• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – ENTRE OS TUPI-GUARANI NA ALDEIA PIAÇAGUERA

3.1. O método qualitativo

Para a concretização do problema de pesquisa e o desvelamento da veracidade da hipótese: a baixa auto-estima dos professores, tomo referencialmente, a pesquisa de campo, realizada com os professores indígenas da aldeia Piaçaguera, da 1a. a 4a. série do ensino fundamental. A reflexão teórica, sólida e coerente, presente tanto na fundamentação teórica como na prática, visa apresentar uma contribuição científica sustentável e digna de todos aqueles que estão comprometidos com a ação educativa intercultural.

Como visto no Capítulo I, a cultura é vista como um sistema de diferenças e atividade de formação simbólica; um processo de traduções no qual as diferenças se fazem de acordo com a produção e recepção ideológica de signos culturais

O caráter intercultural presente na tese, fez com que eu como pesquisadora, recorresse a minhas próprias formas de representação, meus fundamentos éticos e estéticos e revele o senso político da minha pedagogia. Acredito que a metodologia intercultural necessite dessa atitude especial na motivação da experiência científica, a da observação do

significado de contexto, a dialética, a cooperação, o respeito à diversidade, a crítica e a liberdade no desejo de criar.

Coerentemente com a orientação científica, o método de pesquisa escolhido, o qualitativo, tem raízes antropológicas. BOGDAN E BIKLEN ([1982] 1992: 9) consideram que Franz Boas tenha sido o primeiro antropólogo a escrever especificamente sobre a antropologia na educação, ao publicar artigo sobre o ensino da antropologia na universidade, em 1898. O termo pesquisa qualitativa, no entanto, somente foi cunhado quando usado nas ciências sociais durante a década de 60.

Diferentemente de seus colegas, que acreditavam que a cultura estudada deveria corresponder às expectativas dos antropólogos, BOAS acreditava que o antropólogo deveria de estudar as culturas com a intenção de compreender como cada cultura era entendida por seus próprios membros.

Bronislaw Malinowski, fundador da antropologia funcionalista, também passava longos períodos no local estudado, a observar. Suas descrições de como obtinha suas informações e como era a experiência na pesquisa de campo, enfatizando a importância de compreender “o ponto de vista do nativo” ainda influem os pesquisadores contemporâneos (Idem:10).

Também a antropóloga Margaret Mead dedicou estudos à escola como organização e ao desempenho do professor, desenvolvendo conceitos, mais que métodos. Estudou como determinados contextos – tipos diferentes de escolas, a escola da cidade e a academia, atraíam determinados tipos de professores e como estes interagiam com os estudantes (Ibid.).

MEAD também é a antropóloga que por mais décadas incluiu as crianças e adolescentes em seus estudos. Até o final de sua carreira, perguntou-se o motivo de haver tão pouco interesse da academia pelas crianças e atribuiu ao fato de que no decorrer da

história européia, os cuidados com as crianças nem sempre terem sido os melhores e nem sempre as crianças terem sido sequer consideradas seres sociais completos, ou mesmo, seres sociais (LOPES DA SILVA [2001] 2002:12).

Do começo do Século XX, até os anos 30, a Escola de Chicago contribuiu de forma importante para o desenvolvimento do método qualitativo. O jornalista Robert Erza Park1, foi um de seus mais importantes pesquisadores, realizando estudos sobre problemas sociais, atitudes, comportamentos, a vida na cidade e problemas comunitários (BOGDAN e BIKLEN ([1982] 1992: 12).

No entanto, a partir da década de 30, até a década de 60, nos EUA, os estudos sociológicos na educação tornaram-se progressivamente quantitativos. Afetados pelos problemas da Depressão, sociólogos e antropólogos realizaram estudos importantes sobre as suas conseqüências, problemas raciais e da emigração. Porém à medida que os educadores se interessavam cada vez mais por quantidades, quantias e projeções; as estratégias qualitativas, como o uso de documentos históricos e relatos de vida, foram perdendo credibilidade (Ibid.).

Do fim da década de cinqüenta, destaco o livro do cientista inglês C. P. Snow publicado pela primeira vez em 1959, no qual criou a expressão “duas culturas”, para apontar diversidades entre cientistas e literatos. O escritor, ele próprio um físico que à noite escrevia e saía com amigos escritores, percebera que os humanistas não conheciam conceitos básicos da ciência e os cientistas não tomavam conhecimento das dimensões que eram caras aos humanistas, como as psicológicas, filosóficas, sociais e éticas, dos problemas científicos (SNOW [1959] 1995:25).

Ele percebeu que havia problemas sérios de comunicação entre esses dois grupos; como dificuldades de uso da linguagem, pois muitas vezes o que um dizia o outro não

1 Park era defensor da causa negra, em 1903 defendeu a tese de doutorado “A massa e o público” (MATTELART, 2000)

entendia, o mesmo acontecendo com relação à ação que cada um assumia diante dos problemas cruciais de sobrevivência da humanidade; por exemplo, na maneira de entender a situação dos países ricos frente aos mais pobres e frente à arte e à ciência.

SNOW (Idem: 37) estudara esses dois grupos e concluíra que uma cultura havia cessado de falar com a outra desde a década de 30 e que na década de 50, até a cortesia havia desaparecido. Culpava o racionalismo e a tendência à especialização; por estarem criando uma pequena elite, estreitando a visão dessas pessoas sobre a vida, criando preconceitos e gerando graves resultados para a educação, provocando reações discriminadoras e recriminadoras, mais que aprovadoras e conciliadoras, próprias da educação.

Finalmente, propunha que se saísse do estado de resignação e se repensasse a educação. Em contrapartida, recebeu críticas e ameaças de todas as partes do mundo, que o obrigaram a escrever, quatro anos depois, uma segunda parte do livro, que chamou de “Uma segunda leitura”, na qual fala dos insultos e dos elogios que recebeu de gente de muitos países; de como algumas pessoas se sentiram atingidas, por ele ter falado de sociedades favorecidas e desfavorecidas e aceitado que essa divisão pode apresentar-se de maneiras diferentes em outras sociedades (Idem: 128).

No segundo livro, SNOW (Idem: 128) explicou e reiterou o uso da palavra cultura no sentido antropológico, previu que surgiria uma “terceira cultura“, que ele chamou de interdisciplinar, a partir da confluência de áreas como história social, sociologia, demografia, ciência política, economia, psicologia, medicina e arquitetura e novamente chamou a atenção para a necessidade de mudanças na educação, que chegassem até a massa, que fossem capazes de cultivar pessoas para usufruir e produzir ciência, conhecer a experiência criativa, e assumir o dever de contribuir para diminuir o sofrimento de seus contemporâneos, que hoje chamaríamos de intercultural.

Os estudos de SNOW repercutiram sobre diversas áreas do conhecimento, influindo para diminuir o nível de racionalismo instaurado, e para o surgimento dos conceitos de transdisciplinaridade e interdisciplinaridade, da década de oitenta, bastante propagados durante a década de noventa, no Brasil.

Durante a década de setenta, o pensamento antropológico do brasileiro Paulo FREIRE ([1970] 1987:17) é outro fundamento importante nesta tese, pois ele não aceitava a separação entre teoria e prática, defendendo que toda prática educativa implica numa teoria educativa.

FREIRE (Idem: 11-12):via o ato de estudar como uma atitude frente ao mundo, não o ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las. Defendia a necessidade da prática, próxima à realidade do educando, dizendo,

Quanto aos outros, os que põem em prática a minha prática, que se esforcem por recria-la, repensando também o meu pensamento. E ao faze-lo, que tenham em mente que nenhuma prática educativa se dá no ar, mas num contexto concreto, histórico, social, cultural, econômico, político, não necessariamente idêntico a outro contexto (Idem: 17)

Para FREIRE, a linguagem também é cultura, ele propõe a educação como prática de liberdade, um ato de conhecimento em perspectiva crítica, de responsabilidade social e política, que jamais é neutra.

Atualmente, acredita-se que o método qualitativo seja o mais apropriado para entender o que ocorre em uma determinada cultura, pois as pessoas raciocinam e constroem conceitos em um determinado contexto, tempo e lugar (BOGDAN e BIKLEN, ([1982] 1992:28).

Os autores consideram que para que a investigação qualitativa aconteça em sua complexidade, cinco características devam fazer-se presentes, cada uma em potencialidade diferente:

Primeiramente, a pesquisa se realiza no local, ou seja, na fonte mesma onde as informações, pessoas, palavras, gestos, acontecem e o pesquisador é um instrumento-chave: a pesquisa de campo desta tese se desenvolve em aldeia tupi- guarani no litoral do Estado de São Paulo.

Em segundo lugar, é necessário entender as circunstâncias sócio-históricas de contexto: este item nos fez recorrer principalmente a José Mauro Gagliardi, John Manuel Monteiro, Manuela Carneiro da Cunha, Darcy Ribeiro, Carlos Fausto, Antonio Carlos de Souza Lima, Roberto Cardoso de Oliveira, Aracy Lopes da Silva e Florestan Fernandes, entre outros.

Em terceiro lugar, a pesquisa qualitativa é descritiva, portanto os dados coletados são palavras ou imagens, mais que números, o que me levou a fazer visitas semanais à aldeia, de agosto a novembro de 2004, a fim de conviver para melhor descrever as pessoas, situações, acontecimentos, fazer entrevistas, colher depoimentos.

Em quarto lugar, a pesquisa se preocupa com o processo em si: Nesse sentido, adotei o seguinte procedimento metodológico: as técnicas usadas durante o processo de coleta de dados foram: entrevista aberta, ou informal, pois na pesquisa qualitativa, as entrevistas chegam a assemelhar-se a uma conversa e visam principalmente a reflexão (SZYMANSKI Heloisa (Org.)2002: 15).

Contando com um roteiro organizador, gravei as entrevistas dos professores indígenas, supervisora, coordenador, vice-diretora, diretora regional e diretora do Núcleo de Educação Indígena do Estado de São Paulo, assim como alguns

depoimentos. Nessas ocasiões, estive atenta a desenvolver um registro minucioso e cuidadoso, fazendo anotações em caderno sobre os comportamentos dos entrevistados, inclusive os seus silêncios. Para os professores, também pedi que respondessem a um questionário por escrito, aplicado por mim mesma, durante uma de nossas reuniões, com perguntas abertas, o que me possibilitou agregar esse material aos dados colhidos nas entrevistas.

Fotografei todas as “reuniões” da experiência empírica e filmei algumas das soluções estéticas encontradas pelos professores.

Os documentos analisados foram documentos oficiais, mapas, estatísticas e livros didáticos da escola onde transcorreu a pesquisa-ação, auxiliando na construção dos acontecimentos e fornecendo o material para a análise das relações interculturais do contexto em estudo. Esses documentos não foram considerados verdades acabadas, nem solução, pois considero que se contextualizam temporal e espacialmente.

E em quinto lugar não há preocupação com resultados ou produtos, ou seja, trata-se de perceber a perspectiva dos participantes, de perguntar como as pessoas negociam o significado, como certos termos ou rótulos são aplicados, como certas noções tomam parte do que se entende por senso comum (Idem: 30-31).

Neste último caso, opto por adotar o pensamento de VYGOTSKY, o qual entende que o método é o instrumento e o resultado do estudo, já que para ele, estudar alguma coisa historicamente, significa estudá-la no processo de mudança. Portanto, estarei sim atenta aos possíveis resultados da investigação, pois se fará inserções, interferências que ocorrerão conforme a necessidade da relação com o grupo pesquisado ([1930-35] 1984:74).

Neste tipo de investigação, analisam-se os dados por indução; não tentando necessariamente provar as hipóteses conhecidas antes da pesquisa, mas sim a partir das mesmas, construir abstrações à medida que o processo acontece (Ibid.).

Inspiram as palavras de George E. Marcus, que diz que qualquer trabalho etnográfico é um documento de consciência histórica que reconhece a possibilidade de múltiplas recepções, a relevância de múltiplos discursos e as implicações políticas ([1986] 1999:166).

Também pelas palavras desse autor, diferencia-se a pretensão científica etnográfica, como crítica cultural:

This is what makes ethnography, long seen as merely description, at present a potentially controversial and unsettling mode of representation. Difference in the world is no longer discovered (…) but rather must be redeemed, or recovered as valid and significant, in an age of apparent homogenization and suspicion of authenticity, which, while recognizing cultural diversity, ignores its practical implications” (Idem: 167)

Como o objetivo da etnografia crítica é a exploração das condições sócio-históricas; os meios de expressão e as problemáticas dos valores presentes, são tidos como o questionamento estético e epistemológico que levam à tentativa de compreensão (Ibid.).

Busco entender melhor o que vem a ser um processo intercultural de educação, as estruturas de significação, a dinâmica em que as pessoas se movimentam, formam convicções, individualidades, solidariedades, como força ordenadora do sistema simbólico cultural e das questões humanas.