• Nenhum resultado encontrado

Maricato (2017) afirma que, numa sociedade liberal, apenas retoricamente, uma vez que ainda é escravocrata na esfera da produção, a construção de habitações pelos próprios residentes – que responde por vezes à construção de partes inteiras das cidades – é o melhor exemplo dessa construção teórica do capitalismo. Segundo a mesma autora que levanta outras caracterizações do capitalismo nas cidades periféricas, nesse processo, torna-se clara a necessidade da ocupação de terrenos ilegalmente e da construção de moradias ignorando as regras e regulamentações da cidade, fatores resultantes dos baixos salários e condições de vida dos trabalhadores.

Klopp e Petretta (2017) mostram que indicadores podem revelar efeitos desses fatores no ambiente urbano, mas que basear-se apenas em indicadores negligencia a existência de problemas do ponto de vista local. As autoras afirmam que é primordial a associação complexa e contextualizada desses resultados na atividade de planejamento, em prol de uma maior inclusão social, menos danos aos ecossistemas e da produtividade econômica, sendo esses os principais desafios do nosso tempo, já que a maioria das cidades tem-se caracterizado como um misto de consumidores vorazes e produção de resíduos.

Observando-se a recursiva falta de consideração desses problemas em relação à construção legalizada ou não de habitações, que responde em grande medida pela expansão dos limites urbanos, pode-se afirmar que há negligência recorrente dos fatores que implicam na qualidade ambiental e de vida nos espaços de expansão.

Turner (1986) deu ênfase à falta da implantação de estruturas invisíveis que fazem parte da manutenção das estruturas visíveis que são construídas pelo homem, afirmando que questões relativas à localização apropriada das políticas habitacionais e a legalização da posse da terra, devem ser levadas mais a sério do que padrões construtivos. Ainda para este autor, as políticas públicas habitacionais apresentam muitas vezes um caráter enganoso e contraproducente, em que a quantificação excessiva exclui relações entre as coisas e as pessoas.

Estas perspectivas demonstram, por diferentes vias de interpretação, uma associação entre a formação espacial do meio urbano, danos ao ambiente, necessidade de ajustes nas políticas públicas, processos de fragmentação socioespacial e a importância de dar visibilidade às pessoas e áreas que são postas em uma condição de constante vulnerabilidade com relação a seus locais de moradia.

Também contribui para esse quadro de referências, a ideia de persistência de um modelo de provisão habitacional por parte do poder público, pelo qual as construções são reduzidas a ajustes orçamentários constantes, tendendo sempre à diminuição dos custos desde a elaboração dos projetos. Nessa “economia”, observando-se o padrão construtivo em geral dessas habitações, verifica-se pouca variação de padrões construtivos e pouca inovação no sentido de tornar as habitações mais equilibradas com o meio. E a justificativa de elevação dos custos da obra não é o maior empecilho seguramente, uma vez que inúmeras experiências de construções sustentáveis de baixo custo são amplamente divulgadas na atualidade.

Winston (2010) sintetizou uma série de barreiras (Quadro 1) à construção de habitações sustentáveis, que vão do plano da concepção às formas de atuação política para tal fim. Muitas delas, no caso do Brasil, seriam possíveis apenas com o efetivo cumprimento da função social da propriedade, prevista em lei, mas longe da realidade vivenciada por muitas famílias, ou da legislação ambiental básica para saneamento, dentre outros instrumentos legais ou normativos já existentes. Avaliaram-se essas barreiras como elevadas em relação ao processo em estudo no município do Recife.

Quadro 1 - Barreiras para implementação de habitações sustentáveis.

Barreiras

Falta de clareza conceptual quanto à natureza da habitação sustentável;

Inadequação da política de habitação com respeito à construção, concepção e utilização dos espaços de forma sustentável;

Inadequação da regulamentação das edificações;

Descumprimento das regulamentações e normas existentes;

Conhecimento e especialização limitados sobre métodos de construção ecológica e eco-produtos; Elevado grau de ceticismo em relação aos produtos da habitação verde;

Má postura diante da densidade urbana e o reaproveitamento de espaços mal utilizados que poderiam ser mais bem preenchidos nas cidades;

Má qualidade e design de algumas habitações em relação à densidade urbana; Não aproveitamento de moradias permanentemente vagas na cidade;

Atitudes negativas em relação à mistura social em termos territoriais; Ênfase na demolição em vez de renovação;

Desconsideração de interesses dos múltiplos grupos de interesse no planejamento de recuperações urbanas;

Falta de comunicação entre os agentes da provisão habitacional e os setores de planejamento; Falhas no reconhecimento das necessidades sociais e aspectos físicos;

Recursos limitados.

Diante de tais dificuldades, observa-se que, para considerar a possibilidade de transformações menos excludentes e a coexistência das diversas naturezas, as variáveis excluídas dos programas habitacionais devem ser reivindicadas. Para isso, devem-se somar às questões mencionadas, elementos gerais que, apesar de reconhecidos na literatura como entraves à provisão qualitativa de moradias, ainda se encontram distantes da realidade recifense, assim como em outras cidades. São eles:

a) a produção de habitações deve se inserir plenamente no contexto do direito à cidade e à propriedade da terra. Levando em conta a produção empresarial, a autoconstrução legalizada ou em ocupações tipificadas como irregulares e mais a promoção pública, não ocorre a consonância entre justiça ambiental e o acesso à terra diante da diversidade de iniciativas para a provisão habitacional. (HARVEY, 1980, 2011; DE SOUZA, 1998; RUTH; FRANKLIN, 2014).

b) a forma de produção e instalação de habitações é determinante na estética da paisagem, seus usos e ocupação. No que compete a implicações na configuração territorial e suas dimensões (CASTELLS, 1983; SANTOS, 1997, 2006), observar que, de acordo com o modelo e a escala de abrangência do planejamento governamental, bem como a forma de realização das intervenções habitacionais, ocorrem, espacial e socialmente, consequências que extrapolam os limites de sua implementação (KIRBY, 1995; FERNANDES; CHAMUSCA, 2014).

Estes fatos são potencializados na transferência de pessoas de uma área para outra, sobretudo, quanto maior for a distância entre locais de origem e de instalação, e dependendo do uso e ocupação que foi dado ao lugar onde residiam.

As justificativas para as transferências têm apresentado diversos tipos de argumentos pautados na recuperação do verde da cidade e de melhoria dos assentamentos precários. Entretanto, diante do contexto observado, há nitidamente dois fatores preponderantes: a demanda por espaços para especulação imobiliária e implantação de novos empreendimentos destinados às classes hegemônicas e também suas atividades, sobretudo no setor de serviços; e a sustentação de um imperativo de mobilidade que estes espaços exigem para realizar suas funções e também para “surgir”, pois a construção de vias por si só, já é utilizada como justificativa para a retirada de pessoas. Vê-se que esta mobilidade obviamente não se refere àquela necessária e inclusiva da maioria dos habitantes da cidade.

Trata-se mesmo de uma questão de “luta pela terra” em que as classes sociais hegemônicas pretendem usá-la para a extração da renda da terra; enquanto que as classes subalternas pretendem usá-la para fins de moradia.

Emergem aí as dissidências éticas dos diversos atores envolvidos na provisão de moradias, principalmente em se tratando das ações do setor público e empreendedores do setor privado, responsáveis por grandes intervenções. Para a efetivação de tais interesses, distantes da realidade das pessoas que habitam tais espaços, utilizam-se do uso do poder e da força, além do senso de oportunidade e conveniência diante das deficiências na legalização da posse da terra nessas áreas. As implicações psicológicas, as esferas da individualidade e da coletividade, que envolvem a identificação das pessoas com seu lugar (LAYRARGUES, 2000; CARLOS, 2003; GONÇALVES, 2009, 2014), lamentavelmente encontram-se subjugadas a estes interesses. Tais formas de ação fazem emergir a desigualdade social e a fragmentação territorial como externalidades corriqueiras em intervenções habitacionais.

Destacando a recorrente compassividade perante a desigualdade social, que segundo Santos (1982) é muitas vezes discutida em termos puramente estatísticos, observa-se que a reflexão sobre esses temas está muito condicionada a dados gerais sobre cidades ou países, traduzindo-se num afastamento de questões locais tais como: Onde ela cresce? Onde diminui? O que a incrementa? Quais as suas formas de manifestações territoriais?

Como externalidade constante na ação humana, a desigualdade social incorpora aspectos decisórios sobre a vida das pessoas, ao mesmo tempo em que determina configurações territoriais, podendo ser vista como resultado da desarmonia e desproporção entre as possibilidades de escolha e ação dos diferentes segmentos da sociedade. Desarmonia e desproporção, muito comuns no campo das possibilidades de “morar”.

A desigualdade pode ser colocada em diversas perspectivas que se complementam pela noção de que, em qualquer uma delas, há o que se pode observar como uma trajetória. No sentido literal, a trajetória corresponde a um percurso realizado por um corpo a partir de um sistema de coordenadas ou rota pré-definidos. Observando-se que nos processos decisórios, a trajetória é determinada por alguém ou grupo social e, dessa forma condicionada, seus efeitos “direcionados” ou “planejados” conduzem à desigualdade, os efeitos de decisões sobre o território tornam-se ainda mais perversos, conforme se tem verificado na prática dos reassentamentos involuntários.

Bauman (2013) apresenta a desigualdade como um “dano colateral” e aponta os riscos de ocupar a base da pirâmide da desigualdade, fazendo do indivíduo uma “vítima colateral”, assim como um soldado que corresponde a uma “baixa colateral” em forças expedicionárias. Para o autor, a denominação “colateral”, sugere que aquela ocorrência não foi levada em conta no planejamento ou se o foi, considerou-se o risco válido diante da importância do objetivo

militar. Tratando da perda de vidas humanas como resultado de ordens proferidas por quem está no comando em situações de guerra, afirma:

Muitos responsáveis por essas ordens tentariam eximir-se retrospectivamente da disposição de colocar em risco outras vidas e modos de subsistência, assinalando que não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos. O que se busca encobrir nesse caso é o poder de alguém, legítimo ou usurpado, de decidir qual omelete deve ser preparada e saboreada e quais ovos se devam quebrar, assim como o fato de que quem vai saborear a omelete não serão os ovos quebrados... Pensar em termos de danos colaterais é presumir tacitamente uma desigualdade de direitos e oportunidades

preexistente, ao mesmo tempo que se aceita a priori a distribuição desigual dos custos

da ação empreendida (ou, nesse sentido, de se desistir dela). Aparentemente, os riscos são neutros e não intencionais, e seus efeitos, aleatórios; na verdade, porém, os dados do jogo dos riscos são viciados. [...] A probabilidade de se tornar “vítima colateral” de algum empreendimento humano, ainda que nobre em seu propósito declarado, e de alguma catástrofe “natural” ainda que cega à classe, é hoje uma das dimensões mais marcantes e surpreendentes da desigualdade social – e esse fato diz muitíssimo sobre o status já baixo, mas ainda em queda, da desigualdade social na agenda política contemporânea. (BAUMAN, 2013, p. 12-15).

Visto isso, discutiram-se os territórios vividos pelas pessoas realocadas com base no conceito de comunidade, a fim de formar um contraponto às formas excludentes de racionalidade que têm marcado a provisão de habitação no ambiente urbano brasileiro, reconhecendo-se, previamente, o caráter profundamente desigual de seus efeitos para as classes subalternas, que também repercute na problemática ambiental.

Apesar da diversidade de acepções no campo sociológico, bem como do uso polissêmico do termo comunidade, observa-se que ele ainda possui alto poder de mobilização na realidade vivida pelas pessoas situadas em áreas classificadas como “de interesse social”. Na associação entre as noções de comunidade e território, acredita-se que há um bom caminho para a afirmação de novas perspectivas de ação.

3.2 A importância da comunidade na integração territorial e o reforço da identidade: