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Autor: Gildo Antonio / Acervo: Lente Quente.

A fotografia, feita em 11 de junho de 2011, foi noticiada da seguinte forma em título e legenda:

O valor da música

A igualdade musical é algo que o cancioneiro João (foto), valoriza. João é um cantor de música sertaneja que viaja de Ipiranga o para o palco do calçadão de Ponta Grossa, em busca de ajuda financeira para alguns custos da deficiência visual não o impede buscar seu sonho. Aproveitando a captura para lembrar que no dia 13 de julho foi comemorado o dia mundial do Rock. O estilo que iniciou com a mistura do country com o R&B (Rhythm and blues) pretendia fazer com que a sociedade aceitasse a igualdade musical entre brancos e negros nos EUA e no mundo.50

O músico está cercado por anúncios e pelo comércio, que em muito dá o tom desse tipo de espaço público presente nas cidades brasileiras, também é o caso de Ponta Grossa (PR). Comerciantes fixos e ambulantes disputam a atenção ou o olhar de um fluxo regular de pedestres. Em meio a esse cenário surge a música e o que era rugosidade passa a ser alvo de visibilidade principal na fotografia. O músico

50 A imagem recebeu o seguinte comentário do fotojornaista Henry Milléo: “Sou fã do PB em alto

está sentado e, ao que parece, o fotógrafo ficou na altura dos seus olhos. O espectador da imagem passa a acessar a situação pelo olhar da câmera, o fotógrafo empresta o seu olhar, a partir da posição que escolheu para o registro, o que altera por completo composição, enquadramento e a proporção entre os elementos da cena, assim como o jogo entre objeto e fundo.

A foto aqui prega uma primeira inversão, que é de dar visibilidade ao músico que antes estava imerso em propagandas, vitrines e produtos – sujeito, em alguma medida, como já previa o olhar de Benjamin sobre a experiência cultural, às mesmas condições da mercadoria. Ao mesmo tempo, existe acessibilidade, sem controle de quem entra e sai do local. E a apresentação musical não deixa de ser gratuita, com poucas pessoas fazendo algum tipo de doação voluntária ao músico. Esse perfil de profissional, como já identificou Gomes (1998, p. 150), está sujeito às variáveis daquele espaço aberto tal como os demais usuários, como a disputa pelo ponto em que vai ficar, a poluição visual e sonora, as intempéries, seja o sol, o vento ou a chuva – o ponto de atuação deriva de uma série de fatores que pesa na escolha dos músicos, como tamanho, localização, intensidade do fluxo de pedestres, tipos de público, proteção, segurança, questões acústicas, conhecimento sobre o entorno, “controle social formal e informal dos espaços públicos”, entre outros aspectos enumerados pelo autor.

Existe uma segunda inversão em jogo nesse tipo de registro, uma vez que a situação sonora capturada vira imagem – a música é dada a ver, com o agravante fotográfico histórico de que existe praticamente um repertório de músicos de rua cegos. Esse é um dos motivos recorrentes na história recente da fotografia do interesse de Dyer (2008), logo no início de seu livro ou de seu passeio por fotos em relações de afinidade. O violeiro cego no Calçadão de Ponta Grossa registrado pelo Lente Quente continua esse gesto fotográfico de longa data na história da fotografia, como se já fosse parte do léxico que articula música, cidade e fotografia.

Um dos marcos desse repertório seria a foto feita por Paul Strand de uma mulher cega em 1916, que atualiza com vigor o dilema de como o fotógrafo torna alguém cego à sua presença. Strand se valia de um equipamento com duas lentes para melhor disfarçar o ato de realizar capturas em público, numa tentativa desenfreada de invisibilidade do observador. Nesse sentido, “A mulher cega é o corolário objetivo da invisibilidade ansiada pelo fotógrafo” (DYER, 2008, p. 22). Para o autor, essa imagem ecoa o trabalho de Lewis Hine, sobretudo a foto que fez em

1911 de um mendigo cego em um mercado italiano. O cego toca uma espécie de realejo. “O músico cego é observado não só pelo fotógrafo, mas pela maioria das pessoas que o cercam. Uma mãe e seus dois filhos o fitam, e o mesmo faz uma mulher que segura uma cesta de compras” (DYER, 2008, p. 23). Tais trabalhos teriam reverberado nas fotos de Walker Evans no metrô em Nova York, em 25 de fevereiro de 1938, série que inclui a famosa imagem de um acordeonista cego. A sequência fotográfica era parte de um projeto fotográfico no metrô, entre 1938-1941 – que envolvia fotografar sem ser notado e também um tipo de fotografia às cegas (DYER, 2008, p. 28), na medida em que o fotógrafo não colocava a câmera diante dos olhos e registrava sem ser notado. Vale recordar a leitura que o autor faz da imagem:

Em certos casos, é exatamente essa indiferença na concepção e na composição que confere às fotografias de Evans no metrô seu intenso apelo humano. A mais impressionante de todas é a foto de um acordeonista cego que avança por um vagão de metrô. Ele tem os olhos fechados, voltados para baixo como a boca de alguém tão habituado à infelicidade que se sente à vontade com ela. Ele percorre todo o trem, consciente, como escreve Borges em 'O cego', de que 'cada passo/ pode ser uma queda'. Seus dedos tateiam em busca da nota que há de transformar indiferença em caridade. As alças pendentes do teto e as luzes estão meio borradas, o acordeon se esforça para se fazer ouvir sobre o ruído e o clangor do trem. O teto e as janelas do vagão precipitam-se em direção a um ponto de fuga que se aproxima velozmente a cada segundo. A viagem começa e termina em Nova York, mas o acordeon colore o interlúdio com a ideia – a memória – de Paris, da Europa. O acordeonista cego exerce seu ofício enquanto avança em direção ao homem elegante, de sobretudo, que recorda seus tempos em Paris (guardem na lembrança essa nota de nostalgia) e que, sem que saibam, está exercendo seu ofício. Discretamente, ele mete a mão no bolso. Com seu clique abafado pela barulheira e pelas guinadas do trem, o disparador é acionado. A expressão do homem não se altera. (DYER, 2008, p. 29).

Uma série de fotógrafos se mobiliza para o registro do músico cego no espaço público, antes e depois de Evans, compondo um verdadeiro item obrigatório no repertório da história da fotografia. Mais de quatro décadas depois, o fotógrafo Bruce Davidson revive de certa forma tal projeto e registra um acordeonista no metrô, entre 1980 e 1981. Um amigo de Evans, Ben Shahn, também fez fotos de um acordeonista cego, entre 1932-34. O mesmo vale para August Sander e para André Kertész. Dyer (2008, p. 34) resume bem o gesto de fotografar o músico cego por ruas ou metrô, geralmente com acordeom ou violino: “Se a música evocava o que ele já não podia ver, a foto mostra o que já não podemos ouvir”. Dessa forma, “Um

trio de associações – uma espécie de harmonia visual – é criado entre acordeom, violino e cegueira. A música evoca uma sensação de cegueira ou perda – uma perda para a qual ela representa tanto um lamento quanto uma compensação”.