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E são os produtos de luxo a alavanca que permite a transmutação do diáfano dos sonhos de reconhecimento em vivência concreta.

Conforme Allérès (2000, p. 60):

O objeto de luxo é um dos paradoxos das sociedades de consumo: sublime, suntuoso, inacessível e, no entanto, objeto de todos os desejos, de todas as fantasias; supérfluo, até inútil e, todavia, um dos triunfos da elevação do padrão de vida; totalmente indispensável, vital e, todavia, abandonado, de acordo com os fenômenos da moda; desejado, sonhado, rejeitado, esquecido, cada objeto de luxo tem um ciclo de vida pessoal e muito difícil de antecipar.

Quais seriam esses produtos tão especiais? Principalmente os que prometem beleza e auferem poder. No fundo, os consumidores do luxo fantasiam que jóias Tiffany’s, automóveis Ferrari, malas e bolsas Louis Vuitton, Prada e Dior, relógios Patek Philippe e Rolex, e objetos da Daslu, dentre outros, irão mudá-los como indivíduos, engrandecê-los, talvez até torná-los irresistíveis. Afinal, tais bens são posicionados para “glorificar as emoções do cliente” (LONGINOTTI-BUITONI, 2000, p. 99).

Gilles Lipovetsky, uma das maiores referências mundiais quando o tema é luxo, resgata a origem do termo como

[...] derivado do latim luxus (a uma só vez substantivo e adjetivo), oriundo do vocabulário agrícola, que inicialmente significou “o fato de crescer de través”, depois “crescer em excesso”, para tornar-se “excesso em geral”, e, enfim, significar “luxo” a partir do século XVII. [...] Entre os derivados de luxus encontra-se igualmente luxúria, “exuberância, profusão, luxo”, e “vida mole e voluptuosa” (LIPOVETSKY; ROUX, 2005, p. 115).

Lipovetsky e Roux explicam que, para Platão, o objetivo do ser humano deveria ser satisfazer às necessidades, fixadas pela Natureza, e ignorar os desejos, geralmente por riqueza, por território, que conduziriam à guerra. Para os gregos, a insaciabilidade individual, fomentada pelos infinitos desejos (pelo luxo), era incontrolável e podia conduzir ao descontrole social, na forma de corrupção e decadência coletiva. Tanto os gregos quanto os romanos viam nos desejos pelo luxo a subordinação do interesse público ao privado, o que deveria ser refreado. Datam de aproximadamente 200 a.C. as primeiras políticas públicas na letra de leis suntuárias visando normatizar a posse de bens e exibição de riqueza, desde a posse de ouro até o número de convivas num banquete. Aos gregos e romanos vieram se somar os cristãos na condenação do desejo pelo luxo, reforçada com as noções de pecado e cobiça.

Lipovetsky e Roux (2005) definem duas espécies distintas de consumo do luxo: o do conformismo e o das sensações, advindos do que eles denominam “erotização dos objetos”. O primeiro caso — o do conformismo — está mais presente nas nações recém-chegadas ao mundo do consumo (de luxo), as chamadas “BRIC” (de Brasil, Rússia, Índia e China). Em tais sociedades, o conformismo resulta de uma espécie de obsessão/adoração das grifes, cujo valor repousa primordialmente na ostentação; no desejo mimético de apropriação (como vistos em T. Veblen e René Girard). É como se o consumidor declarasse a si mesmo (e principalmente aos outros): “Eu posso! Vejam como sou diferente, como sou especial!”.

O Estado de S.Paulo, The Wall Street Journal Américas, de 29 de julho de 2007, p. B10, publicou os principais resultados de um estudo da Capgemini e da Merrill Lynch envolvendo os gastos dos milionários (nomeando milionários aquelas

pessoas que dispõem para investimento recursos superiores a 1 milhão de dólares, sem contar sua residência primária). Empresas que vendem produtos de luxo as chamam de “compras da paixão” — os iates, obras de arte, jatos e jóias que os ricos compram para demonstrar sua riqueza. Apesar de a ostentação constituir uma linguagem universal, os ricos a expressam em dialetos próprios de acordo com os países de moradia. Segundo os autores do estudo, os milionários americanos privilegiam carros, jatos e iates, enquanto os milionários europeus e latino-americanos preferem arte, os asiáticos dividem seus gastos discricionários entre carros,iates, jóias e jatos, e finalmente jóias e relógios são o passaporte para a ostentação dos milionários do Oriente Médio, que apreciam demonstrações explícitas de riqueza.

Folha de S. Paulo, 17 de junho de 2007, Caderno Dinheiro 2, p. B9: sob o título “Riquistão concentra riqueza americana”, a reportagem descreve alguns dos principais aspectos da obra de autoria de Robert Frank, Richistan — A journey through the American wealth boom and the lives of the new rich. Ela descreve um país imaginário, que o autor denomina “Riquistão”, mas que congrega gente real: os homens mais ricos dos Estados Unidos, aqueles com fortuna superior a US$ 1 milhão. Frank elaborou uma radiografia do universo privado dos muito (muito) ricos, suas propriedades, relacionamentos e frivolidades. Um habitante desse exótico país, cujas posses somem entre 1 milhão e 10 milhões de dólares, pertenceria ao “Baixo Riquistão”. Se possuir entre 10 e 100 milhões de dólares, conseguirá fazer parte “tão- somente” do “Médio Riquistão”, e será encarado pelos que detêm fortunas acima desses 100 milhões de dólares meramente como um “novo rico”. Já os que possuem entre US$ 100 milhões e US$ 1 bilhão estão inseridos no “Alto Riquistão” e, ainda acima deste bilhão, existe um milhar que reside em “Billionaireville”. Cientes dessa segmentação sui generis, as grifes do luxo criaram conceitos especiais voltados para os exuberantemente ricos. O luxo de massa é destinado às duas primeiras categorias, e o hiperluxo para o clube do “mais de 100 milhões de dólares”, para o qual estão posicionados bens muitíssimo caros. Como cita a reportagem, seria a diferença representada entre os que possuem “meros” automóveis Jaguar e Mercedes (luxo de massa), e os Bentley e Marbach do hiperluxo. O curioso — para não dizer absurdo — dessa segmentação é que os detentores de fortunas de “apenas” 1 milhão de dólares não

se consideram ricos, pois sua comparação não se dá com a grande maioria do povo americano, mas sim com os detentores das fortunas acima deles.

Fazendo par com tal reportagem, a revista Veja, de 27 de junho de 2007, p. 100, publicou outra na mesma direção, trazendo como ícone as bolsas de mulheres. Algumas delas chegam a ser vendidas por até 37 mil reais, aqui no Brasil, e por 42 mil dólares, no exterior. O epicentro é o mesmo da matéria anterior. Uma vez que o luxo mais acessível está deixando de ser “tão” exclusivo, e não dá mais conta da diferenciação almejada por tantos endinheirados, faz-se necessário criar novas e irresistíveis categorias para emoldurar o status das pessoas “topo de linha”: o hiperluxo (vide ANEXOS 4 e 5).

Lipovetsky aponta que até os anos 198014, o superconsumo ostentatório das marcas vinha sendo pautado pela diferenciação intergrupal, ou distinção de classe (como vistos em Bourdieu, no Capítulo 1). A marca — mormente dos bens de luxo — prevalecia sobre o produto, reduzido a um veículo de exibição da marca, que operava como código social, servindo como passaporte para a proeminência e atribuição de identidade ao sujeito. “Verdadeira insígnia social, bastava então que o produto fosse ‘logotipado’” (LIPOVETSKY; ROUX, 2005, p. 119). Já a partir da década de 1990, nas nações européias, e em alguma parcela da sociedade americana, o glamour da marca (de luxo) é sobreposto pela fruição do bem, pela gratificação dos sentidos, paralelo a um cuidado maior com o corpo: “O vestuário já não cristaliza tanto os desejos de afirmação social em si; manter-se, manter o corpo em forma, jovem, é daí em diante mais importante que a aparência indumentária” (LIPOVETSKY; ROUX, 2005, p. 121).

Como o bem é produzido e quem o produz também imprimem significado e valor à mercadoria. Marcel Mauss (apud Jhally, 1987), em sua análise das dádivas dos Maoris, relata que eles acreditavam que as mercadorias eram compostas tanto pelas matérias-primas quanto pela força vital da mão-de-obra que as fabricava. Bens artesanais — produtos feitos à mão em vez de fabricados à máquina nesta economia altamente mecanizada e automatizada — são altamente valorizados. O que configura uma ponte para alguns bens de luxo, que apregoam como qualidade intrínseca responsável por boa parcela de seu alto preço o fato de serem feitos à mão.

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Lipovetsky se refere à Europa, particularmente à França. Tal fenômeno ainda se dá no Brasil, duas décadas depois.

Um bem de luxo normalmente é chancelado por uma grife: “[...] a pletora infinita dos tênis de grife desta vida, ou seja, os bens cujo valor reside precisamente no fato de que eles são socialmente escassos, visto que a grande maioria não dispõe (por enquanto) de renda para adquiri-los” (GIANETTI, 2002, p. 78). E também deve ser de alta qualidade (apesar de nem sempre o ser), caro (sempre) e raro: “A criança intuitivamente começa a valorar as coisas por sua utilidade e também por sua escassez [...] Tal como no mundo dos valores adultos, a raridade será um parâmetro para a posse e seus valores” (BONDER, 2006, p. 17).

Além desses três requisitos — qualidade, preço alto e raridade — há uma dimensão intangível que é fundamental na caracterização não só de um bem de luxo, como de todos os almejados por significativa parcela da população: a marca.