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2 MOLDURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO FUNDAMENTAL À ASSISTÊNCIA

3.1 Mínimos sociais como trunfos

A discussão sobre os mínimos sociais no Estado brasileiro desembocou na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993; esta anunciou, em seu artigo primeiro, que “a assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de seguridade social não contributiva”; que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

Pode-se dizer, inclusive e com base em todo o exposto, que, desde 1988, o Brasil garante transferência de renda de base não contributiva a cidadãos (pessoas idosas e com deficiência) que necessitam desse direito social.

Nesta trajetória, o BPC, consagrado no artigo 20 da LOAS, importa em grande conquista política, concedendo a determinadas categorias de indivíduos um mínimo de proteção social através de uma prestação mensal.

As características individuais deste instituto, bem como seus limites e possibilidades serão tratados à frente, em maior profundidade; neste momento, o que se pretende é justificar o BPC como mínimo social, garantidor da sobrevivência digna de seus beneficiários a traduzir um mecanismo de proteção e justiça social.

Em breve incursão pelo direito português, Jorge Reis Novais88 pontua que, em razão do objetivo de promover a justiça social, o Estado desponta como um Estado Social; preocupa-se com a distribuição e a redistribuição do produto social, com a garantia de condições de existência aos cidadãos e com a prestação de bens, serviços e infraestrutura material como condição para o exercício dos direitos fundamentais.

Defende que os direitos fundamentais, sobretudo os direitos sociais, devem ser garantidos pelo Estado na medida comportada pelas circunstâncias objetivas; essa prestação estatal comporta um conjunto de prestações sociais tendentes a promover uma vida digna e protegida, independentemente da capacidade ou viabilidade da integração individual no processo produtivo, dos imponderáveis das condições naturais ou das desigualdades setoriais ou regionais.89

88

Contributo para uma teoria do Estado de Direito: do Estado liberal ao Estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 193-194.

89

Contributo para uma teoria do Estado de Direito: do Estado liberal ao Estado social e democrático de direito, p. 196.

Tornou-se famosa a metáfora dos direitos como trunfos, elaborada por Ronald Dworkin; em linhas gerais, a afirmação significa que uma meta coletiva de uma comunidade não é justificação suficiente para que esta mesma comunidade empregue a coercibilidade estatal para restringir ou lesar algum direito-trunfo.

O direito-trunfo, quando confrontado com a meta coletiva (argumento de política), em geral, vence; quando confrontado com um argumento de princípio seria necessário, considerados todos os aspectos, decidir qual grupo de argumentos receberá maior peso caso a caso. Nessa hipótese, haverá um caso difícil, no qual, dentre os direitos abstratos concorrentes, talhar-se-á um direito concreto.

Ronald Dworkin90 distingue diversas categorias de direitos; não é qualquer direito que adquire autoridade de direito-trunfo, estes direitos criados por lei devem ser aplicados pelo Poder Judiciário não como uma questão de política, mas como uma questão de princípio, sob pena de ferir a igualdade.

Os direitos-trunfo são aqueles preexistentes, identificados em uma comunidade de princípios, uma comunidade personificada, cujo elo entre as pessoas é a fraternidade e não um mero acidente geográfico ou uma mera convenção.

A identificação de tais direitos ocorre com base na ligação substantiva com o seu fundamento, sua concepção liberal91 de igualdade, traduz igual respeito e consideração aceito por todos, com exame da distribuição dos direitos, não podendo, em regra, serem reconhecidos a um grupo e não a outros.

No caso dos Estados Unidos, alguns direitos-trunfo figuram, também, no texto da Constituição. Ronald Dworkin92 não oferece uma lista dos direitos-trunfo, também não concebe uma fórmula mecânica que permita a sua identificação. Reconhecer um direito-trunfo é uma tarefa interpretativa, para a qual é imprescindível assumir a comunicação entre a moralidade e o direito.

Jorge Reis Novais93 reforça a ideia de Ronald Dworkin de que ter um direito fundamental, em um Estado de Direito, equivale a ter um trunfo num jogo de cartas;

90

O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 266.

91

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, 419- 421

92

O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 456. 93

Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 17. [...] ter um direito fundamental significará, então, ter um trunfo contra o Estado, contra o Governo

democraticamente legitimado, o que, em regime político baseado na regra da maioria, deve significar, afinal, que ter um direito fundamental é ter um trunfo contra a maioria, mesmo quando esta decide segundo os procedimentos democráticos instituídos. A imagem dos direitos fundamentais como trunfos remete, nesse sentido, para a hipótese de uma tensão ou, até, uma oposição – dir-se-ia insuperável – entre os direitos fundamentais e o poder democrático, entre o

importaria posições jurídicas individuais em face do Estado e condições para regular o funcionamento da democracia; isto porque os direitos fundamentais servem para afastar qualquer pretensão estatal de impor ao indivíduo restrições em sua liberdade e autonomia individual em favor da obtenção de um bem de uma comunidade como um todo. Nas palavras do autor lusitano94:

O princípio da dignidade da pessoa humana acaba, assim, por constituir o fundamento da concepção dos direitos como trunfos, porque é dessa igual dignidade de todos que resulta o direito de cada um conformar autonomamente a existência segundo as suas próprias concepções e planos de vida que têm à luz do Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana, o mesmo valor de quaisquer outras concepções ou planos de vida, independentemente da maior ou menor adesão social que concitem. Daí resulta a inadmissibilidade de a maioria política, mesmo quando formada democraticamente, impor ao indivíduo concepções ou planos de vida com que ele não concorde, por mais valiosas que essas concepções sejam tidas pela maioria. Essa tentativa seria, não apenas moral e politicamente inaceitável, como, sobretudo, e para o que aqui nos importa, juridicamente vedada, já que constituiria uma restrição do livre desenvolvimento da personalidade inadmissível à luz do princípio da dignidade da pessoa humana e, enquanto tal, constitucionalmente rejeitada.

A ideia de direitos fundamentais como trunfos é uma exigência do reconhecimento da força normativa da Constituição, da necessidade de levar a sério os direitos constitucionalmente protegidos pelo legislador.A compreensão de direitos como trunfos significa a proteção de todos os direitos fundamentais do cidadão contra restrições provindas de tentativas de imposição de concepções particulares ou de doutrinas sustentadas no apoio de maiorias políticas, sociais, culturais ou religiosas.

É um recurso voltado à proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos ou grupos cuja exclusão e marginalidade não lhes permitam a possibilidade de influenciarem as escolhas governamentais e a capacidade de garantia dos seus direitos fundamentais pelos meios comuns de participação política assentadas na democracia.

O Estado de Direitos Fundamentais, segundo Jorge Reis Novais95, exige a democracia, como consequência imposta pelo reconhecimento do princípio da igual

Estado de Direito e democracia.

94

NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. p. 28-31. 95

dignidade de todas as pessoas que estrutura o edifício do moderno Estado de Direito.

O princípio da dignidade humana provém de exigências de igualdade e liberdade individual, que conduzem de forma direta à adoção da regra da maioria como princípio elementar de funcionamento do sistema político, pelo que, à luz dessa construção, se não houver democracia não há verdadeiro Estado de Direito.96

No entendimento de Novais, a metáfora dos trunfos tem a sua cunhagem em Dworkin, para quem o direito como trunfo significa que as posições jurídicas individuais, se amoldam ao direito natural de igual respeito e consideração, funcionando como trunfos contra preferências externas, especificamente contra qualquer pretensão estatal em impor ao indivíduo restrições da sua liberdade em nome de concepções de vida que não são as suas e que, por qualquer razão, o Estado considere como merecedoras de superior consideração.

Fala-se em direitos como trunfos que protegem os bens de liberdade e autonomia contra decisões políticas, ainda que estas decisões pretendessem de algum modo, justificar a necessidade de limitação da liberdade individual em nome da obtenção do bem da comunidade como um todo ou de uma concepção particular da vida boa.97

O respeito ao texto constitucional e aos direitos fundamentais, bem como a necessidade do controle judicial de constitucionalidade é a chave mestra para a realização das garantias como forma de promoção da justiça social; neste sentido explica Eduardo Cambi98:

Em uma sociedade justa e bem ordenada, as leis não podem comprometer realização dos direitos fundamentais. Sendo tais direitos fundamentais trunfos contra a maioria, não poderia essa maioria, mas um órgão independente e especializado deveria ter a competência para verificar a existência de ações ou omissões contrárias à Constituição. A jurisdição constitucional representa a grande invenção contramajoritária, na medida em que serve de garantia dos direitos fundamentais e da própria democracia. Caso contrário, se a jurisdição constitucional não existisse ou não detivesse os poderes que tem, ficando a maioria democrática na incumbência de afirmar a prevalência concreta de direitos em colisão ter-se-ia que negar a ideia de que os direitos fundamentais são

96

NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria, p. 19. 97

NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria, p. 28. 98

Neoconstitucionalismo e neoprocesualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e

trunfos contra a maioria e questionar a própria razão de ser dos mesmos direitos fundamentais.

A preocupação doutrinária moderna com a justiça social leva, portanto, ao reconhecimento que, ao menos em níveis mínimos, os direitos sociais devem ser garantidos, pois seriam eles trunfos contra a maioria.

Os critérios de Ronald Dworkin99 repousam na releitura do liberalismo, a partir do referencial de uma ética comunitária e da prevalência do principio da igualdade, fundados nos pilares da Integridade e da indissolubilidade entre o direito e moral.

Mais especificamente no âmbito da dogmática constitucional brasileira, percebe-se uma tensão entre o direito à igualdade e o direito prestacional previsto no art. 203, V, da CF/88, disciplinado pelo art. 20 da lei 8742/93, que se consubstancia no Beneficio da Prestação Continuada.

Recuperando as principais decisões do STF sobre tal benefício, o convite que se faz, na análise e observação dos julgados jurisprudenciais da Corte Suprema sobre o assunto, é a ponderação sobre quais seriam os fatores determinantes para uma decisão judicial justa, a começar pelo fato de que o julgador esteja atento aos limites das normas gerais e abstratas e sensíveis ao caso concreto, de modo que possa garantir ao cidadão tratamento com igual respeito e consideração.

Propõe-se, ademais, a possibilidade de se traçar um paralelo entre as necessidades básicas e os mínimos sociais a fim de que não se deixe de lado, o posicionamento de alguns autores100, no sentido de que o modelo mais igualitário para a efetividade do princípio da universalidade seria levar em conta que as necessidades básicas podem representar, em última instância, a abertura ao caso concreto, o que pode não ocorrer na fixação de padrões abstratos como o mínimo social ou existencial.

99

O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 200.

100

Neste sentido: LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos direitos fundamentais sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006; PENALVA DA SILVA, Janaína Lima; DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. Política Assistencial, Orçamento e Justiça no Benefício de Prestação

Continuada. In: DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; BARBOSA, Lívia (Org.). Deficiência e