• Nenhum resultado encontrado

Para compreendermos as lógicas das racionalidades econômicas do campo do crédito rural6 a metodologia utilizada, primeiro trabalhou com uma abordagem sincrônica, que por suas características independe do período histórico específico selecionado. Nessa etapa trabalhou-se no sentido de tentar demonstrar como o espaço rural singulariza um tradicional instrumento econômico a ponto de desdobrar-se em um campo sociopolítico com particulares jogos de disputa. Foi o momento em que exploramos a noção de capital específico, objeto central de contendas e razão do campo existir. Desta forma, a inserção da economia rural e, consequentemente, de seus agentes na esfera financeira, através do crédito, apresentam para análise algumas questões de ordem estrutural típicas de abordagens sincrônicas.

Em etapa subsequente, com uma abordagem de teor mais diacrônico, foi trabalhada a noção de campo. Para compreender a lógica do campo, construído e controlado burocraticamente, abordamos o surgimento das normatizações que definiram seu funcionamento, que atravessaram as conjunturas específicas dos períodos de formação e crise, isto é, as condições externas ao campo. Como a situação macroeconômica do país e o momento político limitaram as estratégias de alguns grupos e propiciaram melhores oportunidades a outros. Destacamos quem eram os principais agentes e suas relações de força que formavam um padrão específico de práticas e discursos para legitimar suas posições e disputarem as melhores condições de reprodução do campo por meio do poder de disposição sobre as normatizações do crédito.

Como instrumento de análise substituiu-se o processo de identificação das disposições econômicas dos agentes e a respectiva construção de seu habitus econômico pela noção de “indivíduos eficazes” apresentada em Bourdieu (2006) e suas correspondentes racionalidades de gestão econômica desenvolvidas em Weber (2004).

Para Bourdieu (2006), os agentes eficazes são aqueles com peso suficiente para orientar efetivamente a política, neste caso específico a política de crédito rural, pois possuem propriedades que lhes permitem ocupar posições privilegiadas no campo e normalmente são designados de socialmente “importantes”. Os agentes eficazes (indivíduos e, por meio deles, instituições) foram delimitados como um conjunto de altos funcionários que ocuparam

6 Bourdieu (2006) propõe como forma de superar a visão a-histórica da ciência econômica a construção de duas “gêneses”: a formação das disposições econômicas do agente econômico, como forma de captar seu

habitus; e a formação do próprio campo econômico. Como argumentamos a seguir, optou-se por trabalhar nesta dissertação a formação do campo e dar outro tratamento à questão da formação das disposições econômicas.

posições estratégicas no espaço das principais instituições participantes do campo.

Isto posto, poderemos avaliar as correspondências entre as posições destes indivíduos na hierarquia institucional dos órgãos participantes do campo, seus discursos e tomadas de decisão com os respectivos padrões de racionalidade econômica na luta para conservar ou alterar as normas em vigor. Assim, agrupamos os agentes em grupos abstratos “tipo ideal” (WEBER, 2004), implicando num processo de simplificação e generalização da realidade.

A noção de indivíduos eficazes de Bourdieu (2006) proporciona um linque para trabalharmos as proposições de Weber (2004) em conformidade com a sociologia da ação. De acordo com os dois “princípios fundamentais” da sociologia da ação, sendo Weber um de seus principais representantes, todo fenômeno social é sempre o resultado de atitudes, de crenças, de convicções, e em geral de comportamentos individuais. Por sua vez, a explicação do fenômeno (o resultado) deve procurar a lógica dos comportamentos individuais (a causa) que estão em sua origem (BOUDON, 1995).

Em outras palavras, para se tentar explicar a lógica do crédito rural, enquanto fenômeno social, devemos proceder a análise das convicções e crenças que permeiam as ações dos indivíduos eficazes. Estas ações e seus aspectos subjetivos são agregados em categorias tipos ideais que concebemos aqui como padrões de racionalidade econômica. Há diferentes lógicas de ação dentro do campo. Até aqui seguimos com Weber. Entretanto, há conflitos entre os diferentes padrões de racionalidade que guiam os indivíduos nas disputas sobre os capitais que as relações econômicas do crédito rural têm a oferecer. A partir daí utilizamos recursos da abordagem Bourdiana.

O método da sociologia da ação muitas vezes é designado como individualismo metodológico devido a sua ênfase nas razões do comportamento individual. Importante distinguir neste momento o sentido metodológico que ressaltamos neste trabalho em contraposição a um sentido moral do individualismo. Como ressalta Boudon (1995), o individualismo no sentido moral é aquele que faz do indivíduo a fonte suprema dos valores morais em relação a terceiros. Já no sentido metodológico a noção de individualismo tem um significado de compreensão das razões que levam os agentes a fazerem o que fazem ou a acreditar naquilo em que acreditam. É por meio desta perspectiva metodológica que optamos buscar as razões e crenças dos indivíduos eficazes7 de Bourdieu (2006).

7 Fligstein (2009) trabalha com a noção de “atores estratégicos hábeis”, ideia similar a de “indivíduos eficazes” desenvolvida por Bourdieu (2006). Ele argumenta que os empreendedores institucionais “são atores estratégicos hábeis que encontram formas de induzir grupos muito diferentes a cooperar colocando-se na posição dos outros e criando significados que exercem apelo a um grande número de atores. Esses momentos

O corte histórico selecionado engloba o período de meados da década de 1960, quando é sancionada a “lei do crédito rural” (Lei 4.829/65), até fins da década de 1980, momento de maior crise do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR). O período de transição, entre os anos 1970 e 1980, marca a virada entre duas fases distintas do financiamento rural brasileiro.

A primeira fase, que vai até 1979, corresponde ao movimento de integração- consolidação do sistema de financiamento ao setor. Nesse período, o crédito rural cresceu vertiginosamente, com taxas de juros reais negativas e chegando a marca de 329% o aumento do volume disponível de recursos comparado ao nível do início do SNCR. Esse sistema surge como proposta política estruturada e, ao mesmo tempo, estruturante do campo que foi o carro chefe da modernização do setor rural brasileiro orientado por um projeto específico de desenvolvimento.

A segunda fase, a partir de 1980, é marcada por um conjunto de medidas das políticas monetária e fiscal como forma de lidar com os desequilíbrios da economia nacional decorrentes de um cenário mais amplo de crise internacional (KAGEYAMA, 1996). Foram medidas restritivas que atingiram diretamente as fontes de recursos do crédito rural. Já a partir da década de 1990, começa a era do agribusiness. Momento de grande crise econômica e mudanças políticas no país, situação em que as posições dos agentes dentro do campo se alteram e, consequentemente, as regulações e relações objetivas de disputa e legitimação. Entretanto suas relações formais ainda continuam submetidas ao SNCR.

O período de 1965 a 1990 engloba o “apogeu e crise” do SNCR, contexto em que ocorrem importantes mudanças no campo, tornando mais visíveis as lógicas dos comportamentos e disputas dos agentes.

Para auxiliar na percepção dos padrões de racionalidade econômica dos agentes, foi utilizada pesquisa bibliográfica produzida pelos “indivíduos eficazes”: produção teórica, palestras em seminários e encontros, entrevistas a jornais e revistas. Também foram realizadas entrevistas presenciais com cinco funcionários aposentados do Banco do Brasil que atuaram na área de crédito rural durante o período selecionado, totalizando 10 horas de gravação. Estes ocuparam cargos de segundo escalão dentro do Banco, atuando em diferentes regiões do país (São Paulo, Minas Gerais, Amazonas, Pará e Rio de Janeiro), hoje residentes em Brasília (DF).

são o objeto de muitos de nossos estudos empíricos da política, movimentos sociais, empresas e mercados” (FLIGSTEIN, 2009, p.72). Para Fligstein (2009), o comportamento dos “atores estratégicos hábeis” varia conforme sua posição no campo como também as mudanças no campo dependem de seu padrão de comportamento.

Com as entrevistas presenciais buscou-se identificar as crenças econômicas que o agente traz incorporada em si acerca do rural e da economia. Apresentaram problematizações importantes para compreender como as disposições individualizadas refletiam ou compunham a estratégia coletiva representada institucionalmente. Assim nos aproximamos das disposições que fundamentavam a crença nos conceitos utilizados e ações praticadas na rotina bancária acerca do crédito rural.

As disposições dos agentes dentro do campo são entendidas como esquemas práticos de pensamento, de percepção e de ação, que por sua vez, sustentam crenças sobre a economia e o rural, produtos de uma longa história coletiva reproduzidas, continuamente, nas histórias individuais. O sentido era de apreender, na expressão utilizada por Bourdieu (2005), as “crenças econômicas” de maior expressão presentes na política de crédito rural naquele período. As entrevistas também foram importantes para construção da formação (gênese) do campo. Além dos dados secundários proporcionados pela pesquisa bibliográfica, elas auxiliaram na percepção de qual era a crença que sustentava a existência do Sistema Nacional de Crédito Rural.

Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga (…) é explicar (…) os atos dos produtores e as obras por eles produzidas (BOURDIEU, 1989, p.64).

Enfim, utilizou-se o tema weberiano das mudanças históricas dos padrões de racionalidade econômica apoiada em elementos da teoria geral dos campos de Bourdieu para identificar o jogo e os conflitos específicos no processo de mudança das crenças e práticas econômicas do crédito rural no Brasil. Ressaltamos a consciência que a dicotomia entre padrões de racionalidade econômica é uma aproximação “tipo ideal” de padrões de disposições econômicas muito fluídas e que se interpenetram, não sendo observável “empiricamente” seus tipos puros.

3 O CRÉDITO RURAL COMO CAPITAL ESPECÍFICO