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3.3 HISTÓRIAS DE VIDA

3.3.1 Luiz e Maria

Luiz veio da Bolívia “porque lá não tinha muitas opções”. Antes de vir, tinha terminado o colégio e em seguida prestado o serviço militar. Logo depois que saiu do Exército não tinha o que fazer e buscou trabalho em uma empresa têxtil de meias, como ajudante de tinturaria. Trabalhou durante dois anos. O que ganhava não era muito, mas “dava para viver”. Não dava para estudar, mas, para o básico, dava. Ele estava registrado, com carteira assinada, mas não era isso o que queria. Ele queria estudar. Queria conhecer a “parte de fora da Bolívia”, de seu departamento. Queria conhecer outros lugares (“aquela aventura que a gente sempre pensa, sonha”).

Depois de ter tomado a decisão, Luiz largou o emprego e voltou para seu povoado, onde havia uma mina de ouro. Ficou dois ou três meses. A mina havia aparecido nos anos 90 e ele havia trabalhado lá enquanto estava no colégio.

Relata que o trabalho era muito duro na mina, pesado e ingrato (“às vezes você tira algo, às vezes não tira nada. Às vezes tira para dois meses e depois pode ficar três meses sem salário. O ouro é assim”).

Foi um primo que fez o convite para que ele fosse ao Brasil. Ele perguntou quanto poderia ganhar, pois queria estudar, fazer outra coisa. Seu primo lhe disse que ele poderia ganhar bem, mas que o começo seria difícil, pois ele teria que aprender.

Assim tomou sua decisão. Foi nessa mina que conheceu sua mulher, Maria. Maria não conheceu seus pais. Quando tinha três anos sua mãe a entregou a tios e partiu. Com 11 anos fugiu de casa e começou a trabalhar em várias coisas, majoritariamente como empregada doméstica. Desde pequena tinha o sonho de conhecer os Estados Unidos. Viveu em Virginia, Washington durante um ano. Voltou porque não tinha muito trabalho e não estava aprendendo inglês. Quando regressou, deixou La Paz e começou a trabalhar na mina.

O jovem casal que havia acabado de se conhecer na mina convidou um amigo que trabalhava com eles e os três decidiram partir rumo a São Paulo.

Um aspecto que não costuma ser suficientemente dimensionado em estudos sobre o fenômeno migratório é referente às circunstâncias da partida. Os agenciamentos que se ligam à decisão, os microprocessos envolvidos. Falar simplesmente que a motivação da migração é econômica não diz muito.

No caso de Luiz, o momento da partida coincidiu com a descoberta de um câncer no pai, já em estado avançado. Como eram três irmãos que estavam desempregados e moravam em um povoado distante do hospital, decidiram mudar para La Paz e abrir uma pequena Lan House, para que o pai estivesse mais próximo do hospital.

As lágrimas incontidas de Luiz durante a entrevista (era a primeira vez que falava sobre isso desde que chegara ao Brasil) revelaram que este foi o aspecto mais difícil de sua decisão e de sua experiência. Mesmo cientes de que não havia muito a ser feito, a sensação de impotência foi ampliada pela falta de dinheiro face à situação que o pai se encontrava.

Como não tinham documentos e não tinham dinheiro suficiente para tirar os documentos, buscaram o serviço de coyotes. Por fim, compraram a passagem e partiram pelo Paraguai. Chegaram a Assunción, passaram por Ciudad del Este e entraram com um ônibus de contrabandistas. No caminho, foram detidos como imigrantes clandestinos e levados à imigração onde foram fichados, fotografados e tiveram que assinar (“não sabíamos o que estávamos assinando. Na verdade, não entendíamos nada, pois não falávamos português!”).

Às 04:00 da manhã foram enviados de volta ao Paraguai, onde novamente foram detidos. Desta vez, pela Polícia paraguaia. Havia mais ou menos 15 imigrantes com eles. No relato de Maria também fica evidente a ação dos coyotes:

Eu podia ter entrado com o passaporte. Eu, sim, tinha passaporte. Mas ele não me deixou, para que eu pagasse. Ele me disse que eu não podia entrar com o passaporte e me tomou o passaporte. Naquela noite tivemos que dormir do lado paraguaio e nos disseram que ficássemos tranqüilos que íamos entrar. Tínhamos que pagar 120 dólares cada. Para cruzar do Paraguai ao Brasil. E assim fomos, De noite, de ônibus.

Chegando em São Paulo, o casal passou a sofrer muito com seu amigo que, no Brasil, começou a beber, envolveu-se em gangues de bolivianos e um dia, bêbado, em uma briga de bar acabou com um ferimento interno que gradualmente o impossibilitou de trabalhar. Durante três meses, toda a atenção de Luiz e Maria esteve voltada para o cuidado de seu amigo. Chegaram inclusive a mudar de oficina por causa dele, para uma oficina onde o trabalho não era tão pesado. Finalmente, quando conseguiram que seu amigo voltasse à Bolívia, estava com uma aparência horrível: havia operado, estava amarelo, dois meses de cama, tomando fortes medicamentos, muito fraco e urinando sangue. Luiz se diverte ao lembrar-se da reação de seus irmãos quando foram recepcionar o amigo em La Paz: “ao verem meu amigo ficaram assustadíssimos imaginando como eu estaria! Entraram em contato rapidamente sugerindo que eu voltasse pois, pela aparência do outro, diziam que, pelo visto o Brasil fazia muito mal às pessoas”.

Luiz e Maria estavam planejando voltar definitivamente à Bolívia em dezembro de 2008. Maria não pretendia estudar, pois não havia terminado o colégio ainda. Luiz sempre manteve a vontade de estudar, fazer cursos, mas faz questão de dizer que primeiro tem que pensar em se sustentar por lá. Pensava em comprar um lugar para morar e talvez iniciar um negócio próprio. A atividade que lhe dava grande prazer era desenhar. Em uma oportunidade, fez questão de trazer seu caderno com os desenhos, o que permitiu verificar sua grande habilidade artística.

Sobre a receptividade e o problema de adaptação que tiveram no Brasil não possuem lembranças ruins. Dizem que foram bem-recebidos e que conheceram diversos brasileiros que até os ajudaram. A única coisa com relação à qual não se sentiram bem acolhidos foi com as instituições públicas (“te olham com indiferença, não te atendem bem... não todos, mas acontece”).

Luiz, quando questionado sobre as coisas que mais chamaram sua atenção no Brasil respondeu:

Foi o tamanho das cidades, especialmente como São Paulo. Muita gente. E a segunda coisa que mais me chamou a atenção foi a sociedade. Que há dois ou três

tipos de sociedade diferentes. A sociedade alta, daqueles que têm muito dinheiro, a

sociedade média e a sociedade baixa e aquela... o submundo. Quarta sociedade. Muito baixa. Dos que vão às ruas mendigar, vivem embaixo das pontes, dos túneis. Isso foi surpreendente. Porque lá na Bolívia você não verá isso. Vá lá e você não verá. Pessoas debaixo de papelão, barracos. Você poderá ver uma casa, feita de pedra ou de barro... mas é sua casa, a forma que eles adotaram para viver. Mas aqui você vê gente amontoada, sem casa... isso foi que mais me chamou atenção.

Quando perguntado sobre o porquê da diferença em termos de desigualdade social entre o Brasil e a Bolívia que o havia surpreendido, Luiz disse acreditar que a razão pode estar no fato do Brasil ter utilizado muito a escravidão (“eu vi nas novelas, na Escrava Isaura, na Chica da Silva. Não sei se está embasada na realidade, mas eu vejo isso. Vejo que as pessoas morenas ou negras têm menos possibilidades de êxito”).

A colocação de Luiz sobre a desigualdade social do Brasil não é aleatória, em um país onde os 10 por cento mais pobres do país respondem por 0,7 % da riqueza nacional enquanto os 10 por cento mais ricos possuem 47%31.

Luiz acha que as marchas e manifestações políticas são muito importantes, mas que às vezes por falta de informação e conscientização são somente poucas pessoas que participam. Nunca haviam participado de marchas ou atividades políticas na Bolívia. Mas se recorda quando estava no Exército no período do General Bánzer que esteve nas marchas, como militar, em 2000, em La Paz.

Para mim foi uma coisa bem ao revés. Pois como se eu pertenço a essa sociedade, a essa gente, a essa classe, eu mesmo posso ir aí e atirar, matar. Muitos de nós, soldados, comentávamos: que tal se fizéssemos uma rebelião aqui e matássemos o comandante, podíamos entrar no arsenal... conversávamos bastante sobre isso no Pavilhão.

Sobre oferta de trabalho, não tinham reclamações a fazer do Brasil:

Mas da parte de trabalho, aqui tem bastante trabalho. Se a pessoa tem alguma instrução, um curso técnico, pode trabalhar com tudo. Um montão de trabalho. Mas nós não mudamos de trabalho. Por falta de uma habitação. Tem que ter alguma habitação mais ou menos... algo bem, né, para viver?

Dizem que a principal razão de não terem buscado outro trabalho é porque querem voltar para a Bolívia, como disse Maria:

31 Na Zâmbia, por exemplo, esta relação entre a renda dos 10 por cento mais ricos e os 10 por centos mais pobres

Porque se quiséssemos ficar aqui, trabalhando registrado você pode conseguir um apartamento pequeno. O moço do sindicato dos costureiros me disse. Com carteira registrada. Mas queremos voltar porque minha mãe está inválida, o pai dele já morreu, os irmãozinhos estão pequenos. Por isso queremos voltar. Se não fosse por isso, nós ficaríamos

É comum que o desejo de retorno seja motivado pelo cuidado dos irmãos menores ou dos filhos que ficaram na Bolívia.

Em São Paulo, Luiz e Maria trabalham 15 horas por dia. Não têm muito tempo para atividades em seu tempo livre. Dedicam o tempo que têm disponível para fazer cursos. Já estudaram português, computação, fizeram curso sobre economia solidária. Descobriram a Pastoral do Migrante por anúncios em rádios bolivianas, pois depois que seu amigo foi embora ficaram sem lugar para morar.

Luiz gostaria de fazer mais cursos de informática para aprimorar o conhecimento que já possui, já Maria gostaria de estudar música sinfônica. Ela foi cantora em corais na Igreja Adventista na Bolívia. Disse ser sua atividade favorita.

Ele acredita que as festas bolivianas realizadas em agosto já foram incorporadas culturalmente à sociedade brasileira. Do ponto de vista pessoal, acredita que a migração para o Brasil lhe proporcionou mais experiência e conhecimento, visão e pensamentos mais amplos sobre o que fazer para mudar a sociedade, torná-la mais justa.

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