• Nenhum resultado encontrado

5. A FORÇA POLÍTICA DA MARCHA DAS MARGARIDAS NA CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS

5.5. Tensões entre as visões de paradigmas dos governos e movimentos (e internamente)

5.5.2. Luta pelo reconhecimento das mulheres como sujeito

Relacionada com o sistema patriarcal e seu machismo consequente, vimos que existe uma forte dificuldade de se perceber as mulheres como sujeitos, não apenas de direitos, mas de construção das lutas sociais, das políticas públicas e da agroecologia, foi motivo de muitos conflitos.

Eu acho que os conflitos estão muito envolvidos no campo da agroecologia no reconhecimento dos sujeitos. Nós estamos falando de agroecologia vindo de uma demanda de um movimento de mulheres de cunho feminista e que em muitos momentos, tinha a diretoria também de política para as mulheres de cunho feminista tentando conseguir esse espaço. Então isso tem resistência de quem não é feminista. E a gente ainda tem uma cultura tanto nas organizações sociais quanto no Estado de um Estado machista, que não é considerado lugar da mulher (mulher representante do governo)

Acho que as mulheres na construção da agroecologia sempre foram uma construção de trazer as tensões, os conflitos, os questionamentos para dentro do campo da agroecologia do que é a invisibilidade das mulheres do machismo dentro da agroecologia então nunca foi uma tarefa fácil, nunca foi uma coisa tão harmoniosa. Então desde que os movimentos começam a se articular em torno da agroecologia que já tem tensão das mulheres dentro desses espaços.

A luta das mulheres por reconhecimento social, político, econômico têm se utilizado de algumas estratégias, a partir da perspectiva feminista, na busca da ampliação de seu fortalecimento em espaços específicos, através da auto-organização. Ao mesmo tempo, têm-se defendido a necessidade de instâncias ou mecanismos institucionais que possam construir políticas públicas direcionadas às suas realidades, assim como têm se instituído cotas (discriminação positiva) para possibilitar que as mulheres sejam incluídas onde historicamente não puderam estar. As tensões se deram na falta de compreensão ou discordâncias com relação às estratégias das mulheres para serem incluídas e atingirem condições mais igualitárias de acesso a direitos, a reconhecimento dos seus trabalhos e de sua contribuição econômica.

(...) pegar o GT de mulheres que vai contar essa história de como as mulheres foram se auto-organizando dentro desse espaço. Isso é uma coisa que a gente bebe do feminismo de acreditar na auto-organização como uma estratégia, uma ferramenta de organização das mulheres, então as mulheres começam a também ter um espaço auto- organizativo no sentido de trazer os questionamentos dentro da agroecologia (mulher de organização parceira da Marcha das Margaridas).

Nesse sentido, tanto os espaços como a Secretaria de Mulheres, da Contag e o GT de Mulheres, da ANA quanto a SPM, a DPMRQ, o Comitê de Gênero do Condraf, o Comitê do POPMR e a ST de Mulheres da Cnapo foram espaços muitas vezes colocados em xeque. São eles que sempre serão os primeiros a estar ameaçados de cortes, em momentos de redução de pessoal ou de recursos. São eles que têm seus status rebaixados em primeiro lugar. Nesse período de 15 anos, o movimento de mulheres participou, por diversas vezes, de notas, cartas e

atos para que a SPM continuasse com status de ministério, para que a DPMRQ não passasse a ser uma coordenadoria ou visse sua pauta anexada à da Juventude e dos Povos e Comunidades Tradicionais, para que a ST de Mulheres da Cnapo não fosse fundida com a da Juventude. No entanto, mesmo instituídos os espaços, a ação das mulheres deve continuar a ser cotidiana para poder ter acesso aos mesmos dados, às mesmas informações que os homens, para serem consideradas e convidadas para as reuniões, para que suas opiniões não fossem ouvidas apenas quando faladas por um homem.

Oficializados os espaços, outros embates tinham relação com a disputa por recursos, a exemplo do questionamento sobre a ST de Mulheres da Cnapo demandar orçamento para ações específicas, através da DPMRQ, mas também por cobrarem para que todos os outros eixos garantissem atividades com mulheres. O Pronaf Mulher foi diversas vezes questionado, com o argumento de que as elas estariam sendo duplamente beneficiadas (pois também receberiam quando o homem tem acesso) ou que isso ameaçava o Pronaf “geral”, da agricultura familiar. Os percentuais de recursos direcionados para o público feminino no PAA, no PNAE, para as atividades especificas da Ater ou fomentos produtivos também foram duramente questionados. A existência de chamadas públicas de Ater específicas para as mulheres, por exemplo, foi alvo de muitas críticas.

(...) as questões dos editais específicos, para apoio aos grupos produtivos de mulheres, agroecologia… O edital específico que também conseguiram acessar. Isso foi uma guerra: ah, vão acabar com o Pronaf, vão acabar com as coisas. Então… e para nós estrategicamente estava aí dentro, ter um número de participação das mulheres, conseguiu olhar para os grupos de participação das mulheres e principalmente também vivenciar a pauta da agroecologia.

As chamadas públicas de Ater para Mulheres também foram alvo de críticas pelas organizações da sociedade civil, direcionadas num primeiro momento ao reduzido número de mulheres atendidas em todo país e sua limitação aos Territórios da Cidadania. Críticas também foram feitas ao fato da chamada não prever recursos para as atividades de emissão da Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP), já que boa parte das mulheres ainda não tinha acesso a esse documento. Associado a isso, o curto prazo de execução da chamada, de apenas um ano, dificultava o atendimento às agricultoras de modo geral e, em particular, àquelas sem DAP, devido às dificuldades para a sua emissão (TELLES, Liliam, 2017, p. 7)

Nesse percurso, um dos momentos mais tensos se deu em torno da bandeira de “50% de mulheres na Ater”. Um destaque dado nas entrevistas diz respeito ao fato de que esse conflito ocorreu entre mulheres e homens do movimento agroecológico, e não entre governo e sociedade civil, como se podia supor. Esse foi um exemplo ainda do quanto a aliança entre as mulheres, entre as feministas do governo e dos movimentos, pode ser estratégica e trazer resultados positivos para o coletivo, que culminou no reconhecimento da força das mulheres na

agroecologia com o lançamento, pela presidenta Dilma Rousseff, da Planapo I na 2ª Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável junto a uma representante do MMTR-NE e da Marcha das Margaridas, tendo sido ainda a primeira conferência realizada com paridade de gênero. O processo trouxe grande desgaste, mas a avaliação geral é de que o resultado foi de fortalecimento, especialmente porque a aplicação da cota na Ater Agroecologia se mostrou viável e de fato inclusiva - um importante exercício para as entidades executoras de Ater.

Eu vejo que em relação ao Plano de Agroecologia de fato esse foi realmente o principal conflito, mais significativo, porque existiam posições divergentes dentro da ANA em relação a essa questão da cota de 50% de mulheres nas Chamadas de Ater Agroecologia e os 30% de recursos para atividade com mulheres. Não foi consenso. Então foi feito um grande debate, com bastante tensionamento, existiam umas posições divergentes dentro da própria ANA. Eu acho que o governo acabou tomando a decisão a favor da perspectiva que as mulheres estavam defendendo (homem representante da ANA)

Houve momentos inclusive de negação da existência de mulheres... ouvimos dizer que no Sul não haviam mulheres. Um até disse que era mesmo verdade, porque ele tinha um irmão morava no Sul e estava solteiro. Ouvimos dizer que as mulheres queriam inviabilizar a política. E esse posicionamento não era do governo ou da sociedade civil, eram posicionamentos dos homens (mulher representante de organização parceira da Marcha das Margaridas)

(...) os conflitos não se afloraram só para dentro do governo, se afloraram para dentro do movimento agroecológico. Essa que eu acho que é a singularidade, porque a gente não teve em nenhum outro programa essa tensão. Sempre as propostas que as mulheres faziam eram propostas que recebiam apoio dos movimentos mistos, no caso da agroecologia isso não ocorreu. O que demonstra que não apenas era um desafio para o governo ... Era algo novo, que implicavam (...) reorientar política pública (...) Mas também o diálogo com uma sociedade civil que se encontrava tensionada em torno das agenda das mulheres (mulher representante do governo)

E o que é a particularidade da coisa é que as feministas por dentro do governo se aliaram com as feministas do movimento e foram vitoriosos na consolidação do plano e eu acho que esse é o sentido político muito bacana que é o fato de depois de ter tido essa tensão a gente ter tido a Presidenta da República lançando Plano na conferência com a Verônica, um integrante movimento da Marcha, mas o movimento autônomo de mulheres, e não um movimento misto lançando o Plano. Então assim eu acho que tem um sentido político de reconhecimento que vai muito além para a sociedade, mas que é uma resposta também para a tensão interna dentro do movimento que foi muito chocante de bacana. Isso são resultados das alianças que a gente foi sendo capaz de construir (mulher representante do governo)

As mulheres ganharam a queda de braço, como afirmam as/os entrevistadas/os: a chamada foi lançada como elas estavam propondo, mas depois de muita mobilização - elaboraram uma carta e conseguiram um grande número de assinaturas. Esses embates geraram muita inquietação, desconforto, crises internas, mas aos poucos a maioria das pessoas foi compreendendo e apoiando o argumento das mulheres, ficando apenas alguns isolados no posicionamento contrário. Após o processo, a avaliação geral, a partir da fala das/os

entrevistadas/os, é de que isso faz parte dos caminhos da evolução na política, na história e que foi importante para ressaltar o papel que o Estado tem de acelerar processos, fortalecer a sociedade civil, democratizar acessos, romper bloqueios históricos, culturais e institucionais que dificultam a democratização. Inclusive, os limites dos próximos movimentos, em especial do agroecológico. “Não adianta, a gente não vai conseguir mudar o Estado se a gente não mudar as próprias concepções das políticas nos movimentos” (homem representante da ANA)