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Quando se trata da aplicação dos direitos fundamentais no mundo real, surgem situações que nem sempre permitem a consecução idealizada desses direitos, contrapondo-se teorias como a teoria do mínimo existencial e a teoria da reserva do possível.

O mínimo existencial, nos direitos fundamentais que protegem a vida, está relacionado com o direito à saúde, à integridade física e psíquica, à alimentação, ao direito à moradia e a outros de relevância para a garantia da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2010).

O mínimo existencial compreende não só as prestações materiais necessárias para a subsistência, mas aquelas que permitam uma vida com dignidade. No dizer de Figueiredo (2007, p. 189),

Além de derivar da noção de dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial também se fundamenta no princípio da liberdade; em princípios constitucionais como a igualdade, o devido processo jurídico e a livre iniciativa; nos direitos humanos; e nas imunidades e privilégios do cidadão. É delineado em termos qualitativos, como proteção daquilo que seja necessário à manutenção das mínimas condições de vida condigna, enquanto condições iniciais da liberdade, isto é, da garantia de pressupostos fáticos que permitam ao indivíduo agir com autonomia. Abrange qualquer direito, no que represente de essencial e inalienável, bem como compreende outras noções, entre as quais a ideia de felicidade do homem [...]. A noção de mínimo existencial releva nas pretensões à efetivação dos direitos sociais a prestações materiais, servindo como parâmetro que se contrapõe diante de eventuais objeções lançadas è eficácia jurídica e à efetividade social desses direitos. Dessa maneira, fundamenta a exigibilidade judicial de pretensões originárias, é dizer, a exigibilidade de um mínimo à subsistência digna, a uma moradia simples, à educação escolar, à formação profissional e a um nível mínimo de assistência médica.

A doutrina ensina que a ideia de mínimo existencial é precedente à positivação constitucional do direito fundamental, porque inerente ao ser humano e derivada do princípio universal da dignidade da pessoa humana, de forma que condiciona o próprio ordenamento jurídico. (FIGUEIREDO, 2007).

Ao mínimo existencial, por vezes, contrapõe-se a teoria da reserva do possível. Esta, inicialmente concebida pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, no início da década de 1970, foi importada para o Brasil, servindo de justificativa para que Estado se eximisse ou protelasse a consolidação de direitos que impliquem dispêndio de elevados valores financeiros, sacrificando os cofres públicos e dificultando a concretização de outras políticas públicas. A reserva do possível envolve a questão orçamentária e os recursos disponíveis. (FIGUEIREDO, 2007).

Segundo Maurício Jr. (2009, p.62), “A reserva do possível impõe um complexo balanceamento de razões, que envolve o conjunto de necessidades de dispêndios públicos, exigibilidade jurídica desses dispêndios e possibilidade fática de sua realização.” Nesse balanceamento, o gestor público deve garantir direitos fundamentais dentro do que o orçamento permite e, ao mesmo tempo, garantir o mínimo existencial para assegurar os padrões fundamentais para a garantia da vida. Para que haja a garantia da efetivação dos direitos sociais, são necessários recursos orçamentários, e muitas vezes esses recursos são limitados e escassos. De outro lado, deve-se assegurar o mínimo existencial. Há, pois, uma necessidade de ponderação. (MAUCÍCIO JR., 2009).

Uma concepção doutrinária diz que é cabível se utilizar do princípio da reserva do possível quando o valor do recurso empregado para atender a determinado fim extrapola o orçamento. Nesse sentido, comenta o doutrinador Cardoso (2009, p. 53) que a reserva do possível, “em princípio, pode ser um argumento aceitável para afastar o fornecimento de medicamento pelo Executivo, quando o valor do remédio ou do tratamento tiver um impacto significativo no orçamento público.” Cardoso (2009, p. 53) cita ainda que muitas vezes o Judiciário se pronuncia nesse sentido, afirmando que deve ser considerada a reserva do possível e também os limites para atender a determinados direitos fundamentais, pois é necessário efetivar os direitos fundamentais a todos.

Outra parte da doutrina enfatiza que eventuais dificulades financeiras dos entes federativos não deve afastar o dever estatal de cuidar da saúde e das condições de vida da população. Nesse sentido, é conveniente explorar o ensinamento de Krell (2002 apud FIGUEIREDO, 2007, p. 132):

A reserva do possível [...] passou a significar que os direitos sociais a prestações materiais depende da efetiva disponibilidde de recursos financeiros por parte do Estado – disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público.

Para Krell (2002 apud FIGUEIREDO, 2007, p. 132), os governantes e parlamentares utilizam da reserva do possível para fudamentar a não disponibilidade de prestações de serviços e materiais que garantam os direitos sociais para a população, como, por exemplo, o direito à saúde. Mas isso não deveria ser uma justificativa para o Executivo e para o Legislativo não efetivarem ou darem início a políticas públicas, descumprindo o que a Constituição Federal ordena. As políticas públicas devem estar voltadas a prestar à população o direito à saúde, como também à educação, à segurança, à alimentação e a outros itens

essenciais para a garantia do direito à vida, e também devem ser garantidas e iniciadas mesmo quando não há recurso suficiente.

Nesse sentido, Freire Júnior (2005, p. 74) comenta que os gestores devem destinar as verbas de outro fim específico, que não seja tão primordial à vida, para o atendimento da garantia do direito fundamental à saúde. Além do mais, é fundamental ter presente que é necessária a garantia de condições mínimas de existência, de sobrevivência, para a continuidade e a preservação da vida. Por sua vez, Lopes (2008 apud SARLET 2010, p. 351) discorda da tese de alocação de recursos de outro fim, dizendo:

[...] que o pedido além de logicamente possível, no sentido de ter referência na realidade, deve estar sustentado na efetiva disponibilidade material, ou seja, na existência propriamente dita dos recursos para atender a demanda, que não pode ser confundida com a decisão sobre uma determinada alocação de recursos, que, por sua vez, pressupõe opções sobre eventuais prioridades.

Os direitos fundamentais que têm como essência o mínimo existencial se encontram, muitas vezes, sem a devida proteção, prestação e garantia, pois o Executivo e o Legislativo utilizam a reserva do possível para justificar o não cumprimento dos direitos fundamentais, pela ausência e escassez de recursos. É necessário que se garanta e que se cumpra o que a Constituição Federal estabelece, pois de nada adianta ter uma Constituição se não é feito o que ela determina. Nesse ponto, Sarlet (2010, p. 351) esclarece:

[...] o que se aplica essencialmente ao direito à saúde, prestações inequivocamente tidas como necessárias à preservação da vida ou de uma vida com um mínimo de qualidade (portanto, com dignidade) podem ser extremamente onerosas, de tal sorte que o reconhecimento dos direitos subjetivos a prestação nesta seara (do mínimo existencial) não se fundamenta apenas na ausência de comprometimento ou no baixo comprometimento de recursos públicos, mas também na necessidade (e na imposição constitucional!) de se priorizar as demandas vinculadas ao mínimo existencial, inclusive no que diz com eventual redistribuição de recursos ou sua suplementação, inclusive no contexto de uma repartição da responsabilidade pelo corpo social, [...].

Todavia, é sabido que a justificativa do poder público em não fornecer medicamentos e tratamentos médicos pelo fato do alto custo não é argumento suficiente para justificar o não cumprimento do dever do Estado, por meio do princípio da reserva do possível. O não cumprimento do dever do Estado, que alega a reserva do possível pela falta de recursos, está aumentando o número de demandas no judiciário sobre um direito fundamental positivado na Carta Magna.

Quando se fala do direito à saúde, também está se referindo ao direito fundamental à vida, que é o fundamento de maior importância, e o poder público não pode se omitir do dever de garantir tal direito, de garantir o mínimo existencial, efetivando a garantia ao direito à vida e à saúde previstos na Constituição Federal.

4 O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS À POPULAÇÃO COMO CONSECTÁRIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Neste quarto capítulo, aborda-se a questão do acesso aos medicamentos como prerrogativa do direito fundamental à saúde, com enfoque sobre a assistência farmacêutica e a competência para o fornecimento de medicamentos por parte do poder público. Também será feita uma incursão à discussão sobre a atuação do Judiciário na busca da garantia do direito à vida e a saúde e sobre alguns posicionamentos do Supremo Tribunal acerca do acesso aos medicamentos.