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1. Música e música na escola: significados, usos e funções

1.4. A música na escola: um breve histórico

Para compreender melhor as funções atribuídas à música no contexto escolar, buscou-se fazer uma breve retrospectiva histórica da música na educação a partir da Idade Média na Europa. O currículo da educação medieval foi inspirado no modelo grego21 e era composto pelo estudo da música, juntamente com a aritmética, a geometria e astronomia. Essas quatro disciplinas formavam o quadrivium, que era dirigido ao ensino superior, contemplando as ciências da natureza e junto com o trivium (gramática, retórica e dialética), o currículo mais comum da época, compunham as Sete Artes Liberais. (CAMBI, 1999; FONTERRADA, 2003; GAUTHIER, 2010; TOMÁS, 2005).

O pensamento aristotélico e platônico, foi recuperado, na Roma medieval, a partir da tradução dos escritos gregos, por Boécio22, Cassiodoro23, Santo Agostinho24 e tradutores árabes, mas ainda estava longe de ser uma reprodução fiel do conhecimento grego, já que não se sabe em que condições essas traduções teriam sido realizadas. De qualquer maneira, a música continuava a ocupar um lugar de destaque no pensamento medieval, sendo que a prática musical ainda mantinha um teor moralizante e a sua teoria era vista como ciência e se constituía como um ramo da filosofia. Além desses traços deixados pela cultura grega, a música na Idade Média, com o advento do cristianismo e a dissolução do politeísmo, passa a ser expressão da fé cristã, sob a ação da hegemonia do monoteísmo religioso. A

21 O modelo de educação proposto por Platão previa o estudo das disciplinas de: música, ginástica e

gramática no nível elementar e no nível secundário de: aritmética, astronomia, geometria e música. Aristóteles aprofundou os estudos sobre a música no período em que frequentou a Academia de Platão, e posteriormente, ao fundar o seu próprio Liceu (335 a.C.), organizou um currículo que levasse a atingir a virtude da sophia e para tanto, os homens livres (os únicos que tinham direito à educação), deviam ser educados “a viver no ócio”. Essa educação previa o “controle do corpo e dos apetites” antes de “passar à instrução” e “sete anos [...] seguindo quatro disciplinas (gramática, ginástica, música, desenho) serviam como ‘propedêutica’ para a filosofia”. (CAMBI, 1999, p. 92).

22 Boécio (480 d.C.-

525 d.C.) “em seu tratado De institutione musica, reúne tudo o que fora escrito até então a respeito de música, sistematizando diferentes teorias”. (FONTERRADA, 2003, p.24).

23 Cassiodoro (480 d.C.-575 d.C.), teólogo e escritor, organizou um compêndio das Sete Artes

Liberais que se tornou um verdadeiro manual nos mosteiros.

24 Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.) foi um dos principais responsáveis pela síntese entre o

pensamento filosófico clássico e o cristianismo, iniciando a tradição platônica no surgimento da filosofia cristã.

ideia de escola como unidade de ensino, se consolidou na Europa durante a Idade Média, e tinha como característica, ser “um meio moral organizador”, cuja direção moral era a de cristianizar. (GAUTHIER, 2010). Inicialmente, a música era ensinada nos mosteiros e para “suprir a necessidade de seus coros”, as instituições cristãs arregimentavam as crianças com boa voz. Formavam-se assim, as primeiras escolas de ensino de música, as scholae cantori, que eram voltadas, prioritariamente, para a formação de cantores. (FONTERRADA, 2003, p.30).

Segundo Fonterrada (2003, p. 30), a partir da invenção da notação musical25 pelo monge beneditino Guido D’Arezzo (século XI), “o aprendizado teórico-prático prepondera sobre o teórico, invertendo a ênfase dada por Boécio à teoria sobre a prática. O que é ‘científico’ é, agora, descartado”.

A notação musical permitiu a manutenção dos registros da música litúrgica produzida desse período, que eram guardadas nos mosteiros e garantiram o desenvolvimento, tanto da teoria musical ocidental, quanto da música vocal. Já a música profana, de caráter pagão, era quase que exclusivamente de tradição oral, e incluía a prática do canto, do alaúde, da flauta e da lira. Os instrumentos musicais apenas acompanhavam a música vocal, dobrando-a ou substituindo algumas delas. Não havia um critério definido ou um modelo a ser seguido para a utilização desses instrumentos em grupos musicais. Esse “modelo” só existia para o ensino da música vocal. Somente após o desenvolvimento da polifonia26 e do aperfeiçoamento das obras corais é que ocorrerá também o desenvolvimento da música instrumental, mudando consequentemente, o lugar da música na educação. (FONTERRADA, 2003; TORRES, GALLEGO, ALVAREZ, 1997).

No período renascentista (séc. XVI), surgiram, na Itália, as primeiras escolas de formação básica em música, cujo currículo tinha um grande número de disciplinas que objetivavam a formação profissional e ficaram conhecidas como conservatórios. Os conservatórios também eram chamados de Ospedale (hospitais)

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Guido d’Arezzo criou o nome das notas musicais a partir das sílabas iniciais dos versos de um hino a São João Batista. Ut queant laxis (Que os teus servidores cantem)/ Resonare fibris (Em voz

vibrante)/ Mira gestorum (Os gestos admiráveis)/ Famuli tuorum (das tuas grandes ações)/ Solve polluti (Perdoa falhas graves)/ Labii reatum (De seus lábios vacilantes)/ Sancte Johannes (São João). Por não acabar em vogal, a sílaba ut foi substituída por Dó, de Dominus (Senhor) e a nota si formou-

se da junção do S de Sancte com o i de Johannes (j=i).

26Polifonia significa “vozes múltiplas, para a música em que duas ou mais linhas melódicas (i.e.,

e eram, “na verdade”, orfanatos que, além de abrigarem as crianças, funcionavam como escolas de música. Fonterrada (2003) explica que [...] “o aparecimento dos Ospedali destinados à educação musical de crianças e jovens acompanha a tendência da época e a visão de mundo da sociedade, que reconhece sua responsabilidade na formação de seres humanos”. (p.39).

É no século XVI que a música instrumental ganha autonomia no mundo ocidental, constituindo os primeiros passos em direção à música orquestral. A música passa a ser pensada, pelos compositores, independente da existência de um texto para servir de “guia” ou referência para as suas criações sonoras musicais, “valendo-se exclusivamente de seus recursos técnicos e seus meios expressivos”. (TORRES, GALLEGO, ALVAREZ, 1997, p. 110, tradução nossa).

A música religiosa católica era baseada na polifonia vocal contrapontística, na qual as melodias simultâneas deviam ser cantadas buscando-se um todo harmonioso. A única exceção era para o órgão, dada a sua utilização como instrumento privilegiado pela igreja católica, para o acompanhamento da liturgia. No entanto, o sistema musical proposto pelas instituições católicas condenava o uso de alguns intervalos, principalmente o trítono27, considerado pela igreja, desde a Idade Média, o “som do diabo”, capaz de provocar reações comportamentais indesejadas e consideradas inadequadas no contexto da doutrina católica. Além disso, não havia a possibilidade de participação da comunidade nos cânticos da igreja, que ficaram restritos ao coro, desde a implantação do canto gregoriano no século VI. Uma importante mudança ocorre a partir da Reforma Protestante, promovendo transformações tanto na música quanto na educação. (MEDAGLIA, 2008; WISNIK, 2007).

Martinho Lutero28 (1483-1546) foi a figura central da Reforma Protestante, iniciada na Alemanha, que contribuiu para o desenvolvimento dos ideais de democratização do acesso e laicização da educação, já que Lutero defendia que a responsabilidade pela educação deveria ser transferida da Igreja para o Estado e ser

27 Cf. Nota 15

28 Martinho Lutero era monge da ordem de Santo Agostinho, foi professor de teologia e principal

figura da Reforma Protestante. Em 1517, Lutero contestou através de 95 teses, diversos pontos da doutrina da Igreja Católica. O Papa Leão X e o Imperador Carlos V pediram para que retirasse seus escritos, e a recusa de Lutero resultou em sua excomunhão e condenação.

de caráter obrigatório. Atribuía grande importância à música e incentivava a participação ativa da comunidade, através do canto durante os cultos. Diferentemente do canto gregoriano, a música protestante era composta por melodias simétricas e regulares, fáceis de serem cantadas e era constituída por muitas canções populares com textos religiosos ou cantos gregorianos modificados e cantados em alemão. A participação da comunidade nos cantos litúrgicos protestantes não deixava de ser uma forma de educação musical, ainda que elementar. A participação musical nos cultos tornava essa “educação musical”, de certa forma, acessível a todos. (CAMBI, 1999; MEDAGLIA, 2008).

A Reforma Luterana influenciou a música na França e na Inglaterra, mas não na Itália, que permanecia sob a influência da Igreja Católica. No mesmo período, fora do âmbito das igrejas, a música profana também revelava a sua importância e se desenvolvia patrocinada pela nobreza, nesse caso, mesmo na Itália. Medaglia (2008) explica que os músicos italianos já haviam criado, no século XIV, uma forma de composição polifônica profana, chamada balada, inspirada em melodias tradicionais dos trovadores, além do madrigal italiano, cantado a duas vozes ou tocado por um instrumento. Torres, Gallego e Alvarez (1997) afirmam que o Madrigal procurava acentuar o sentido dramático e poético dos textos, constituindo um novo gênero lírico-cênico-musical: o melodrama, precursor da ópera. Seguindo este percurso, novas formas musicais profanas surgiram no Renascimento, com características próprias e diferentes das vocais, conforme os instrumentos musicais foram se desenvolvendo, ganhando uma complexidade cada vez maior. Os instrumentos mais utilizados na música profana eram o alaúde, o órgão e o cravo, além de pequenos conjuntos. O ensino da música profana era realizado na forma de mestre e discípulo.

A música do período barroco atingiu o seu ápice com as obras de Johann Sebastian Bach (Eisenach 1685 – Leipzig 1750), considerado o pai do tonalismo29 moderno e Georg Friedrich Händel (Halle 1685 – Londres 1759). Com o surgimento do violino, compositores como Antonio Vivaldi (1678-1741), Arcangelo Corelli (1653- 1713), Tommaso Albioni (1671-1750) e Giuseppe Tartini (1692-1770) passaram a compor para este instrumento de forma a privilegiá-lo em suas obras, levando a

música a um novo nível: a busca pela virtuosidade técnica. (FONTERRADA, 2003; MEDAGLIA, 2008; TORRES, GALLEGO, ALVAREZ, 1997; WISNIK, 2007).

Os acontecimentos que culminaram na Revolução Francesa (1789) provocaram mudanças importantes no campo da educação e consequentemente, da educação musical. É a partir da Revolução Francesa que a música passa a ter realmente seu lugar na escola, uma escola laica e pública, voltada para a educação do povo. Esse processo se inicia em 1762, com um decreto da realeza francesa proibindo a Companhia de Jesus de ter escolas na França e interditando todos os prédios administrados pelos padres jesuítas, que passaram a ser públicos. Nesse mesmo ano, Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) publicou o Emílio, uma obra sobre educação, na qual descreve uma educação que deve se constituir a partir da natureza da criança, propondo um retorno às chamadas virtudes naturais. Nesse sentido, a música se mostrava como um recurso adequado para o desenvolvimento da sensibilidade, contemplando também: a moral, o intelecto, a sociabilidade, a sensação e a estética. (CAMBI, 1999; FONTERRADA, 2003; FUCCI-AMATO, 2012). Segundo Fonterrada (2003), além de Rousseau, Pestalozzi (1746 -1827) Friedrich Herbart (1776 -1841) e Froebel (1782 -1852) defenderam a presença da música na escola e fizeram propostas de educação centradas na criança. Eles foram os precursores dos métodos ativos30 em educação musical.

A primeira escola particular de ensino profissionalizante de música foi inaugurada na França em 1794, o Conservatório Nacional Superior de música e Dança de Paris. Esse modelo de escola de música se espalha por toda a Europa a partir do século XIX, chegando aos Estados Unidos, Canadá e Brasil.

1.5. A música nas escolas brasileiras

A educação musical se faz presente no Brasil desde a vinda dos Jesuítas, em 1549, trazidos pelos primeiros colonizadores portugueses. A música era utilizada para catequizar os indígenas que, em pouco tempo, assimilaram a tradição musical erudita europeia. Essa assimilação foi facilitada porque as manifestações tribais, culturais e os rituais tinham forte ligação com a música, mas isso não isentou os missionários da Companhia de Jesus31, da surpresa com a facilidade com que os indígenas aprendiam os cânticos dos autos e das celebrações das missas. A educação musical era parte importante na educação proposta pelos Jesuítas. As escolas dos jesuítas seguiam o modelo pedagógico proposto no documento escrito por Santo Inácio de Loyola (Fundador da Companhia de Jesus), o Ratio Studiorum, que além de normatizar o currículo, continha orientações para a formação dos professores. A música era componente obrigatório do currículo em toda a formação básica e sua prática foi mencionada nos autos preservados da Companhia de Jesus. (FUCCI-AMATO, 2012; MANACORDA, 1999; MEDAGLIA, 2008).

Com a Reforma Pombalina32 e a expulsão dos Jesuítas do Brasil, em 1759, o ensino de música realizado nos colégios inacianos, passou a ser incumbência dos mestres de capela33 organizados em irmandades, já que eram poucos os padres- músicos. No período após a Reforma, a música começou a ser vista como um conhecimento específico, de ordem prática, que devia ser ensinado em conservatórios, escolas confessionais e em aulas particulares nas residências da elite e não mais, na escola. As manifestações musicais no período colonial tinham a influência indígena, negra e europeia. E o seu ensino visava à formação moral e profissional (para os ofícios da igreja) dos indígenas, e para os negros, a preparação

31 A Companhia de Jesus foi fundada em 1534, por Santo Inácio de Loyola, com um forte propósito

de enfrentar as críticas reformistas e a expansão do protestantismo. A educação foi o caminho seguido pelos Jesuítas para reagir e ganhar novos adeptos do catolicismo.

32 A Reforma Pombalina diz respeito a uma série de medidas tomadas por Marquês de Pombal,

procurando modernizar a administração pública do Brasil e entre elas, a proclamação da libertação da escravidão de todos os índios do Brasil, em1755 e a expulsão dos Jesuítas, em 1759.

33 Os mestres de capela eram os responsáveis pela música nas igrejas e não precisavam ser

necessariamente, religiosos. Mais tarde, o termo passou a designar a função do maestro de uma orquestra ou coro. A função previa inclusive os cuidados administrativos referentes às atividades musicais.

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