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Método de abordagem: elementos do paradigma da complexidade e o

Como forma de lidar com a recorrente e ampla diversidade de efeitos adversos das intervenções humanas, foram atribuídas ao processo de construção conceitual e empírico da pesquisa, algumas noções que contribuíram na tentativa de superação de pragmatismos que envolvem a resolução de questões ambientais. Assim, duas perpectivas foram essenciais. A primeira, originária da obra de Edgar Morin, a partir de leituras sobre o que se convencionou chamar de Teoria da Complexidade; e a segunda vem de parte de obra de Boaventura de Santos, em relção ao que ele denominou de Procedimento de Tradução.

Ao levantar as dificuldades de compreensão da realidade por meio do pensamento lógico-dedutivo e simplificador, em que a ambiguidade e incerteza são rejeitadas, Morin (2011) trouxe elementos para o “pensamento complexo”, uma alternativa (e anseio) de interpretação das relações humanas e das pessoas com a natureza, consideradas de difícil redução tanto epistemologicamente como em termos práticos. Entretanto, Morin (2011) não defende um abandono total dessa lógica, mas que ocorra uma combinação dialógica entre os segmentos que, constumeiramente, são separados, transgredindo-se os buracos negros onde esse modelo deixa de ser operacional. Ainda, Morin (2003, p. 13) afirma que, “[...] a hiperespecialização impede de ver o global (que ela fragmenta em parcelas), bem como o essencial (que ela dilui)”.

Dessa forma, abrem-se espaços para refletir diante das incertezas dos fatos naturais e sociais, partindo do ponto de que a natureza dos problemas (ou soluções) torna-se cada vez mais complexa. Complexa, não necessariamente complicada. A complexidade apresenta como desafio um encontro dos fios condutores entre processos fragmentados, em que oposições coexistem, complementam-se e retroalimentam-se, num anel gerador “no qual os produtos e os efeitos são produtores e causadores do que os produz” (MORIN, 1999, p. 27). Neste anel recursivo, Morin (1999) propõe a superação da noção de regulação pela de autoprodução e de auto-organização.

Diante do contexto em estudo, já se discutiu a dificuldade em abrir mão da noção de regulação, uma postura que ainda carece de emergência do ponto de vista das injustiças vivenciadas pelos seres humanos e não humanos, e que também incidem no meio físico. Contudo, a dimensão da autoprodução e auto-organização, do ponto de vista da importância da comunidade e identidade, são fortes imcrementos à emancipação.

Ainda no sentido de refletir para além dos fatos consumados no espaço habitado, e na tentativa de “compreensão” do processo estudado ao invés de insistir na ideia de “transformação” bilateral do espaço, aplicou-se a noção de anel retroativo também discutida por Morin (1999). O anel retroativo

[...] permite o conhecimento dos processos de auto-regulação. Rompe com o princípio de causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa [...] possibilita, na sua forma negativa, reduzir o desvio e, assim, estabilizar um sistema. Na sua forma mais positiva, o feedback é um mecanismo amplificador; por exemplo, na situação de apogeu de um conflito: a violência de um protagonista desencadeia uma reação violenta que, por sua vez, determina outra reação ainda mais violenta. Inflacionistas ou estabilizadoras, as retroações são numerosas nos fenômenos econômicos, sociais, políticos ou psicológicos (MORIN, 1999, p. 27).

Esse “princípio”, nos termos de Morin, foi essencial na elaboração do percurso de investigação empírica e na sua correlação com os dados obtidos por meio da análise de informações e produtos cartográficos ora gerados. Viu-se que diminuindo as suposições prévias de que o processo de realocação de pessoas seria necessariamente bom ou ruim ou se teria efetivamente impacto na supressão da natureza ao longo do tempo (pressuposto básico inicial), foi possível reelaborar a discussão no sentido de aproximar o processo da temática da desigualdade, tanto em termos sociais como territoriais (fragmentação).

Situou-se, dessa forma, as intervenções espaciais originárias de políticas habitacionais populares ou de interesse social, nesse contexto “inflacionista” ou “estabilizador”, pois independentemente do tempo em que são praticadas, elas revelam-se como um conjunto de ações em que se negligencia fortemente o seu potecial transformador, pelo fato de estarem severamente submetidas a externalidades econômicas. A negligência amplifica desigualdades, que retroagem no sentido da reaplicação de políticas públicas compensatórias. Fica explícita aí, a dificuldade (deliberada ou processual) de auto-regulação.

Esse caráter deliberativo, normalmente capitaneado pelas classes hegemônicas, e que se sobrepõe à espontaneidade das ocupações humanas e formas de vida com menor possibilidade de ação diante de decisões verticalizadas, torna imperativa a constante revisão das práticas e produtos técnico-científicos ou quaisquer exercícios de interpretação e difusão de informações sobre uma dada realidade. Imbuindo-se dessa preocupação, foi essencial a contribuição de Santos (2004), que sintetiza muitos de seus pontos de vista sobre as formas de ação em múltiplas instâncias, ao levantar a necessidade de realização de um “procedimento de tradução”, o qual,

Visa clarificar o que une e o que separa os diferentes movimentos e práticas, de modo a determinar as possibilidades e os limites de articulação e agregação entre eles. Dado que não há uma única prática social universal ou sujeito colectivo para conferir sentido e direção à história, o trabalho de tradução torna-se decisivo para definir, em cada

momento ou contexto histórico concreto, quais as constelações de práticas subalternas com maior potencial contra-hegemônico. (SANTOS, 2004, p. 127).

A operacionalização desse procedimento de tradução em associação com as reflexões baseadas na obra de Edgar Morin se deu por três vias principais: a observação de fatos precedentes e atuais, relativos à provisão habitacional e suas interelações com as mudanças no sítio natural do Município do Recife; o exercício de espacialização dos processos observados e a interação com sujeitos envolvidos.

Estas abordagens incluíram percepções mais abertas diante das difíceis questões a solucionar no amplo e interconectado espectro dos fenômenos ambientais, nesse caso, mais especificamente em sua interface com a habitação. Além disso, proporcionaram um caminho a partir de noções que se foram diluindo na ciência moderna, tais como a necessidade de se ter um rigor não necessariamente pautado na lógica matemática, da valorização da autocrítica, da responsabilidade social e da recuperação dos valores do pesquisador na atividade científica (LACEY, 2008, 2011).