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2 2 1 Música no contexto da Casa das Rainhas

No documento As mulheres da família real MO (páginas 87-90)

Tendo como ponto de partida a constituição e o estudo dos Anexos III, IV e V, dedicados aos dados recolhidos em fontes documentais, podemos apresentar um primeiro retrato hipotético das vivências musicais, bem como da existência de uma prática musical, e sua evolução, no seio da Casa das Rainhas ao longo do período em estudo.

Em primeiro lugar, embora não seja geralmente contemplado pelos estudos musicológicos, principalmente baseados em fontes escritas, não podemos ignorar um acto natural para o ser humano, principalmente para uma mãe: o da transmissão oral. É fora de dúvida que houve da parte das diversas rainhas consortes o ensino informal do canto e uma transmissão oral da sua cultura (espanhola, francesa e germânica), nomeadamente através das canções de embalar, um papel assumido também pelas diversas aias, normalmente de origem portuguesa, ao serviço das infantas, bem como pelos restantes membros femininos, fossem estrangeiras ou portuguesas, vivendo na esfera imediata das infantas.

«A aia, as professoras, sob a assistência da mãe tão cuidadosa da educação dos filhos, que queria em aposentos contíguos aos seus, ensinavam-lhe a leitura, a escrita, a música, o canto, bordados e as orações.213»

A educação das infantas através de uma transmissão informal oral é aceite no que diz respeito ao ensino das línguas. Como é sabido, a infanta D. Maria Bárbara sabia falar o alemão e o inglês graças ao ensino informal da sua mãe. O mesmo pode ser considerado no que diz respeito ao ensino de uma prática vocal informal, uma ideia que é reforçada pela presença na Casa das Rainhas de um oratório privado, onde se assistia a serviços litúrgicos de carácter íntimo assegurados por eclesiásticos contratados pela rainha. (Não foi encontrada documentação acerca da existência de uma capela privativa pertencente à rainha.) As infantas, e também os infantes na sua infância, deveriam assistir aos ofícios privados e cantar durante as orações. Está em causa uma aprendizagem por imitação daquilo que ouviam à sua volta. Para além da aprendizagem dos cantos litúrgicos, também se ouviriam cantos para romper a monotonia durante os momentos de actividades manuais, como os bordados, proporcionados pelas damas ao serviço da Casa das Rainhas. Todo este universo de ensino informal oral da música não se encontra referenciado nas fontes escritas, mas pelo facto de não o ser não significa que não existisse enquanto prática informal da música no quotidiano dos membros femininos da família real. No tempo de D. João IV, os monarcas passavam momentos do dia com os(as) infantes(as), nomeadamente durante a ceia, hábito da corte ducal mantido na corte real. Nessas ocasiões, o rei tocava para a sua família ou conversava

sobre a sua livraria, participando desta forma na educação musical informal dos seus filhos. Embora não tenham sido encontrados documentos sobre contratação de mestres de música para os infantes, sabemos que D. Teodósio tinha pouca aptidão para tocar instrumentos214. A ausência de provas documentais, ou simplesmente o facto de ainda não terem sido descobertas, não nos permite afirmar que os infantes não tiveram acesso a um ensino musical formal, nem o seu contrário. No entanto, olhando para a educação musical recebida por D. João IV e pelo o seu irmão D. Duarte (contrapontista e compositor, tocava o violão, mas tinha uma péssima voz215), ressalta uma nova problemática: a da existência e da continuação, ou não, de uma tradição de ensino musical aos infantes no seio da família real brigantina.

O facto de D. Catarina de Bragança não saber dançar na sua chegada à corte inglesa prende-se com dois factores, os quais de nenhum modo podem ser considerados reveladores da ausência de conhecimentos musicais, seja de que teor. O primeiro factor adveio de uma decisão religiosa e social para a qual contribuiu provavelmente a então Duquesa de Bragança, D. Luísa de Gusmão, ao exigir a proibição das comédias em nome da moralidade e da bienséance, decisão que o rei manteve durante o seu reinado. O segundo foi a rejeição sistemática das formas profanas da música, nomeadamente o teatro e a dança — expressões artísticas directamente conotadas com as práticas dos Habsburgos de Madrid —, cuja prática é interditada por D. João IV aos músicos da Capela Real, pois a seu ver tudo o que não fosse música sacra efeminava a voz.216 Essa tendência para afunilar as expressões artísticas repercutia-se drasticamente noutras áreas culturais, interrompendo uma tradição que em Portugal tivera um dos seus expoentes na corte manuelina e em Gil Vicente: a tradição do teatro musicado. D. Catarina não pôde conhecer o que não era praticado no reino. No entanto, também é preciso dizer que a jovem rainha de Inglaterra, mesmo tendo tido acesso ao ensino das danças praticadas na Península Ibérica, não conheceria necessariamente as que se praticavam no reino da Grã-Bretanha. Para além das decisões reais a nível cultural, esse facto revela-nos pelo menos a inexistência da prática de baile na casa da rainha D. Luísa de Gusmão, o que corresponde à rigidez e à forte componente religiosa com as quais são descritas a corte da rainha e o reinado de D. João IV. No entanto, D. Catarina demonstra um gosto pela música, como o relatam as fontes sobre o seu casamento (à noite houve navios tocando

214 COSTA E CUNHA, 2008: 293. 215 COSTA E CUNHA, Ibidem. 216 COSTA E CUNHA, Ibidem.

música para ela), para além de hábitos que só podem ter sido adquiridos na corte de D. João IV, como o de ouvir músicos durante o jantar:

«Em 11? (Setembro?), a rainha-mãe visitava-os em Hampton-Court. […] Jantaram juntos os reis com a rainha-mãe. E houve serão, com música de Portugal, na antecâmara de D. Catarina. Amável, Henriqueta aplaudia.217»

Nos reinados que se seguiram ao de D. Luísa de Gusmão, apesar de alguns indícios da existência de uma prática musical no seio da Casa das Rainhas, como foi referido anteriormente, e em grande parte devido à escassez de investigação musicológica realizada sobre os reinados de D. Afonso VI e D. Pedro II, D. Maria Ana de Áustria é de facto a rainha sobre a qual encontramos mais informações no que diz respeito a convivências musicais218 no seio da Casa das Rainhas. Refira-se ainda que na Casa da Rainha, nas noites de serões cortesãos, se ouviam serenatas219, zarzuelas espanholas220 e mais tarde também óperas italianas dadas na corte221, onde o convívio heterossexual parece ter sido notório. Eram sempre cantadas por membros da Capela Real e com total exclusão das mulheres, que eram substituídas por castrados seguindo a tradição romana — reservavam-se a um público restrito e limitado, sob convite da rainha, assistindo apenas em público as suas damas e os seus criados, e permanecendo, com prévia autorização régia, os fidalgos assistentes nos bastidores.

No documento As mulheres da família real MO (páginas 87-90)