropical sol da liberdade. Ao apropriarem-se dessas habilidades como uma forma de resistir ao regime militar inconstitucional, essas mulheres rebelam-se não somente com a ditadura civil-militar instaurada, como também subvertem sua relação com os papeis de gênero designados às mulheres em uma sociedade patriarcal.

Apesar do inesperado da situação, Lena fica positivamente surpresa com as confidências da mãe, admirada de sua força e das estratégias encontradas para resistir naquele contexto repressivo: “essa mãe era sempre surpreendente, pensou Lena. Não só segurou barras pesadíssimas quando veio a hora má, mas também ia de vez em quando mostrando coisas assim, pequenos episódios de iniciativa própria inesperada, miúdos mas constantes” (p. 96). Como exemplo dessas iniciativas inesperadas, Lena recorda que a mãe tinha o hábito de escrever poemas ou pequenos fragmentos de ficção em prosa, junto às receitas da família, anotadas no caderno. Uma pequena forma de subversão e de resistência feminista da mãe, que entremeava com literatura, reflexão e poesia a arte culinária e os afazeres domésticos.

Em outro ocasião, chamada para comparecer à escola da filha mais nova, Amália depara-se com uma situação de injustiça com a filha, que havia questionado a professora a respeito da atuação dos militares. Pelas palavras da docente, que narra o acontecimento à mãe, tem-se conhecimento de uma das formas de resistência da pequena Cláudia, que não aceita as explicações sobre os soldados como “defensores da pátria” e questiona as afirmações da professora em sala de aula, na frente de todos os colegas:

- Por isso – disse a professora – eu estava explicando às crianças que o soldado é o defensor da pátria. Então a Cláudia me perguntou que é defensor. Eu expliquei que é quem protege, toma conta, para não deixar os inimigos do Brasil fazerem mal às pessoas que vivem aqui...

A professora hesitou, pigarreou, olhou para o chão e não conseguia continuar. A diretora se adiantou: